Eu e Maria nos aproximamos muito rápido. Em todos os nossos encontros, no
trabalho e fora dele, eu novamente era acometida por uma agora já velha sensação de
que nos conhecemos antes, talvez noutra vida. Ela e Bernardo também conversavam
bastante, relembrando a viagem onde se conheceram, falavam constantemente sobre
seus amigos e colegas, inclusive marcaram um reencontro com todo mundo na casa
do Bernardo, parece que acontecerá no próximo mês, num fim de semana. Eu estava
feliz por conhecer essas pessoas de quem ambos tanto falavam, principalmente após
entender que Maria precisava disso, porque passara por uma perda enorme
recentemente, motivo do seu choro quando nos encontramos. Ela me contou toda a
sua história com Gabriel, me contou sobre a mãe e sobre a perda do colega músico,
todas as três profundamente dolorosas, e ocorridas num espaço de tempo muito curto.
Maria não podia ter se curado totalmente, pelo menos, ainda não. Então aqueles olhos
tristes de quando nos conhecemos fizeram todo o sentido para mim.
Eu também acabei me abrindo muito com ela, contei-lhe sobre a minha
infância, sobre a minha vida fora de casa, sobre o meu trabalho e sobre o meu
relacionamento com Bernardo. Eu nunca falei tanto sobre mim, nunca consegui
confiar tanto em alguém, muito menos tão rápido. Mas com ela aconteceu de uma
forma muito espontânea, um pouco estranha, quando eu me dava conta, já tinha lhe
falado sobre os meus momentos mais sombrios, sobre os meus medos mais profundos.
Quando estávamos conversando, na minha casa ou na casa do Bernardo, só eu e a
Maria, ou nós três, eu era novamente preenchida pela sensação de que estava num
ambiente seguro, de que estava em família. Às vezes, o Joaquim aparecia nesses
encontros, então eu ficava ainda mais feliz. O Joaquim e a Maria eram como cães e
gatos, daqueles criados juntos que nunca se separam. Ele alegava que não gostava de
adultos, e eu podia entendê-lo muito bem, e Maria alegava que não gostava de
crianças. Então eles se encaravam ameaçadores, até a Maria correr atrás dele para lhe
fazer cócegas que o matavam de tanto rir. A risada do Joaquim aquecia o meu coração,
seu eco me fazia sentir em casa.
Eu e Joaquim também nos aproximamos muito, ele e Bernardo passavam mais
tempo juntos, assim eu tinha mais chances de vê-lo. Algumas vezes, até a Natália
estava presente. Ela falava comigo de outra forma, ainda estava um pouco
envergonhada, mas aparentemente vinha conseguindo lidar bem com os seus
sentimentos por Bernardo. Num desses encontros, a Maria me abordou num canto
isolado e me perguntou se eu realmente confiava nela, porque também percebeu a
forma como ela olhava e falava com Bernardo. Eu quis rir, era a primeira vez que eu
tinha uma amiga para me alertar sobre essas coisas, para ficar do meu lado, para se
preocupar por mim. Eu estava feliz, eu finalmente tinha pessoas com quem eu me
importava e que se importavam comigo da mesma forma. Amor, amizade e lealdade,
eu consegui isso, como por milagre. Estava tudo perfeito, tão perfeito que eu me
esqueci que nem tudo dura para sempre.
Eu conseguia lidar com a exposição do meu relacionamento com Bernardo no
trabalho, conseguia lidar com a preocupação dos meus colegas, com seus avisos e
conselhos, e conseguia lidar razoavelmente bem com meu nome e rosto estampados
nos sites e revistas de fofocas que me anunciavam como a nova namorada de um dos
playboys mais cobiçados da cidade. Quando jornalistas e blogueiras me ligavam
solicitando entrevista, eu aproveitava a oportunidade para falar do nosso projeto,
trazendo visibilidade para a nossa causa. Então, os sites e revistas interessados na
minha vida particular tinham duas opções: ou eles desistiam de mim ou me ajudavam
a divulgar o projeto, eventualmente contribuindo para que conseguíssemos mais
investidores. Sem querer, sem planejar, eu fui construindo uma imagem muito
diferente nesses espaços, tanto para mim como para Bernardo, e ela nos ajudava com
o trabalho. Algumas vezes era preciso lidar com notícias falsas, maldosas e
tendenciosas, mas eu estava legalmente preparada para combater tais crimes. Enfim,
era uma dor de cabeça enorme estar ao lado de Bernardo, mas com tudo isso eu podia
lidar, só não soube o que fazer quando ele disse que queria ficar mais sério do que
estávamos.
“Como assim, Bernardo?”, pergunto, enrolada em seus braços e numa
mantinha que deixo no sofá da minha sala.
“Eu pensei que podíamos morar juntos”, diz, então beija meu cabelo. “Não é
grande coisa, amor, já estamos fazendo isso, não estamos?”
