O avião sacolejou bastante no retorno a São Paulo, eu mal tirei um cochilo.
Amanhã, meus dias de cão estariam de volta. Era preciso preparar para encarar
novamente aquela rotina ensandecida. Eu trabalhava num grande escritório de
advocacia na zona leste da cidade, esperava me tornar sócia dele em breve, por isso,
precisava trabalhar mais do que todos os meus colegas; precisava trabalhar como se
não houvesse amanhã. Eu já nem sabia por que ainda fazia isso, por que ainda era tão
ambiciosa, mas uma vez que coloquei o projeto em curso, eu precisava continuar
girando a engrenagem, até ver o que acontecia. Então amanhã minha rotina estaria de
volta: ambientes assépticos, muito café, saltos barulhentos em pisos diferentes, muitas
repartições públicas, muita burocracia, risos forçados, pessoas mentindo e eu me
obrigando a acreditar nelas.
De vez em quando, eu sou acometida por um sentimento absurdo, algo como
uma nostalgia, geralmente dolorosa. Como se eu sentisse falta da minha vida de antes,
da vida numa cidade pequena no interior de Minas Gerais. Faz muito tempo que saí
daquele lugar, e quando penso nisso, eu me dou conta de que nunca estive realmente
lá. Estava sempre pensando no futuro, pensando em sair definitivamente de casa. É
absurdo que após finalmente conseguir o que queria eu sinta falta do que deixei para
trás. Talvez eu esteja fadada a sempre viver como se alguma coisa faltasse, como se
o meu futuro faltasse no meu passado e o meu passado faltasse no meu presente.
Daqueles dias, o que mais sinto falta é do sentimento de constante
autodescoberta. Eu me descobria na medida em que observava os outros, e isso era
fascinante. Outro dia, eu ouvi algo interessante, disseram que aos vinte anos nos
desvinculamos do controle e da influência exercida em nós pelos nossos pais, e aos
trinta não podemos culpar mais ninguém. Eu estava nesse momento de transição, num
momento crítico em que não havia ninguém mais para culpar, mas eu ainda não podia
aceitar toda a culpa. Um pouco a contragosto, eu permitia que algumas lembranças
me invadissem, aceitava me perder um pouco, nesse que foi um dos períodos mais
marcantes em minha vida.
De repente, eu que não amava ninguém estava pela primeira vez apaixonada,
pelo menos era o que acreditava. Achava que era uma paixão avassaladoramente
contida, como aquelas que vira na televisão, mas que não se derramava jamais. Era
assim tudo meio irreal. Se de fato me apaixonei, foi por uma imagem frágil que eu
mesma construí, completamente sozinha, por minha própria conta. Gabriel Bergmann.
Ou Gabe. Ou Berg. Ele era apenas o material no qual me inspirei para criar minhas
ilusões. Ele não existia de fato, era apenas um delírio da minha cabeça e coração.
Escancarei a porta do apartamento, larguei as malas na sala mesmo e caminhei
até o quarto, prendendo os cabelos num coque desajeitado. Enquanto me preparava
para o banho, ouvia os risos altos na sala. Quando Rafa e Beto estavam juntos eu não
precisava esperar nada diferente disso. Manu foi até uma loja de conveniência do outro
lado da rua, precisava comprar uma escova de dentes porque esquecera a sua no hotel.
Ela parecia um pouco preocupada, tentava disfarçar, mas não era muito boa em
esconder as coisas. Desde o dia seguinte ao luau, tentava me evitar, algo me dizia que
as ligações perdidas enquanto estávamos no buggy, bem como seu sumiço durante o
luau, estavam conectadas a esse seu comportamento. Mais tarde eu abordaria o
assunto. Manu dormiria no meu apartamento esta noite, seguiria para sua casa só no
dia seguinte. Ela ainda morava no interior de Minas Gerais. Beto e Rafa
provavelmente iriam embora em algumas horas. Até estranhei quando me
acompanharam até em casa, mas não disse nada. Eu sentia como se os três quisessem
me dizer alguma coisa, então resolvi fazer do jeito deles.
Na sala, eles conversam, batem portas, batem panelas, pratos, copos e talheres.
Na sala, eles dão vida à minha casa, geralmente silenciosa. Ri baixinho.
A água morna anestesiava o cansaço e desorientação do meu corpo e mente,
que ainda não haviam entendido que não estávamos mais no mar, nem no avião. E
enquanto o familiar alívio me inundava, lembranças indesejadas vieram fazer meus
olhos marejarem, trazia ainda a sensação de que eu estava suspensa no ar, ou sozinha
na praia enluarada.
Hold your breath, eu escutei.
Então obedeci, enquanto afundava.