Na noite enluarada, seguíamos pelas ruas da cidade como bandoleiros. Caio
fazia um batuque inebriante com suas baquetas, tentando lembrar de seus ensaios para
um importante festival que ocorreria dali alguns dias. Outros garotos que haviam se
juntado ao grupo, adequando ao ritmo do colega, produziam sons com suas bocas.
Algumas meninas, que também passaram a nos seguir, batiam palmas, como se
fossem líderes de torcida de alguma escola americana. Beto e Léo seguiam à frente,
indicando o caminho. Eu, Rafa e Manu, embrenhadas ali pelo meio, aproveitávamos
a experiência estimulante, singular. Nunca havíamos feito nada disso, éramos as boas
garotas da igreja. Não conhecíamos o sexo, as drogas ou o rock, não conhecíamos os
rolês, nem as pessoas que participavam deles. Estávamos ávidas por alguma coisa,
mas não sabíamos bem o que era. Temíamos ser esse um sentimento plantado pelo
encardido, forma como chamávamos o diabo, porque chamá-lo por seus outros nomes
podia trazer coisas ruins, podia invocar sua presença. Participar do movimento errante
de adolescentes que tinham todas as respostas era como adentrar um mundo novo, era
um número infinito de possibilidades, podíamos inclusive ser outras, quando
estivéssemos cansadas de ser nós mesmas. Dentre tantos badboys e badgirls, havíamos
nós, as meninas not so bad, num mundo agora not so bad at all. E ao nosso lado, quase
afastado do grupo, caminhava Bergmann, com outro litro de tequila, também quase
vazio.
Manu estava incerta sobre seguir essas pessoas que acabávamos de conhecer,
ela preferia ficar no pub, preferia batatas fritas com bacon e limonada suíça, mas eu
estava curiosa sobre aquelas pessoas, Bergmann principalmente. Eu queria descobrir
até onde ele podia nos levar, até onde eu estava disposta a segui-lo. Enquanto o
desespero por atenção e por ser diferente dos demais percorria o grupo, composto por
meninos e meninas de piercings, tatuagens e roupas coloridas, pretas, descoladas, eu
estudava Bergmann, aparentemente alheio a tudo isso. Ele era alto e muito magro, os
cabelos anelados estavam sempre desgrenhados, tinha os olhos de ressaca sem ser
Capitu, carregava aquele litro de tequila como se precisasse dele para sobreviver.
Nunca entendi direito o que mais me chamava a atenção nele, talvez não fosse nada
disso, nenhuma de suas características físicas, talvez fosse apenas a tristeza que eu
enxergava por detrás de seu comportamento, de suas palavras e voz. Ele era diferente,
mas não precisava fazer nenhum esforço para isso. Às vezes, ele parecia o coração
daquele grupo, porém, facilmente desprendia do bando, como um lobo solitário. Achei
que Bergmann tinha algo que só eu podia ver, infelizmente não era o caso. Não
demorou muito para que eu percebesse que quase todas as garotas a nossa volta
estavam a fim dele, algumas esperavam uma chance há muito tempo. E Gabriel
Bergmann nunca foi o tipo que falava não.
Nesse dia, alguém interrompeu todo o barulho, acusou Bergmann de estar
muito bêbado, propôs-lhe um desafio:
“Ei, Berg! Você está mamado demais, cara!”
“Não estraga o rolê, cara”, Bergmann rebate. “Eu tô bem, pô!”
“Então toca pra gente!”, desafia o menino que não sei o nome.
Bergmann coça a cabeça de novo e ri, fazendo palpitar acelerado o coração de
um monte de meninas. E de repente, um coro começa a pedir que ele toque. Ele solta
um palavrão e interrompe a barulheira.
“Vini, você toca mano, eu canto”, diz, apontando para outro garoto no meio do
grupo, que saca um violão não sei de onde. Bergmann tenta ainda controlar os
protestos que iniciam logo em seguida: “Eu vou cantar Faroeste caboclo, seus filhos
da puta. Se consigo cantar Faroeste caboclo, significa que tô bem”, gargalha, tentando
se equilibrar.
E aí ele começa, aquela letra imensa, faz todo mundo lhe acompanhar. Ele não
erra a letra uma vez sequer, mas ri dos seus amigos que só sabiam alguns pedaços ou
se atrapalhavam em certos trechos. Eu conhecia Renato Russo, mas suas músicas não
costumavam fazer parte da minha vida, não eram músicas que eu ouvia com
frequência, não era minha trilha sonora. Era a trilha sonora de Bergmann, e só por
causa dele, passou a ser a minha. Bergmann parecia gostar de mônicas, então eu quis
me tornar uma, ouviria até Bauhaus, for God’s sake! Eu poderia me tornar o que ele
quisesse, ou precisasse. No entanto, a minha música favorita do artista era uma que
eu nunca ouvira Bergmann escutar, mencionar ou cantar. Pode ter começado com
Bergmann, mas quando eu construí a minha playlist perfeita, a favorita, eu fiz isso
completamente sozinha. Ela também incluía muitos outros gêneros e faixas e foi só
por isso que tudo valeu à pena.