“Laura, você está pronta?”, Bernardo pergunta, esperando na porta do meu
escritório.
“Você disse que me mandaria o local”, digo, confusa.
“Eu sei onde é, já está tudo pronto”, ele diz, parecendo muito cansado. Deve
ter tido uma noitada.
“Pode me mandar o endereço?”, pergunto, tentando me esquivar do que sei que
ele preparou. “Vou pedir um carro pelo aplicativo.”
Bernardo suspira profundamente, demonstrando sua frustração.
“E agora, qual é o problema?”, quer saber, exausto. “Qual o problema de você
vir comigo?”
Havia tantos, mas como eu poderia responder educadamente? Desisti, acho que
eu também estava muito cansada.
“Tudo bem”, aceito, me levantando, pegando minhas coisas e caminhando em
sua direção.
Bernardo segura a porta para eu passar, depois seguimos em direção ao
elevador. Penso que se a semana de provas do Dudu não terminar logo, tanto ele
quanto eu estaremos acabados. Não aguento mais fazer tanta coisa ao mesmo tempo,
estou bem cansada. Permiti que ele ficasse em casa estudando, mas as coisas só se
acumulavam. Eu precisava me organizar melhor. De toda forma, estava preparada
para hoje. Não perderia a oportunidade de fazer um predador sangrar.
Alcançamos o elevador, estamos a sós. Não me sinto muito confortável, vejo
o jeito que ele me olha. Eu sei o que Bernardo quer. Se não soubesse, talvez fosse
mais fácil estar ao seu lado. Estranhamente, ele não faz nenhum comentário, parece
mortalmente cansado. Mas eu não vou perguntar se está tudo bem.
Quando alcançamos o saguão, eu paro de andar por um instante. Ele se volta
para mim, quando percebe que parei.
“O que foi?”, quer saber. “Você esqueceu alguma coisa?”
Não era isso.
“Fomos atacados por um motoqueiro alguns meses atrás”, estou pescando.
“Aquele vidro precisou de um pequeno reparo”, aponto. “Ele se parecia muito com
você, Bernardo. O motoqueiro, quero dizer.”
Ao contrário da reação que eu esperava, Bernardo ri. Parece mais relaxado,
principalmente quando recupera a proximidade entre nós.
“Então já nos encontramos antes”, conclui, me chocando.
“Era mesmo você?”
“Sim, fui eu”, responde, como se não fosse nada. “Quer saber por que eu fiz
aquilo?”
Balanço a cabeça, afirmando que sim.
“Eu já sabia que trabalharia com vocês”, ele ergue o indicador direito, como
se fosse enumerar os motivos, mas fez com que eu me lembrasse do seu gesto naquela
noite. “Eu quis testá-los”, ergue o dedo médio. “Perdi uma aposta com o colega que
me ajudou a entrar aqui”, ergue o anelar. “Mas o mais importante: eu fiquei puto da
vida com aqueles cuzões”, ergue o dedo mínimo.
Eu não consegui segurar o riso. Bernardo se surpreendeu.
“O que foi?”, quis saber, rindo junto comigo.
“Você é maluco”, afirmo, retomando o meu caminho em direção à saída.
Do jeito que ele contou, ficou engraçado. Também gostei do xingamento. Ele
tinha razão, havia um bando de cuzões nesse lugar. Eu gostaria de poder pronunciar
esse xingamento em voz alta um dia, parecia libertador. Nesse departamento, o
máximo que eu conseguia era um eventual “merda”, quando tudo estava perdido, ou
prestes a se perder.
Era engraçado agora, mas naquela noite foi o ataque dele contra o vidro que
me despertou lembranças dolorosas, fez minha insônia voltar, fez com que eu
mergulhasse ainda mais profundamente no meu trabalho, esperando chegar em casa
tão cansada que não tivesse a chance de ter pesadelos.
“Eu não te vi aqui naquela noite”, Bernardo diz, enquanto esperávamos Mateus
trazer o seu carro. Aparentemente, Bernardo dispunha dos mesmos privilégios dos
grandes chefes da administração.
“Tinha muita gente no saguão”, argumento.
“Você fez parte de qual grupo? O que correu, o que ficou lutando pra sair ou o
que apenas me excomungou?”
Eu ri.
“Fiz parte do grupo que teve pesadelos depois daquilo”, brinco.
Bernardo ficou sério, então olho para ele.
“O que foi?”, quero saber.
Ele parece envergonhado, triste, quase não posso acreditar que estou vendo
isso nele.
“Não se preocupe, está tudo bem agora”, minto. “Só não faça aquilo de novo.
Você me assustou.”
Ele estava ensaiando uma resposta quando Mateus parou um Lamborghini na
nossa frente. Eu suspirei. É sério mesmo que Bernardo esperava que eu fosse com ele
naquilo? Quão ridícula será que consigo me sentir andando nessa coisa?
Mateus corre em minha direção, me deseja boa tarde.
“Oi, Mateus. Você está bem?”, sorrio para ele. “Como está sua irmã, ela
melhorou?”
