Estou quase terminando meu café quando Pablo entra na cozinha. Estamos só
nós dois, então percebo que ele fica desconfortável. Eu continuo bebendo meu café,
sem pressa, está quase terminando, logo poderei nos liberar da situação embaraçosa.
Embora não tenhamos tido qualquer outro conflito como o de antes, e tenhamos
seguido trabalhando com o respeito necessário, todas as vezes em que nos
encontrávamos em ambientes como esse, era quase palpável o seu desconforto. Hoje,
no entanto, ele não está só desconfortável, parece que quer me dizer algo. Ele tem o
tempo que durar o restante do meu café.
“Laura, a minha esposa espera uma menina”, ele começa, quase me assustando.
“Descobrimos o sexo meses atrás.”
Eu penso um pouco, tentando tomar cuidado com minhas palavras.
“Parabéns, Pablo”, digo. “Tomara que ela venha com muita saúde.”
Ele assente levemente.
“Eu fiquei perdido quando descobri que era uma menina”, continua. “Fiquei
com medo de não conseguir cuidar dela direito.”
“Mas você já tem dois meninos, não tem?”, questiono, recebendo um olhar de
surpresa, porque ele não esperava que eu soubesse muita coisa sobre a sua vida.
“Sim, eu tenho”, continua, quando se recupera. “Só que ser pai de menino é
diferente, os pirralhos se criam meio que sozinhos, se você deixar eles no quintal com
os cachorros, eles dão um jeito de se virar.”
Eu rio, ele me acompanha, ainda envergonhado.
“Então eu estive pensando que se a minha filha estiver um dia na mesma
posição da Bibi, eu gostaria que ela tivesse alguém como você por perto, para defendê-la”, a voz dele falha um pouco, mas Pablo continua. “Laura, eu quero me desculpar
com você por aquela vez. Sei que já devia ter feito isso há muito tempo, espero que
não seja muito tarde.”
Eu analiso a sinceridade das suas palavras por alguns instantes e acabo
escolhendo acreditar nelas.
“Pablo, você sabe a diferença entre igualdade e equidade, não sabe?”,
questiono, num tom ameno.
Ele fica confuso com minha pergunta, mas acaba balançando a cabeça num
gesto de afirmação.
“No futuro, se você for responsável por uma equipe, você será capaz de
entender que nem todos possuem as mesmas condições?”, prossigo. “Você será capaz
de frear um comportamento inaceitável como o que arrasou a Abigail na época,
principalmente se ocorrer num ambiente pelo qual você precisa zelar?”
“Laura, eu não entendo”, diz confuso.
“Eu sei que você trabalhou mais do que todos aqui para assumir o meu cargo”,
explico, vendo mais vergonha brotar de seu rosto. “Sei que você se sentiu injustiçado,
mas também sei que você continuou trabalhando muito, mesmo depois de todos os
nossos problemas.”
Ele concorda, ainda perdido, ainda envergonhado. Eu analiso suas reações por
um momento.
“É por isso que estou indicando você ao meu cargo, Pablo”, continuo. “Como
você já deve saber, o diretor da nossa unidade pediu exoneração, então eu fui nomeada
para o seu cargo. Com isso, preciso indicar alguém para o meu, e minha indicação é
você.”
Pablo começa a chorar incontrolavelmente. Eu aguardo um pouco, quando ele
se recupera, eu prossigo:
“Você ainda vai precisar encarar algumas etapas chatas desse processo, mas
tenho certeza de que o cargo é seu, se você quiser.”
Ele continua emocionado, não sabe o que dizer. Acho que ainda não consegue
falar. Dessa forma, eu prossigo mais uma vez:
“Quanto à sua menina, tente ser o homem que ela gostaria de conhecer no
futuro, essa balela freudiana faz sentido algumas vezes”, brinco. “Se ela tiver bons
exemplos em casa, se ela for amada por sua família, ela deve reconhecer o amor
quando chegar a hora, e talvez assim ela seja capaz de amar sem se machucar.”
Pablo volta a soluçar, eu espero um pouco. Quando ele se acalma, eu finalizo:
“Cuide da minha equipe, por favor, eles são muito bons no que fazem”,
caminho em direção à porta. “Eu só não consigo deixar o Dudu, então ele vai comigo,
entendido?”
Pablo ri, mas antes que eu possa cruzar a porta, ele consegue me chamar com
sua voz embargada.
“Muito obrigado.”
