O ronco emitido pelo motor do buggy era tudo o que podíamos ouvir na
extensão das dunas. Na sequência, aquele tão familiar frenesi de risos. Beto acelerou
ainda mais, eu bebi o último gole da vodca e arrisquei ficar de pé, apesar de todos os
solavancos. Por algum motivo, talvez o álcool ingerido nas últimas duas horas, ser
lançada para frente e para trás por repetidas vezes era emocionante. A minha pele
queimava sob o sol e essa era uma das sensações mais gostosas do mundo.
“Acelera Beto!”, Rafa gritou pela enésima vez, bem ao meu lado agora.
“Temos que chegar antes daqueles otários!”
Beto respirou fundo, como se estivesse se preparando para uma briga. Pensei
que invocaria a proteção de Nossa Senhora da Aparecida naquele momento, mas não
teve tempo. Tínhamos que ganhar aquela corrida, sobretudo agora que acabávamos
de ser ultrapassados.
Rafa deixou-se cair, decepcionada, no banco traseiro.
“É só cortar caminho, Betozinho!”, eu afirmei, embora não fizesse ideia do que
estava falando; a cabeça começava a girar. “Vamos! Você consegue!”, implorei,
desejando que Beto adivinhasse o caminho ao qual eu me referia, por onde nunca
passei.
Dois celulares começam a tocar, músicas distintas, mas ambas estridentes.
Manu atende um deles. Olha para mim com a expressão de quem não ouve nada do
está sendo dito no outro lado da linha. Desliga o telefone e o joga num canto. Em
seguida puxa o braço de Rafa para que ela se junte a nós. Ali, balançamos e
cantarolamos desordenadamente versos improvisados e sem muito sentido:
Beto é um bom guerreiro
Beto não é cavalheiro
Beto tem que correr
Beto, nós temos que vencer!
E, Beto?
Pise no acelerador
Vamos passar o Intimidador!
Voltamos ao frenesi de risos em instantes. Beto segue nosso conselho e logo
estamos em vantagem novamente. Não conhecíamos ninguém do grupo adversário,
nem sequer sabíamos como eles se tornaram adversários, infelizmente para eles,
formávamos, sobretudo naquele instante, um grupo difícil de lidar.
Beto era dono de um espírito muito competitivo, uma vez mordido o osso, era
praticamente impossível soltá-lo, azar dos coitados para os quais acenávamos pelo
retrovisor. Rafa aproveitava cada oportunidade ao máximo, sobretudo quando se
tratava de curtir a vida, segundo ela, nunca sabemos o que pode acontecer se
decidirmos esticar o dia mais um pouco, então era comum amanhecermos na rua, após
invadir a festa ou o carro de alguém ou, como naquele caso, desafiar um grupo de
pessoas desconhecidas a uma corrida insana pelas dunas apenas porque o motorista
do outro veículo nos encarou e riu. Ele traçou seu destino com esse gesto, e quando
ganhou o apelido “intimidador” em nosso grupo, estava condenado. Rafa sempre
conhecia muitas pessoas, algumas meio loucas, era sempre muito amigável e
espontânea, eu nunca entendi direito essa sua habilidade, para mim era uma habilidade
quase sobrenatural. Já Manu, geralmente a mais tímida e preocupada com
consequências, não se importava com muita coisa naquele dia, fazia meses que tentava
adotar um pouco da filosofia de vida de Rafa, então correr atrás daqueles
desconhecidos pelas dunas não seria algo com o qual ela se importaria agora. E havia
eu, claro, tão bêbada naquele momento que seria incapaz fazer qualquer julgamento
racional.
Por um instante, naquele fim de tarde, enquanto corríamos e gritávamos,
observei o sol preguiçosamente começar a se pôr. Então todo aquele barulho se
distanciou também, até não passar de ruído. Meus olhos ardiam. Perdi a noção do
tempo em que observei aquele pôr do sol. Foi só um instante, mas poderia ter sido
uma eternidade. Por motivos completamente desconhecidos, eu sorria. Estava noutro
lugar, sozinha, ouvindo o mar e queimando sob o sol. O caminho até ali fora árduo
demais, mas eu podia descansar por um segundo. Talvez fosse o álcool. Era como
uma experiência extracorpórea, minha mente viajava para um lugar que o corpo não
podia alcançar.