“Melhorou sim. Valeu, Laura”, ele entrega as chaves para Bernardo. “Sua
máquina é animal, cara!”
Mateus se afasta, Bernardo abre a porta para mim.
Eu o encaro, encaro a porta que ele abre.
“Qual é o problema?”, ele pergunta.
Penso no que quero fazer, se quero correr daqui, discutir com ele ou
simplesmente ceder, evitando mais cansaço. Suspiro novamente.
“Bernardo, você tem noção de que se vendesse esse carro nós não
precisaríamos buscar recurso algum?”, minha voz sai azeda. “Você, sozinho, podia
financiar o nosso projeto. Já imaginou que legal? Acho que você ainda ganhava uma
plaquinha com o seu nome.”
Forço um sorriso, azedo também. Entro no carro, visivelmente a contragosto.
Bernardo corre como um louco, mas isso não me surpreende. Enquanto ele
estava concentrado no caminho, eu revisava alguns documentos. Ele parecia chateado
com alguma coisa, talvez com meus comentários e azedume, com meu exagero, então
tivemos um pouco de paz. Em poucos minutos nós chegamos ao luxuoso restaurante
no qual esperava o nosso possível investidor.
Ainda em silêncio, Bernardo me conduz até um espaço reservado ao encontro.
As luzes são claras, podemos ver uma Brasília espetacular dali, totalmente oposta
àquela que queríamos ajudar. Um homem de meia-idade nos esperava numa mesa.
Todas as outras estavam vazias. Bernardo e ele se cumprimentam como se fossem
amigos de infância. Gosto disso, assim eu mato dois ratos com uma só cajadada.
Após o papo-furado, a comida, a bebida, os sorrisos e as conversas entediantes
entre os dois, vamos direto ao ponto. Tenho certeza de que Bernardo já fez alguma
proposta prévia, então espero a resposta do nosso convidado.
“Pessoal, a causa de vocês é muito boa, temos que ter esse compromisso, essa
responsabilidade social”, Walter inicia, já espero o desfecho negativo. “Se
pudéssemos, realmente ajudaríamos. Mas esses valores... Vocês não estão mesmo pra
brincadeira! Que gananciosos!”, gargalha. “Infelizmente é uma quantia significativa.
Se pudermos rever o investimento...”
“Infelizmente, Sr. Ramires, os valores não são negociáveis”, eu o interrompo,
causando choque nos dois homens da mesa.
“Laura...”, tenta Bernardo, mas eu o olho diretamente, ao meu lado, fazendo
com que se lembre do nosso acordo. Ele me entende, então desiste.
Posso ver que Bernardo está tenso, mas eu não me importo. Volto minha
atenção para o homem à minha frente.
“Sr. Ramires, conhece a Ceilândia?”, questiono.
Ele parece ofendido.
“Claro que eu conheço!”, rebate, entre orgulhoso e ofendido.
“Conhece as regiões periféricas?”, insisto.
Ele se engasga, aproveito a oportunidade.
“Então o senhor pode entender quando digo que precisamos de muito
dinheiro”, tento rir, ele ri também, envergonhado.
“Eu entendo a causa... Laura, não é?”, quando confirmo ele prossegue.
“Compreendo o que você diz, Laura, mas infelizmente esses valores... Precisamos
concordar que são exorbitantes. Peço desculpas por não ser de grande ajuda.”
Ele acha que me venceu, sorri. Olha para o Bernardo, com uma espécie de
ameaça velada. Eu a entendo. Ele está dizendo que Bernardo lhe preparou uma
armadilha, está dizendo que não gosta de ser encurralado, e é exatamente o que eu
quero que ele pense.
“Sr. Ramires, qual foi mesmo o membro da sua família acusado de pedofilia
no ano passado?”, eu atiro, bem no rosto dele.
Ele tosse, quase se engasga de novo. Fica vermelho, fica roxo. Eu gosto do que
vejo. Por debaixo da mesa, Bernardo coloca uma mão na minha perna. É um sinal
para que eu pare, ele está me implorando. Só que eu não me importo, não agora. Eu
avisei que não era uma boa ideia me trazer aqui, ele não me escutou. Agora eu preciso
terminar o que vim fazer.
“Essa reunião acabou”, anuncia o homem chocado na minha frente.
No entanto, antes que ele se levante, eu prossigo:
“A mídia não tratou o caso como deveria, Sr. Ramires, mas ela fez um certo
estrago”, continuo, calma, porque estou desossando um porco, pior que isso, estou
gostando. “Então eu pensei o seguinte: se uma contribuição generosa, como a que
esperamos, realmente ocorrer, a mídia terá o que falar novamente, mas dessa vez o
seu nome estará do lado bom da história”, faço uma pausa técnica. “Não será como
uma confissão de culpa porque o seu familiar já está respondendo pelo que fez, não
está?”, enfio a faca mais um pouco. “Nesse caso, o senhor só tem a ganhar. Talvez até
receba algum prêmio por apoiar os direitos da criança e do adolescente, se puder fazer
um discurso comovente, é claro, o que acredito que possa fazer”, outra pausa técnica.