Eu aceno com a cabeça, então parto. Ele ainda permanece na cozinha por
alguns minutos, tentando se recuperar.
Eu continuava enfrentando o mesmo ambiente hostil, bastou minha nomeação
para o cargo de diretora da unidade que começaram os mexericos outra vez, com os
retoques e ajustes necessários. Andavam dizendo que eu só conseguira o cargo por
causa do Bernardo, que eu só conseguira o cargo por causa da cor da minha pele, que
eu só conseguira o cargo porque eles precisavam de uma mulher para melhorar a
imagem da instituição. Inventavam as desculpas mais esdrúxulas, que podiam até ter
um pouco de sentido, mas minha competência nunca era ressaltada. Mais uma vez, eu
teria que esperar para fazê-los engolir o que falavam. Pelo menos, não estava com
pressa, podia fazer isso devagar, saboreando cada momento. Enquanto o mundo em
que as mulheres não precisam se provar sob tamanha pressão não chega, eu vou
continuar fazendo tudo do jeito que bem entender. Eu ainda não tenho nada a perder,
porque o status e o poder que vêm com o novo cargo não podem me dominar, porque
aqueles que me amam, o fazem incondicionalmente, e porque se no futuro eu me
encontrar novamente sozinha no chão, eu consigo me levantar. Eu posso confiar em
mim mesma, essa é a única certeza que eu tenho.
Hoje é o último dia de Bernardo no ministério, ele está muito feliz, não via a
hora de correr daqui para sempre. Ele finalmente vai tirar alguns dias para descansar,
depois de trabalhar à exaustão. Nosso projeto segue para a fase de implementação,
então outra unidade ficará responsável por verificar a destinação dos recursos. Mesmo
assim, eu e Bernardo nos comprometemos a fiscalizar o processo, então não é como
se o nosso trabalho estivesse de fato acabado.
Enquanto subo para seu escritório no piso superior, reexamino mentalmente a
surpresa que preparei para ele no meu apartamento. Não é nada demais, só um jantar
mais romântico. Espero que possamos conversar um pouco e que eu possa enfim
explicar algumas coisas. Bernardo tem sido muito paciente comigo, eu precisava
reconhecer isso. Eu ainda sentia medo, mas não quero mais ficar tão perdida, por isso
decido caminhar com medo mesmo. Ainda que eu não possa confiar nas pessoas,
confiarei em mim mesma, a única pessoa que conheço o suficiente.
Quando entro na sua sala vejo os rastros de uma despedida que deve ter
acontecido há muito pouco tempo. Há garrafas de espumante abertas em cima da sua
mesa, taças usadas espalhadas pelo caminho e serpentinas no chão. Ele tem um sorriso
enorme, acho que mal pode esperar pelo fim do dia. Seguro o riso, enquanto sigo na
sua direção para abraçá-lo.
“Essa merda acabou!”, ele grita, enquanto gira comigo em seus braços.
Quando ele me coloca no chão estou um pouco zonza, mas recupero meu
equilíbrio.
“Deve ter sido horrível mesmo a experiência”, eu debocho.
Ele beija minha testa.
“A única coisa boa desse lugar é você, meu amor.”
Eu seguro suas mãos, beijo cada uma delas, então o encaro.
“Nós vamos comemorar sua liberdade na minha casa hoje à noite”, digo. “E
você não tem a opção de declinar o meu convite.”
Bernardo me beija.
“Eu seria louco se recusasse um convite desses”, ele responde, logo depois.
“Eu já disse um milhão de vezes, meu amor, mas vou repetir: você tem o que quiser
de mim.”
Eu sabia que ele ainda estava esperando minha resposta, tanto para a sua ideia
de morarmos juntos quanto para sua declaração. Eu pensei que ficaríamos num clima
estranho depois daquela noite, porque eu não consegui dizer nada, porém, ele
continuou paciente, me surpreendendo muito. Hoje, finalmente serei capaz de
respondê-lo.
“Eu não me importo em ouvir outro milhão de vezes”, brinco.
Ele não se aguenta, então me beija de novo.
Hoje, vamos embora daqui juntos, sairemos de mãos dadas e recordaremos
nossa história enquanto cruzamos cada ambiente. Elevador, cozinha, corredores,
saguão, porta, rua. Tudo isso vai nos lembrar do caminho que percorremos até
montarmos essa nossa coleção de instantes que eu não quero que acabem.