O buggy parou com um último solavanco, fazendo com que eu retornasse ao
meu corpo. Beto e as meninas desceram barulhentos, comemorando a vitória. Minha
cabeça ainda girava, eu enxergava tudo meio desfocado. O grupo adversário se
aproximou, apresentaram-se. Notei a presença de duas meninas, uma loira, outra
morena, e dois rapazes que pareciam bem maiores que elas. Um deles não tirava os
olhos de Beto, conversavam animados demais, muito próximos um do outro, e minhas
amigas já falavam com as outras duas garotas como se fossem colegas de infância.
Enquanto isso, eu tentava fazer minha cabeça parar de girar, tentava também controlar
meu estômago, sem muito sucesso. Não demorou muito, alguém me apanhou pela
cintura e me fez descer do veículo, provocando enjoos.
Tentei focar o rosto do homem que ainda me segurava pela cintura,
provavelmente impedindo que eu caísse como uma fruta podre, mas quando eu erguia
o rosto em direção ao dele, tão mais acima do meu que parecia inalcançável, o sol
ofuscava minha visão, já prejudicada por conta da bebedeira. Então, tudo o que eu
podia ver era uma silhueta enorme.
“Você vai vomitar?”, ele me perguntou, meio sarcástico, meio preocupado.
Balancei negativamente a cabeça, mas não foi uma ideia muito boa.
Em instantes, Rafa estava ao meu lado, e as mãos do estranho sumiram do meu
corpo.
“Amiga, você está bem?”, ela soava preocupada.
“Estou, estou, estou muito bem”, gaguejei como uma idiota.
Ouvi muitas vozes diferentes gargalhando, numa cacofonia que também
incluía as vozes dos meus amigos. Beto me acusou por ter bebido demais.
“Só foram duas vodcas!”, protestei, enrolando a língua.
“Duas garrafas?”, debochou Beto.
“Não! Foram só dois golinhos!”, tentei explicar, em vão, porque eles riram de
mim outra vez.
Então eu procurei um lugar para me deitar, a areia morna estava uma delícia.
Balbuciei uma apresentação para o grupo perdedor e disse que tiraria uma soneca.
Alguém colocou óculos de sol em mim, acho que foi Manu. Ainda ouvi meus amigos
conversando animadamente com os perdedores antes de combinarem um mergulho.
Rafa sussurrou alguma coisa antes de partir, mas não entendi direito. Estava com
muito sono, desejando que a cabeça parasse de girar um pouco. Prometi a mim mesma
que nunca mais beberia vodca na minha vida.
Algum tempo depois, alguém me despertava e me ajudava a sentar na areia.
Quando consegui enxergar direito, vi que estávamos só eu, Manu e Rafa naquela parte
da praia. Entardecia, escurecia.
“Por quanto tempo eu dormi?”, perguntei levemente chocada, com a garganta
seca.
“Por quase uma hora”, Manu respondeu.
“Cadê todo mundo? Cadê o Beto?”
Rafa deu um sorrisinho que eu conhecia muito bem.
“Fala, Rafa!”, implorei.
“Ele foi numa festa no apartamento de um colega do Heitor”. Rafa deve ter
visto uma enorme interrogação no meu rosto, porque completou sua resposta: “Heitor,
o Intimidador, acredita? Aquele traidor foi se juntar aos inimigos! Disse que nos
encontra no luau de mais tarde.”
“É o cara que não tirava os olhos dele, o motorista do outro grupo?”, perguntei,
imaginando coisas.
“Você estava em condições de ver isso?” Manu debochou.
Rimos, e minha garganta seca protestou.
Rafa me entregou uma garrafinha de água. Jurei amor eterno a ela nesse
momento. Quase chorei de emoção.
“Credo! Para de me olhar assim!”
“Eu te amo”, choraminguei.
“Não diga o óbvio, por favor.”
Manu bateu palmas, chamando nossa atenção, trocou um olhar zombeteiro
com Rafa, então ambas me encararam profundamente.
“O que foi?”, perguntei perdida.
“Você quer informações sobre o bonitão que te pegou no buggy como se você
não pesasse nadinha?” Manu ofereceu, maliciosa.