Não, havia uma grande diferença. Ele só está tentando me dizer isso de uma
forma que não me assustará completamente. Infelizmente, ele não está tendo êxito.
“Mas as coisas estão tão boas assim”, argumento. “Não acho que precisamos
apressar nada.”
Bernardo fica imóvel, então sou obrigada a buscar seus olhos, a fim de entender
o que está acontecendo.
Ele está triste, está decepcionado, eu conheço essa expressão.
“Laura, estamos juntos há quase um ano”, ele segura meu rosto em suas mãos.
“Você realmente acha que morar na mesma casa é demais?”
Penso cuidadosamente numa reposta.
“Bernardo, estamos quase concluindo a nossa parte do projeto, quando
começar a fase da implementação nós não seremos mais os responsáveis, estaremos
menos sobrecarregados, essa parceria vai acabar”, balbucio. “E o diretor da nossa
unidade deve se aposentar depois disso, então teremos outra pessoa no comando, tudo
vai mudar de novo...”
Ele me beija, para me calar.
Quando me solta, me olha de um jeito que me sinto nua.
“Do que diabos você está falando, Laura?”
Eu suspiro.
“Eu estou tentando dizer que devemos esperar a conclusão da fase do projeto
pela qual somos responsáveis, depois teremos mais tempo livre.”
“E o que o projeto tem a ver com nossa vida particular?”
Estou perdida.
“Bernardo, nós não sabemos como as coisas vão funcionar depois de
entregarmos o projeto.”
Eu gostaria muito de poder correr desses olhos que me devoram, mas não tenho
alternativas.
“Você está com medo?”, ele me pergunta, num quase sussurro.
“Medo?”, pergunto indignada, tentando fingir que ele não acertou na mosca.
“Você está com medo, Laura?”, repete.
“Por que eu teria medo?”, eu me encrenco.
“É exatamente este o meu ponto”, Bernardo pressiona. “Por que você teria
medo de morar comigo?”
Dou um sorriso, enxergando uma brecha.
“Talvez por que você nunca mais vai me deixar dormir?”
Ele ri, mas eu sei que não vai abandonar a discussão.
“É um bom argumento, amor, mas você já está acostumada com isso”, ele me
aperta contra seu corpo. “Você dorme pouco, é verdade, mas dormiria muito menos
longe de mim, então acho que seria mais uma oportunidade pra você usar o meu corpo
por muito mais tempo, não acha?”
Eu coloco meus braços em volta do seu pescoço.
“Você é impossível, Bernardo.”
Ele ri.
“Só acho que é um acordo foda pra caralho, amor”, insiste. “Você precisa
pensar direito.”
Eu acho graça, então lhe beijo, torcendo para que ele esqueça a ideia.
Infelizmente, quando eu deixo seus lábios, Bernardo ainda possui a mesma
determinação no olhar.
“Quando entregarmos o projeto a minha parceria com esses cuzões acabou, eu
tô fora, Laura! Não encaro outra merda assim tão cedo. Vou fazer as coisas do meu
jeito no futuro, não quero ficar atolado em papel ou politicagem e nem quero ficar
aguentando um monte baba-ovo dos infernos”, ele continua. “Só que não vou te ver
todos os dias no trabalho, meu amor, e isso é uma merda também. Se a gente morar
junto, vamos nos ver todos os dias, mesmo depois de entregar o projeto, mas não
precisamos esperar, não acha?”
Bernardo estava cansado, eu reconhecia seu esforço. Ele trabalhou mais que
qualquer um para ver esse projeto acontecer, fui testemunha. Quanto mais perto eu
estava dele, mais podia ver a quantidade absurda de demandas que ele precisava tratar,
e de problemas que precisava resolver. Não era só o projeto, havia o seu trabalho, seus
negócios, outras causas que ajudava, que consumiam a maior parte do tempo que ele
dispunha. Ele trabalhava num ritmo frenético, pouco saudável. Às vezes, eu acordava
sozinha na madrugada e lhe procurava pela casa, então o encontrava em seu escritório,
atolado em contratos, processos, dossiês e anotações; algumas caixas do ministério
acabaram empilhadas no chão perto de sua mesa. Meu coração se partia, porque eu
entendia ali que ele abria espaço na sua agenda para estar comigo e com o Joaquim,
mas eu não sabia que precisava trabalhar na madrugada para compensar. Havia
madrugadas em que eu tentava ajudá-lo, porém, Bernardo sempre me colocava para
dormir como se eu fosse uma criança e continuava trabalhando sozinho.
“Laura, você está me ouvindo?”, ele chama, me resgatando de meus devaneios.
“Oi, desculpa”, peço, um pouco atordoada.
Bernardo me derruba no sofá, me beija de novo, então me encara outra vez.
Parece que não há meios de fugir dele hoje.
“Nós não precisamos esperar a entrega do projeto, meu amor”, ele beija minha
testa. “Não concorda?”
