Ainda impactada com as palavras de Fernando, eu subo para o novo escritório
de Bernardo, no piso superior. Ele diz que precisamos discutir um assunto urgente,
relativo ao projeto, mas tenho minhas dúvidas, porque ele não só aproveita cada uma
de nossas oportunidades a sós, como acostumou-se a criar algumas. O novo escritório
se parece muito mais com Bernardo, é espaçoso, elegante, tem vista privilegiada, é
uma verdadeira obscenidade para qualquer repartição pública. Felizmente, não é o
contribuinte quem está pagando por ele.
Quando entro, Bernardo está finalizando uma reunião com três pessoas do seu
time, montado há poucos dias. Pelo que entendi, ele trouxe especialistas de diferentes
áreas, criando uma espécie de comissão técnica. Eles saem, nos cumprimentamos no
caminho. A porta se fecha e Bernardo já está me abraçando.
“Estamos trabalhando”, eu lhe lembro.
“Eu não me importo”, Bernardo responde, cheirando meu cabelo. “Preciso de
cinco minutinhos com você pra recarregar.”
Enquanto me abraça ele se move em direção à mesa de reuniões, me levando
junto dessa forma. Ele se encosta ali, apertando-me.
“Bernardo, estamos trabalhando, alguém pode entrar!”
“Eu não ligo.”
Suspirei.
“Por que você precisava desse novo escritório?”, pergunto, quando parece que
ele vai dormir a qualquer momento.
“Eu não precisava, me mudei porque aquele lugar lá embaixo é desconfortável
pra caralho”, ele ri.
Eu não estava em condições de julgá-lo, se ele podia ter o que quisesse, se
podia estar mais confortável e tinha como consegui-lo, eu não faria nenhum
julgamento. Nesse sentido, não era tão diferente de mim, que fazia o que bem entendia
sem me importar com consequências. Bernardo dispunha de recursos materiais, eu
dispunha de liberdade. Pelo menos, era o que eu acreditava.
“Então você não quis ficar perto de mim”, brinco.
Ele grunhe e me aperta mais, mesmo sob meus protestos e reclamações.
“Eu não consigo respirar, Bernardo!”
“Para de reclamar, sabe que posso piorar sua situação.”
Suspiro, ele ri.
Quando ele finalmente me solta, analiso seu rosto cansado.
“Está tudo bem?”, questiono, porque ele parece muito, muito cansado.
“Vai ficar, em breve”, responde, acariciando meu rosto. “Só uns cuzões dos
infernos dando um pouco de trabalho. Daqui a pouco vou lá chutar a bunda deles.”
Eu ri, ele beijou minha testa.
“Ter você aqui ajuda a aliviar essa merda toda, amor.”
Eu paraliso, acho que não estou nem respirando mais.
“O que foi?” Bernardo pergunta urgente, quando percebe meu estado. “Laura,
você está bem?”
Tento sorrir, saindo da paralisia. Vou disfarçar, porque não quero que ele note
como estou desconfortável com sua proximidade emocional.
“Tenho certeza de que você pode resolver isso, seja lá o que for”, digo. “Então,
por que você me chamou aqui?”
Bernardo ainda me analisa com cuidado, estou desconfortável de novo. Ele
percebe isso, então deixa passar. Sorri.
“Não é óbvio?”, brinca.
“Não tem nenhum assunto urgente, não é?”
Ele ri, da minha cara.
“Tão ingênua, amor.”
De novo. Bernardo está de novo fazendo isso. Será que está me testando?
Novamente, disfarço.
“Você se lembrou de contatar a locadora de brinquedos para o aniversário do
Joaquim?”, pergunto, tentando sair do embaraço.
“Sim, já está feito.”
“Ótimo!”, eu me afasto dele, em direção à porta. “Então nossa reunião urgente
acabou, Sr. Bernardo!”
Já estou no meio do caminho quando ele me alcança. Segura minha mão e me
obriga a olhá-lo.
“Qual é o problema?”, pergunta, me assustando.
Forço um sorriso.
“Não tem problema algum”, respondo, fazendo o melhor que eu posso. “Eu só
preciso voltar a trabalhar agora se não quiser sair daqui muito tarde.”
“Laura, fala comigo”, ele quase implora, não sei o que fazer.
Eu me ergo, para alcançar seus lábios.
“Não tem problema nenhum, eu estou bem”, tento convencê-lo quando lhe
solto. “Vamos terminar aqui rápido e correr para casa. O Joaquim vai jantar com a
gente, lembra?”
Bernardo não está convencido, mas deixa essa passar, então eu vou embora,
para lidar com os meus próprios demônios.