“O quê?”, eu fingi ignorância.
“Não se finja de sonsa!”, ordenou Rafa.
Eu suspirei.
“Não quer saber o nome dele?”, provocou Manu de novo.
“Não, eu não quero não”, garanti, embora não tivesse certeza sobre isso.
Elas duvidaram da minha resposta, estavam certas sobre isso, mas não
insistiram no assunto, pelo menos por um brevíssimo minuto.
Manu se levantou.
“Precisamos voltar para o hotel, meninas. Eu preciso urgentemente de um
banho”, declarou.
Rafa me ajudou a ficar de pé, subimos as três no veículo. Rafa assumiu o
volante e logo retornávamos ao hotel sob um entardecer espetacular. Durante o
caminho, elas não pararam de me torturar com as piadinhas bobas que me faziam
morrer de rir.
“Rafa!”
Assim que ela se volta para mim, eu lhe molho inteira, mangueira apontada em
sua direção, como uma arma. A ideia inicial era que tirássemos a areia do corpo, mas
aquilo foi muito além. Tornou-se uma verdadeira guerra. Minha amiga pareceu
chocada por muito pouco tempo, porque revidava energicamente no instante seguinte.
“Gente bêbada é mesmo um problema!”, ela me acusa, enquanto eu tento fugir
da sua fúria.
Algum tempo depois, arfando, caímos na calçada. Desfrutamos do silêncio por
um momento, então Manu o interrompe ao tecer um comentário.
“Hoje foi incrível, meninas.”
Pelo seu tom de voz, tanto eu como Rafa já sabíamos o que viria em seguida.
“Mas ainda não acabou”, garanti. “Só está começando. Temos um grande luau
pela frente.”
“E vamos conhecer alguns boys seminus”, afirmou Rafa, fazendo com que
caíssemos na gargalhada.
“Tomara que eu encontre um”, disse Manu meio triste, meio só por dizer,
porque dificilmente ela se aproximaria por livre e espontânea vontade de um homem
seminu. Eu até podia ver suas bochechas queimarem de vergonha.
Automaticamente, lembramo-nos de seu término recente. Ano passado ela
acabou se apaixonando por um idiota e, conforme já esperávamos, não terminou nada
bem. Para piorar, isso só trouxe outras memórias dolorosas, como a traição de seu ex
noivo, cinco anos antes. Ela demorava mais para curar seu coração, quando partido.
Nenhuma cicatriz curava com facilidade, mas eu sempre acreditei que as feridas da
minha amiga eram mais difíceis de lidar. Ela via o mundo de forma muito ingênua,
muito generosa. O mundo não era um lugar muito bonito, não era nada fácil sobreviver
nele, sobreviver a ele. Manu era constantemente enganada por vendedores ou pedintes
na rua, às vezes por sua própria família e amigos.
Ela era forte, mas eu nunca conseguia ficar em paz quando ela começava um
relacionamento. As pessoas ao seu redor possuíam uma inclinação diabólica para
enganá-la ou fazê-la sofrer, mas ela nunca conseguia devolver o favor na mesma
moeda. Nunca era rude, não gritava com ninguém, não sabia demonstrar sua
insatisfação ou desaprovação. Talvez estivesse apenas vivendo de acordo com suas
próprias crenças, talvez tivesse sido privada de um ambiente em que pudesse
demonstrar suas emoções sem ser penalizada ou criticada por isso. Eu não sei, mas
conheço o sentimento de raiva que queima meu rosto todas as vezes em que alguém
lhe faz sofrer. Eu queria estrangular seu ex-noivo com minhas próprias mãos. Mas
acima de tudo, eu queria que Manu fosse capaz de sentir essa raiva, que fosse capaz
de xingar Daniel, de lhe dizer as coisas horríveis que eu acreditava que ele precisava
ouvir depois de enganá-la daquela forma asquerosa.
“Manu, não é momento para isso!” Rafa protestou. “Você é linda, inteligente
e amorosa! Quem perdeu foi aquele otário e é bom você saber disso, ouviu?” Rafa se
levantou puxando Manu ao mesmo tempo. “Esqueça aquele imbecil, ele não te merece
nem um pouquinho.”