Eu toco seu rosto, faço-lhe umas carícias.
“Por que você está insistindo tanto nisso, Bernardo?”
Ele parece confuso.
“Você não me quer?”
Eu fico paralisada com sua pergunta.
“Como assim, Bernardo?”, tento me retratar. “É claro que eu quero você!”
Ele sorri, convencido. Detesto esse sorriso presunçoso dele!
“Então qual é o problema, Laura?”, ele encosta seu nariz no meu, fazendo
cócegas. “Seja sincera comigo, pelo menos uma vez.”
“Pelo menos uma vez?”, questiono, levemente emburrada.
“Você nunca me diz como realmente se sente”, ele explica. “Eu tenho que
tentar adivinhar o que se passa nessa sua cabeça, meu amor. Por que não pode ser
sincera comigo?”
Eu me canso.
“Eu não quero morar com você, Bernardo.”
Ele recebe minha resposta como uma bofetada, se levanta e senta-se no sofá.
Eu me sento ao seu lado, tentando explicar como me sinto.
“Bernardo, eu acho que estamos tão bem assim, eu não quero colocar uma
pressão desnecessária em nós agora”, explico. “E se estragarmos tudo dando um passo
apressado? Estamos num momento delicado no trabalho, acho que podíamos
caminhar mais devagar.”
Ele suspira.
“Eu vou pra casa, Laura”, anuncia. “Amanhã conversamos.”
Mas eu impeço que ele se levante. Sento-me em seu colo e cobro a atenção de
seus olhos decepcionados.
“Você é meu refém, esqueceu?”, brinco. “Não pode ir embora quando bem
entender.”
Bernardo suspira novamente.
“O que eu devo fazer com você?”, questiona, como se falasse consigo mesmo.
“Bernardo, me dê um tempo para eu me acostumar com a ideia”, peço,
enquanto beijo seu rosto todo. “Eu só preciso de um pouco de tempo, entende?”
“Laura, você já confia em mim?”
Engulo em seco, não encontro uma resposta.
“Então ainda não”, ele responde a si mesmo. “Talvez o problema seja esse,
você ainda não confia em mim. Se confiasse, não teria tanto medo, não é?”
Eu não sei o que fazer, eu não quero magoá-lo, mas não posso ignorar o que
eu sinto. E, por mais que eu tenha tentado evitar, por mais que eu tenha tentado
esquecer, o que me comanda na maioria das vezes em relação à Bernardo é o medo.
É a primeira vez em que estou tão exposta, e ele continua exigindo tudo de mim,
continua me deixando desconfortável com sua proximidade. Eu não quero afastá-lo,
mas nunca sei o que devo fazer para não me sentir tão perdida. No início, eu pensei
que o nosso acordo estranho acabaria em breve, no mais tardar quando entregássemos
o projeto, pensei que eu venceria esse nosso jogo bobo, eu não sabia que demonstraria
tanto medo no percurso, que estaria assim exposta, vulnerável, assustada, como se eu
fosse uma criancinha.
Quando começamos essa brincadeira agora sem muita graça, eu esperava
sempre o pior de Bernardo, estava pronta para pegá-lo na cama com outra mulher, ou
para seu afastamento brusco, talvez sem explicação. Estava pronta para ler ou ouvir
alguma fofoca que me obrigaria a terminar tudo e deixá-lo para trás definitivamente.
Eu não esperava que fosse ficar tão próxima dele, que fosse conhecê-lo tão
intimamente, eu não esperava que Bernardo pudesse querer algo mais sério, eu não
esperava que sua figura aparecesse em minha mente sempre que o nome família fosse
invocado. Sim, eu estava com medo, estava apavorada, porque eu não sabia o que
fazer. Eu não sabia como lidar com as mudanças bruscas na configuração do nosso
acordo. Talvez no fundo eu ainda esperasse pelo pior, porque é com isso que estou
acostumada.
Os meus olhos se enchem de lágrimas, mesmo contra minha vontade. Eu
detestava esses momentos em que involuntariamente eu acabava me expondo ainda
mais.
Bernardo beija meu rosto, limpa minhas lágrimas, demonstrando o oposto da
imagem que eu havia criado para ele anteriormente.
“Está tudo bem, amor, eu vou continuar esperando você, já sou quase um
monge no quesito paciência”, ele me abraça, nós rimos. “Quando você estiver pronta,
nós decidimos o que fazer, combinado?”
Eu balanço a cabeça, concordando. Novamente, estou chorando no seu ombro,
com medo de tudo, de que dê certo entre nós, de que não dê, medo de ficar, medo de
partir. Bernardo se levanta comigo em seu colo e segue para o meu quarto, onde sei
que vai me abraçar até eu pegar no sono, então um de nós vai acordar na madrugada
e vai despertar o outro e nós vamos fazer amor até pegarmos no sono outra vez.