Passo o restante da manhã meio aérea, tentando lidar com sentimentos
conflitantes, por isso, quando Camila me chama para almoçar num restaurante perto
do ministério, porque aparentemente precisa conversar comigo sobre algo importante,
eu aceito, acreditando que seria bom sair um pouco. No estado em que me encontrava,
não fui capaz de perceber suas intenções, até que ela iniciou seu discurso, na mesa do
restaurante, após nossa refeição.
Havia muito barulho no restaurante, mas nossa mesa era mais afastada, então
podíamos conversar sem preocupar com a cacofonia de talheres, risos, passos, pratos
e copos alcançando mesas com estardalhaço.
“Laura, você sabe que eu não me meteria na sua vida se não me importasse
com você”, ela começa, com aqueles olhos castanhos intensos. “Eu estou aqui
tentando cumprir um papel de mãe. Se você fosse minha filha, esse seria o conselho
que eu te daria. Quando minhas meninas crescerem, esse será o mesmo conselho que
darei, se elas se encontrarem na mesma situação que você está agora.”
“Camila, eu não estou entendendo”, minto, esperando poder interrompê-la.
“Eu soube sobre você e o Bernardo”, esclarece. “Todos já estão sabendo, e
falando, sobre vocês, Laura.”
Eu tomo cuidado com minhas palavras.
“Eu sei, Camila”, respondo. “Sei sobre os comentários.”
“Então aqui vai o meu conselho de mãe”, ela faz uma pausa enfática,
cuidadosa. “Laura, esse homem pode fazer você se machucar muito. Não estou
falando só da situação ruim em que te coloca no seu ambiente de trabalho, estou
falando de machucar você de verdade.”
Eu concordo lentamente, processando uma resposta. Como demoro, ela
prossegue:
“É impossível que você não saiba como ele vive”, faz outra pausa. “Ele dorme
com inúmeras mulheres, uma diferente toda noite, pelo que dizem os sites de fofoca.
Ele é um galinha, Laura. Não caia nessa, ele vai machucar você.”
Tomo mais um instante para respirar profundamente, minha cabeça já estava
latejando.
“Eu agradeço muito sua preocupação, Camila”, inicio, tentando sorrir. “De
verdade, eu aprecio. Sei que está apenas preocupada comigo, está me tratando como
ninguém nunca fez, nem mesmo minha família”, faço uma pausa. “Mas você sabe
muito bem o que penso.”
“Eu sei que você é durona na queda, meu bem, eu sei. Sei que não liga para os
comentários maldosos, mas isso é mais sério, Laura. Estamos falando de você se
apaixonar por um homem assim, que não vai respeitar você, que vai fazer você sofrer.”
Eu congelei, congelei com a possibilidade de me apaixonar por alguém. No
entanto, eu precisava continuar respondendo a mulher preocupada na minha frente.
“Eu estou disposta a correr esse risco pelo Bernardo, Camila”, falo,
surpreendendo a mim mesma. “Eu sei o que dizem sobre ele, o que pensam sobre ele,
mas eu escolhi conhecê-lo. Ele pode me machucar, é verdade, isso pode acontecer, só
que eu não sou uma garotinha que precisa de proteção. Eu faço minhas próprias
escolhas e assumo suas consequências.”
Camila me lança um olhar ainda mais alarmado.
“Parece que você já se apaixonou por ele, querida”, diz, me assustando.
Penso por um momento, tentando organizar minhas emoções.
“Eu não saberia dizer, Camila”, respondo, sincera. “Nunca me apaixonei antes,
então não faço a mínima ideia do que é estar apaixonada por alguém.”
Camila parece triste ao ouvir isso, acho que ela gosta realmente de mim.
“Laura, se não posso convencer você, preciso apenas que me prometa uma
coisa.” Ela espera, eu concordo. “Você vai tomar cuidado, não vai?”
Eu sorrio para aqueles olhos que eu tanto desejei ver na minha infância, que
podiam ser os olhos de qualquer um, nem precisava ser os da minha mãe ou irmã.
“Eu prometo”, digo, apertando suas mãos.
“Tenho que voltar agora, preciso ligar para as crianças”, ela anuncia. “Você
vem também?”
“Não, eu vou ficar mais um pouquinho, vou tomar um café. Encontro você no
escritório mais tarde”, faço uma pausa, ainda engolindo o choro. “Muito obrigada,
Camila. Significa muito a sua preocupação.”
Ela lança um beijo de longe, então parte.
Eu respiro profundamente, fecho os olhos. Preciso controlar minhas emoções,
preciso me esforçar para não chorar. Que dia difícil! Tanta coisa para lidar. Nem
lembro quanto tempo faz desde que não sinto essa espécie de desespero, que se não
cuido, me devora, deixando expostas todas as minhas feridas. Eu precisava continuar
respirando profundamente, varrendo para debaixo do tapete tudo aquilo que não
queria sentir. Eu precisava me lembrar que sou muito forte, que sou durona, como
Camila disse. Eu precisava me lembrar que não era mais uma garotinha medrosa e
indefesa. Precisava me lembrar que eu era a senhora de mim mesma.