Abraçaram-se.
Eu sempre ficava admirada com aquele discurso feminino previsível, pelo
menos em situações como essa. Embora soasse cliché demais, ajudava um pouco, se
a garota tivesse sorte. Se o discurso funcionasse, ela podia se sentir única e especial.
Podia esquecer a verdade nua e crua: ela foi rejeitada, não quiseram lhe amar, não a
quiseram, ela foi trocada por outra mulher, mais bonita, mais inteligente, melhor na
cama, talvez mais rica. Era tudo uma grande mentira, uma grande farsa, os gestos e
palavras de afeto, as promessas, não significavam nada no fim das contas. De toda
forma, terminávamos como um trapo: trocada, abandonada, sozinha, rasgada.
Nesses momentos, parecia haver uma verdadeira guerra dos sexos, era um nós
contra eles feroz e eterno, transformava todos os homens sobre a Terra em verdadeiros
imbecis. Principalmente quando refém do álcool, eu podia esquecer facilmente
qualquer julgamento decente, meus argumentos tornavam-se enviesados, meus
preconceitos emergiam. De repente, muitos rostos desfilavam em minha cabeça,
homens que haviam me machucado ou machucado mulheres próximas a mim. Eu me
encontrava novamente com ferimentos expostos, mesmo quando não eram
intencionais, mesmo quando eu fui a única responsável por eles. Mas era muito mais
fácil culpar os outros, culpar a cultura, culpar meus traumas.
Deitada na calçada, eu ainda observava o céu. Escurecia muito, lua e estrelas
apareciam, enfeitando nosso teto celeste. Eu não tinha resposta alguma. Era provável
que os homens sofressem tanto quanto nós, mas por que parecia que suas traições
eram sempre mais dolorosas? Talvez a resposta estivesse no meu passado. No mundo
diante dos meus olhos, na forma como ele se apresentou a mim, sobretudo durante a
infância e a adolescência, as mulheres eram ensinadas a suportar tudo, a perdoar tudo,
eram criadas como seres que serviam e não como seres a quem se possa servir. Muitas
vezes, eram tratadas como objeto, como uma aquisição, ornamentais ou de uso diário,
para exibir ou usar, para se aliviar, talvez para tudo isso de uma vez só.
Eu detestava a apatia das mulheres com quem cresci, odiava a covardia dos
homens que me cercavam. Algumas vezes, parecia que eu odiava tudo, só odiava, sem
explicação. Em certas ocasiões, eu desejava quebrar tudo na minha frente: vasos,
copos, pratos, espelhos. Era como um impulso incontrolável, embora nunca tivesse
me vencido completamente. Eu fora ensinada a ter um temperamento dócil, ninguém
gostava de mulheres coléricas, mas havia limites para a paciência, não havia? Era
realmente necessário reprimir tanto? De que adiantava escolher acreditar que nem
sempre as pessoas traem por que são más? De que adiantava ser razoável, aceitar o
assédio moral e sexual dos companheiros de trabalho apenas por que podia lidar com
isso? Por que precisava aceitar as desculpas oferecidas em nome deles, sobretudo,
explicações vindas de colegas mais velhas de casa? Elas explicavam tão perfeita e
convicentemente que não mudaríamos o mundo confrontando tudo, que a vida
daqueles homens era medíocre, eles estavam sobrecarregados e suas esposas em casa
não lhe davam a atenção devida, usavam um argumento de autoridade difícil de
refutar: a experiência. Era sério mesmo que precisávamos engolir isso? De que
adiantava engolir todas essas desculpas? De que adiantava tentar explicar o óbvio?
Talvez o que eu mais odiasse nessas situações fosse a condescendência dessas
mulheres que, ao ocupar cargos mais altos, deviam proteger as outras, mas não
protegiam. Não deve ter sido um lugar muito fácil de chegar, mas por que elas
continuavam escolhendo viver dessa forma? Por que precisávamos entender e perdoar
tudo? Então eu queria partir os móveis: cadeiras, mesas, computadores; e queria atirar
coisas a esmo: grampeadores, canetas, copos. Eu queria ver tudo voando, queria ver
tudo se partindo, queria ser a louca que eu escondia, mesmo que breve.