“Como isso lhe soa? Muito bom, não é? Talvez o senhor possa recuperar não só a
imagem do seu negócio, mas parte dos investidores e da confiança que perdeu.”
Ele calculava, segurando sua raiva sem conseguir disfarçar.
“E se minha resposta ainda for não?”, questiona.
Eu lhe entrego a pasta que contém a minha versão da proposta e uma cópia do
contrato pronto, porque sei que ele não tem uma alternativa.
Bernardo aperta minha perna. Eu havia esquecido que sua mão ainda estava
ali. Eu o ignoro, continuo fixada no porco na minha frente.
“Acho prudente assinar o contrato, Sr. Ramires”, aconselho.
“Você está me ameaçando?”
“No seu discurso, pensei que seria de bom tom pedir desculpas pelo que o seu
familiar fez, explicar que a família Ramires não compactua com criminosos,
independente de quem sejam, que todo crime hediondo deve ser punido severamente”,
continuo, séria. “Não mencione a quantia doada, nós faremos isso no nosso momento
na tribuna, assim o senhor não fica parecendo muito pretensioso, um calculista que só
pensa no dinheiro, como se ele pudesse comprar o perdão da sociedade, entende?”,
finjo que estou pensando no discurso dele. “Também sugiro que troque o pessoal que
escreve o texto dos seus pronunciamentos, eles não fizeram um bom trabalho da
última vez”, concluo. “Espero o contrato assinado em breve. O Bernardo pode lidar
com outros assuntos ou o ajuste de alguma cláusula, mas os valores são inegociáveis.
Acho que terminamos por aqui.”
Furioso, ele se levanta.
“Vai se foder!”, berra para Bernardo como se fosse explodir de raiva, não me
olha nenhuma vez quando sai.
Mas Walter leva a minha pasta, e sei que vai aceitar meus termos.
Bernardo está perplexo. Retiro sua mão da minha perna e me levanto.
“Nós também terminamos aqui”, anuncio, começando a andar em direção à
porta.
“Laura”, ele chama.
Eu paro, espero.
Ele se levanta devagar e vem até mim. Inacreditavelmente, parece calmo,
talvez esteja apenas tentando controlar sua raiva.
Para na minha frente, mais próximo do que eu gostaria.
“O que você fez?”, ele pergunta, ainda calmo.
“Fechei o acordo”, respondo, sorrindo para ele. “Não é o que combinamos?”
Sei que ele está tentando se controlar, saboreio o seu sofrimento.
“Podíamos ter feito isso de outra forma”, diz, à beira de uma explosão, pelo
que parece.
Então eu me irrito, e deixo que ele veja isso.
“De que forma, Bernardo? Implorando a pedófilos? Implorando pedófilos a
investir em crianças? Aceitando qualquer miséria que quisessem dar e rindo com eles
numa foto porque são bons samaritanos?”, quero gritar. “Dessa forma? Dessa forma
atenderia seus outros interesses?”
“Que interesses?”, ele exige.
“Ele não é seu parceiro de outros negócios?”
“O que você está implicando aqui, Laura?”
“Você sabia sobre as acusações de pedofilia contra o pai dele?”
Bernardo respira profundamente, tentando se controlar.
“Sim, eu sabia”, responde a contragosto. “Por quê? Não devia ter sugerido esse
acordo? Sou uma espécie de monstro também?”, seu tom de voz sobe. “É por isso que
você sempre me afasta? Também me acha repugnante? Você me acha um merda que
não se importa com ninguém?”
Fico confusa com essa sua reação.
“Eu vou para casa”, digo, tentando encerrar a discussão.
Mas ele não me deixa afastar, segura meu braço e me obriga a olhá-lo
novamente.
“Responde”, implora.
“Responder o quê?”, questiono sem paciência.
“Você me acha um merda?”, quase sussurra.
“Não importa o que eu acho”, tento suavizar a voz. “Responda você mesmo.
Você é um merda?”
Ele se assusta, me solta.
“Vou levar você pra casa”, diz vencido.
Quando ele tenta sair do lugar, eu o impeço, segurando seu braço como ele fez
com o meu.
“Bernardo, espera”, peço. Ele me atende, espera com paciência. “Eu vou
sozinha. Não preciso que você me leve.”
Solto o seu braço, ele permanece imóvel. Novamente, parece que está
mortalmente cansado. Eu dou um passo em sua direção.
“Nunca mais me obrigue a fazer isso”, aviso, ameaço. “Nunca mais me obrigue
a participar de algo assim. Eu vou ajudar a conseguir os recursos necessários para o
projeto, mas vou fazer isso do meu jeito”, avanço mais um pouco na sua direção.
“Você pode fazer o que bem entender, da forma que achar melhor. Só não me peça
para fazer o mesmo. Trabalhamos de maneiras diferentes, então vamos tentar respeitar
isso.”
Deixo Bernardo ali e vou para casa, sem me importar com mais nada. O dia
estava encerrado para mim. Eu só queria tomar um banho, relaxar um pouco, tomar
uma taça de vinho, tentar dormir. Finalmente, estabeleci nossos limites, agora ele
podia me deixar em paz.