Então, quando alguém arrasta uma cadeira e se senta ao meu lado, eu penso
que ela voltou, penso que Camila voltou. Só que quando abro meus olhos, é Bernardo
quem está tomando minha mão, é ele quem a aperta, é ele quem beija minha testa e
faz minha cabeça repousar em seu ombro.
Estou apavorada, não consigo me mexer ou respirar direito, mas preciso
perguntar:
“Quando você chegou aqui?”
Ele toma um instante, avaliando uma resposta com cuidado.
“Há um tempo”, diz, vago.
Estou com mais medo ainda.
“Antes da Camila sair?”
Outra pausa.
“Antes de vocês chegarem.”
Engulo em seco.
“Bernardo, você nos ouviu?”, quero saber, desesperada.
“Laura...”
“Você nos ouviu?”, interrompo.
Ele suspira, tenta ser inaudível.
“Sim.”
Minha mão está suando. Há quanto tempo não sinto isso?
“Como eu não te vi quando chegamos?”, sussurro, sem saber se falo com ele
ou comigo mesma.
“Eu estava numa reunião lá atrás, tinha um monte de gente”, ele continua,
cuidadoso. “Quando terminamos, eu me aproximei de vocês, mas a conversa parecia
pessoal, então eu quis me afastar, mas não consegui quando ouvi meu nome.”
Bernardo entrelaça seus dedos aos meus. “Laura, por favor, me perdoe.”
Ergo minha cabeça para encará-lo.
“Não era a minha intenção ouvir vocês”, ele reafirma.
“Você está chateado?”
Ele parece confuso.
“Chateado?”
“Sim, chateado com o que pensam sobre você”, respondo. “Você está,
Bernardo? Está chateado com o que pensam sobre você?”
Bernardo deixa escapar um suspiro, então sorri. Ele toma meu rosto e me leva
até ele, para que possa me beijar. É a primeira vez que me beija paciente, sem a sua
urgência famélica. Saboreia meus lábios como se só eles importassem. Depois beija
meu rosto todo, bochechas, queixo, testa, nariz e cabelos. Sinto que estou em perigo,
principalmente quando ele me solta e sorri de novo, daquele jeito.
“Eu não dou a mínima para o que pensam sobre mim”, responde. “Não estaria
onde estou se ligasse para a merda que os outros pensam”, ele beija minha mão. “Eu
só ligo para o que você pensa, Laura. Felizmente, você não pensa tão mal de mim.”
Tento sorrir, mas não sei como sai.
“Você está enganado, Bernardo”, brinco. “Eu também penso muito mal de
você.”
Bernardo ri.
“Que pena! Achei que já tinha te convencido um pouquinho.”
“Não, não”, digo. “Você ainda tem muito trabalho pela frente.”
Então ele fica sério, e eu não sei o que fazer.
“Posso levar a vida inteira tentando convencer você, meu amor”, ele me beija
de novo, com mais urgência dessa vez.
Eu lhe afasto, olho em volta.
“Lugar público, lembra?”
“Eu não ligo.”
Eu suspiro novamente, me dando conta de que ele dá muito trabalho.
“Laura?”
E pelo seu tom de voz, eu prestei total atenção, deduzindo que estaria mais
uma vez desconfortável com o que ele estava prestes a dizer.
“Eu quero o seu coração só pra mim”, diz. “Você vai me deixar ter o seu
coração, Laura?”
Reprimo alguma coisa amarga que tenta escapar.
“E o que você fará com ele, Bernardo?”
“Eu vou cuidar dele pelo resto da minha vida, se você deixar.”
Sinto minhas lágrimas represadas prestes a cair, estou vulnerável, estou com
medo. Quero confiar em suas palavras, mas não sei como fazer isso. Parece que virei
uma presa. Sou uma presa diante de um caçador habilidoso.
“Tudo bem se você ainda não puder confiar em mim”, Bernardo prossegue,
quando não digo nada. “Eu posso fazer você confiar em mim. Não estou com pressa,
meu amor”, ele me abraça, beija meus cabelos. “Só fique do meu lado durante o
processo, combinado?”
Eu balanço a cabeça, concordando, lutando com as lágrimas.
“Agora, se você ainda tiver uns minutinhos” ele prossegue, “eu não estou me
aguentando aqui. Meu carro está estacionado na esquina. O que acha?”
Eu começo a rir, sem parar. Ele me imita.
“Você é um cara de muita sorte, Bernardo.”
“Sou?”, ele pergunta, esperançoso.