Estranhamente, eu ainda esperava encontrar o grande amor da minha vida,
esperava viver uma experiência que me subtraísse o ar por um momento, como nas
novelas, filmes e livros, produções que nos faziam facilmente esquecer a diferença
entre realidade e ficção. Para alguém como eu, tão facilmente enganada pela ilusão
dos finais felizes e ao mesmo tempo tão cética, seria um milagre construir um
relacionamento de verdade. Mas eu não me importava muito com isso, continuaria
vivendo minha vida do jeito que quisesse e pudesse. Quando se tratava do coração, eu
preferia usar a máxima de Rafa: viver o dia, talvez alguma surpresa nos aguardasse.
Levantei bruscamente e me enfiei no abraço das minhas amigas, ajudei Rafa a
secar algumas lágrimas de Manu.
“Fizemos uma promessa há cinco anos”, eu comecei. “Preciso que se lembrem
dela agora, entendido?”, esperei a confirmação de ambas. “Vamos subir ao nosso
quarto agora, vamos tomar um banho maravilhoso e vamos nos vestir de forma
espetacular. Nós nos sentiremos maravilhosas, como de fato somos! Depois vamos
descer para o luau e vamos aproveitar como se não houvesse amanhã!”
Elas riram de mim, mas não se opuseram.
Há cinco anos, quando o mundo desabou sobre nós, fizemos uma promessa de
néscios: prometemos que nós seríamos incondicionalmente felizes.
Mais tarde naquela noite, nosso quarto foi invadido por uma música suave e
vozes que gritavam. Adequadamente vestidas, descemos ao saguão, onde
encontramos Beto, Heitor e mais dois desconhecidos. Descemos para a praia. Era
noite de lua cheia, e o mar ao nosso lado, agitado o dia todo, ia aos poucos se
acalmando. Pessoas riam e dançavam, todas cheiravam a banho e a colônias frescas,
cítricas. Pegamos algumas bebidas e fomos dançar também, acabei quebrando a minha
promessa sobre a vodca. Eu só queria esquecer tudo por um instante, aproveitar o
momento, deixar a música me conduzir. Fechei os olhos, era tudo perfeito ali. Meus
melhores amigos estavam ao meu lado, numa viagem que finalmente conseguimos
fazer juntos, depois de tantos problemas. Eles estavam felizes com suas vidas e
escolhas, ou quase chegando lá. Era como um sonho, depois de tudo que enfrentamos.
Tocava Donavon Frankenreiter, minha música preferida do cantor, em seguida
tocou Enrique Iglesias, Alabama Shakes, Maluma e até Kaoma, eu e Rafa deliramos,
Manu morreu de rir da gente. Geralmente nem Rafa ou Manu ouvia esse tipo de
música, mas elas conseguiam entrar no clima, aproveitavam como se fosse seu gênero
musical predileto. E aquele era realmente mais um dos momentos perfeitos da vida.
Não muito longe de nós, Beto beijava uma loira. Lancei um olhar preocupado
em sua direção, eu podia jurar que havia algo entre ele e o Heitor, muita coisa passou
pela minha cabeça, mas eu resolvi deixar para pensar nisso depois. Beto sempre
calculava muito bem o que fazia, ele não costumava ser impulsivo. Também não
gostava muito das nossas opiniões não solicitadas sobre sua vida. Era como se ele
sempre soubesse o que fazer, não precisava da gente para ajudar a decidir nada. Talvez
fosse só uma questão de aceitar as próprias escolhas, ou esconder como se sentia
porque detestava nossos rótulos. Talvez um dia eu pudesse entendê-lo melhor, mas
teria que esperar.
Beto foi meu primeiro grande amigo, uma amizade que me obrigava a lugares
difíceis de estar, como o meu passado, a minha casa, o meu coração. Ali, eu não podia
evitar um reexame constante sobre meus próprios motivos, intenções e dúvidas. Ele
me pressionava, porque se enfiava na minha vida, mesmo quando eu não permitia. E
uma vez ocupando esses espaços, ele ia fazendo seus julgamentos, análises e críticas.
Com o tempo, ele já era um desses lugares. Então eu comecei a fazer o mesmo,
comecei a me enfiar em sua vida, sua casa, seu coração. Tentava habitar esses espaços
também. Beto e eu nos acostumamos a habitar os espaços um do outro, mas sempre
havia um cantinho impossível de alcançar, que nem eu ou ele queria ceder, queria
deixar o outro entrar, e ficar. Aprendemos a respeitar isso, a respeitar que nem tudo
precisa ser dito. Podíamos apenas confiar.
O relógio no meu pulso marcava onze horas e dois minutos. Estava cedo. A
música continuava boa demais, fechei os olhos novamente. Não sei por quanto tempo
fiquei daquela forma, aproveitando cada instante como se fosse uma eternidade.
Quando abri os olhos novamente, Manu tinha desaparecido e Rafa sussurrava no
ouvido de um homem que parecia ter sido esculpido por Michelangelo.
Revirei os olhos, rindo da velocidade da minha amiga, ela nunca perdia muito
tempo. Fechei os olhos e continuei aproveitando a música. Novamente, não sei quanto
tempo passou, mas em determinado momento eu senti alguém próximo a mim,
envolvido naquela mesma dança, o calor do corpo atrás de mim e a mão que alcançou
minha cintura me despertou do transe imediatamente.
A primeira coisa que vi foi a mão que segurava minha cintura firmemente, me
fazendo lembrar de antes, então segui um braço coberto por tatuagens e encontrei um
peitoral mal escondido numa camisa florida de botões quase todos abertos. Ergui o
olhar para seu rosto, muito acima do meu, e dessa vez pude vê-lo completamente.
Ele tinha um sorriso imenso no rosto, tinha lábios carnudos e uma testa larga,
o cabelo castanho escuro estava quase na altura do ombro, algumas mechas caíam por
esse rosto que eu não podia parar de analisar. Sua figura era imensa, me fazia lembrar
de um urso. A mão que estava em minha cintura foi parar nas minhas costas nuas,
numa altitude perigosa, que me fazia queimar. Eu quis protestar, acusar sua coragem
de me tocar daquela forma, mas não consegui. As palavras simplesmente não saíram.
“Você está bem melhor agora”, ele disse, naquela voz de antes, me
confundindo ainda mais. “Mas ainda não pode parar de beber isso, não é?”, apontou
para o copo na minha mão direita.
“Eu sei quem é você”, eu consegui dizer, mas soou como uma acusação.
“Sabe?”, ele riu.
“Eu vi você mais cedo”, tentei explicar.
Ele reprimiu o riso com dificuldade.
“Que bom!”, era um deboche. “Eu podia jurar que você não conseguia enxergar
nada naquela hora”.
Balbuciei alguma coisa que nem eu mesma consegui compreender, então me
dei conta de que uma de minhas mãos ainda repousava no antebraço tatuado dele. Eu
me afastei, ele me soltou. Estendeu sua mão direita.
“Bernardo”, ele disse, esperando uma resposta.
Hesitante, eu aceitei sua mão.
“E você?”, ele perguntou, como se me ensinasse como aquilo funcionava.
“Maria.”
“Maria”, ele repetiu devagar, como se analisasse a informação.
Mas antes que tivéssemos a chance de continuar a percorrer aquele caminho,
uma nova música começou a tocar, e tudo estava terminado num segundo.
Seus olhos e seus olhares
Milhares de tentações
Meninas são tão mulheres
Seus truques e confusões
Se espalham pelos pelos
Boca e cabelo
Peitos e poses e apelos
Me agarram pelas pernas
Certas mulheres como você
Me levam sempre onde querem
Encarei Bernardo como quem pede socorro, uma expressão de confusão
percorreu seu rosto. Ele aproximou um passo, eu recuei outro. Caramba, eu estava tão
perdida! Muitas memórias me invadiam, eu não conseguia processar tudo de uma vez.
Por que tinha que tocar essa música justo agora? As lembranças que me alcançavam
pareciam pertencer a outra vida, a outra pessoa, mas eram minhas, eram
inegavelmente minhas. Meus olhos se encheram de lágrimas.
Garotos não resistem
Aos seus mistérios
Garotos nunca dizem não
Garotos como eu
Sempre tão espertos
Perto de uma mulher
São só garotos
“Desculpe, Bernardo”, eu disse sem graça. “Eu preciso ir agora, muito
obrigada por me ajudar mais cedo.”
Eu precisava sair dali imediatamente, não quis avaliar sua expressão, não
conseguia pensar em muita coisa. Sem esperar qualquer resposta, apenas parti.
Deixando a vodca para trás, eu caminhei pela praia sem rumo, procurando distanciar
do maior número de pessoas possível. Aquela música estragou tudo! Era para ser a
minha noite perfeita! Quando as ondas do mar soavam mais alto que a música agora
ao longe, eu retirei minhas sandálias e continuei caminhando pela areia.
Já passava da meia-noite, mas eu ainda vagava pela praia. Em algum momento,
cansada, eu me deitei ali. As estrelas estavam tão lindas! Tentei lembrar de alguma
história sobre constelações, mas não podia evitar os pensamentos intrusivos. Suspirei,
evitando as lágrimas represadas.
A sensação é de que eu havia perdido algo, permanentemente. Gostaria de não
me sentir tão melancólica naquele momento, mas parecia impossível não me sentir
assim agora. Fui incapaz de mesurar o tempo dali em diante, os pensamentos
desorganizados e incontroláveis me dominaram, tive muito trabalho para não chorar
convulsivamente, eu não conseguia compreender minhas emoções.
Algum tempo depois, após o que pareceu uma eternidade solitária, alguém se
deitou ao meu lado na areia. Eu sabia perfeitamente quem era.
“Amiga?”, ela chamou.
“Oi, Rafa.”
“Você perdeu sua chance com o gostoso do Bernardo, sabia?”, ela suspirou
profundamente. “Quando saí pra te procurar ele já estava quase engolindo outra
menina.”
“Essa foi rápida, não foi?”, eu ri, sem muita emoção.
“Por que você está aqui?”, ela quis saber, quase exigente.
“Não tenho certeza.”
Ela deixou o silêncio nos embalar por um tempo.
“Não é tão fácil assim seguir os próprios conselhos, não é?”
“Não, não é”, respondi.
“Pensei que eu também conseguiria lembrar da nossa
promessa até o fim, como pedi para vocês fazerem.”
“Eu sei que é mais difícil para você”, Rafa disse com cautela, estragando tudo
em seguida: “Porque você é teimosa como uma mula, amiga.”
“Muito obrigada, era tudo que eu precisava ouvir agora.”
“Não se ofenda, mas é verdade”, ela pausou brevemente. “Você nunca
esqueceu o que aconteceu, precisava colocar um ponto, final, mas colocou três. Se
você não deixar isso, vai acabar com você. Sabe disso, não sabe?”
“Ele não tinha nada demais”, eu menti.
“Devia ter alguma coisa, e você sabe o que é, ou não teria fugido daquele gato
do Bernardo na primeira oportunidade”, ela suspirou forçadamente. “Só não devia ser
um corpo atraente, porque o menino era uma vareta!”
Eu ri, querendo chorar.
“Rafa, volta para o luau”, implorei. “Não desperdice sua oportunidade com o
pedaço de mau caminho com quem trocava sussurros.”
Ela riu.
“Não desperdicei, eu já garanti o grandão”, afirmou, sentando-se na areia e me
obrigando a olhá-la. “Mas preciso que fique bem também.”
“Eu estou.”
“Faz cinco anos que você me promete que vai ficar bem”, ela acusou. “E faz
cinco anos que quebra essa promessa.”
Suspirei, ela estava impossível hoje.
“Rafa, volta para sua noite. Eu só preciso de um tempinho aqui, eu estou bem.
Não se preocupe.”
Ela ainda se delongou ali, indecisa.
Quando Rafa partiu, eu fiquei a sós com meus pensamentos e melancolia.
Talvez eu escrevesse um livro, havia muita coisa a ser dita. Talvez pudesse ser de
autoajuda. Talvez eu conseguisse alertar as pessoas a não confiarem em olhos
pequenos e castanhos. Enxergando esses olhos pela memória, eu adormeço. Estava
acostumada demais a dormir daquele jeito, isso não podia ser bom sinal. Acordo
algum tempo depois, com o barulho de Manu, Rafa e Beto e de todos os litros de vodca
que carregam. Acho que o luau acaba de vir até mim.