A perspectiva do Joaquim é privilegiada, então eu percebo várias coisas que
não me agradam. Eu me lembro de tomar cuidado, minhas emoções estavam bem
instáveis ultimamente, havia muita coisa ignorada durante encontros anteriores, como
aquele. Talvez fosse o momento de escolher o que fazer.
“Laura, eu estou com fome”, Joaquim diz de repente, depois do que pareceu
uma eternidade em silêncio ao seu lado.
Eu me surpreendo com sua voz, com a forma como me chama.
“Eu deixei uns salgadinhos escondidos na cozinha”, digo, alegre. “Podemos ir
lá comer alguns.”
Ele pensa sobre a sugestão, então concorda. Eu abro um sorriso imenso,
esquecendo todo o restante. Seguimos para a cozinha, o lugar menos movimentado da
casa. Eu coloco Joaquim sentado na bancada, porque as banquetas desapareceram.
Ali, sirvo para ele tudo o que havia separado na esperança de ele poder comer mais
tarde, já que não parecia com fome desde que chegou.
Joaquim come devagar, enquanto me analisa.
Eu deixo que ele faça isso, fico em silêncio, belisco algumas coisas, tentando
lhe deixar confortável.
“Você gosta mesmo do meu pai?”, ele me pergunta de repente.
Eu me assusto, não sei o que devo responder.
“Eu me importo com ele, Joaquim”, digo com cuidado. “Eu me importo muito
com ele, não se preocupe.”
Ele parece surpreso.
“Minha mãe também gosta do meu pai”, fala, mas sei que não é para me afastar.
“Eu sei que ela gosta”, tento sorrir para a criança perdida na minha frente. “Ela
ama o seu pai, Joaquim. Eu sei disso.”
Joaquim fica surpreso de novo, mas parece mais aberto para falar comigo.
“Você ama o meu pai também?”
A pergunta dele me acerta de um jeito doloroso, faço esforço para responder.
“Amar alguém é querer que essa pessoa fique bem sempre”, tento, incerta. “Eu
me sinto assim em relação ao seu pai, Joaquim. E eu também sinto o mesmo em
relação a você.”
Joaquim fica feliz com minha resposta, meu coração dá uns pulinhos, como se
eu tivesse ganhado uns pontos com a criança que agora não parecia mais me odiar.
Estou curiosa para saber por que ele está me fazendo tais perguntas, mas não tenho
coragem de continuar nesse assunto. Até onde percebi, Joaquim era uma criança
bastante negligenciada, eu tentei entender seus pais, ambos eram muito novos quando
ele nasceu, provavelmente não sabiam o que fazer, mas as desculpas que eu podia
inventar em seus nomes estavam se esgotando, sobretudo agora, que eu podia entendê-lo um pouco melhor. Quero poder entendê-lo ainda mais, por isso, preciso ser
paciente, preciso ser cuidadosa.
Em nossos encontros anteriores, Natália sempre se demonstrou disposta a
construir uma amizade comigo, porém, suas palavras, sempre tão dúbias, me colocava
num estado de alerta, o qual eu tentei ignorar. Agora eu não sabia se estava disposta
a continuar entrando nesses joguinhos. Quando conheci sua namorada, Júlia, eu pensei
que estava enganada sobre Natália, mas Júlia não está aqui hoje, e isso me deixa ainda
mais desconfortável. Os sentimentos de Natália em relação à Bernardo eram tão óbvios
que qualquer um poderia perceber. Não acredito que ela faça de propósito, talvez só
não possa evitar. Bernardo, por outro lado, não deixa nada escapar, se ele também
percebe como Natália se sente, consegue fingir ignorância muito bem.
Havia alguns momentos em que eu me perguntava se realmente não estava
atravancando a felicidade de uma família, então eu me lembrava da minha infância e
queria correr dessa situação desconfortável. O motivo principal para isso era o
Joaquim, eu não queria privar uma criança da possibilidade de ver seus pais juntos,
mas agora que ele finalmente me aceitou, talvez eu possa esperar um pouco mais.
“Por que vocês estão aqui comendo escondidos?”, Bernardo entra na cozinha
e beija o filho, tenta esconder sua surpresa por nos ver juntos. “Você não está gostando
da sua festa, filho? Por que não está brincando com os outros moleques?”
Natália está logo atrás dele.
“Filho, está tudo bem?”, pergunta, enquanto se posiciona do outro lado da
criança.
Joaquim balança a cabeça, concordando, continua comendo, olha para mim.
Eu posso ver que ele está feliz com a aproximação dos pais, mas também está
desconfortável, como eu. O que será que está acontecendo na cabeça dessa criança?
“Bernardo, leva o Joaquim para brincar naquele escorregador”, sugiro. “Mas
tenha cuidado, fique perto dele porque o brinquedo é imenso.”
Ele olha para o filho.
“Quer brincar lá, filhão?”
Joaquim concorda.
Bernardo beija minha testa com Joaquim em seu colo, então os dois partem.
Natália está prestes a segui-los, mas eu a chamo.
Ela se volta para mim, não parece ter gostado da minha interferência.
“Pensei que podíamos tomar alguma coisa”, falo. “Não vai demorar, sei que
precisa ficar perto dos convidados.”
Ela pensa por um instante, depois sorri, tentando ser a pessoa amigável que
vinha ensaiando.
“Por que não?”, responde, enquanto pega algumas taças no armário e nos serve
de um vinho branco que já estava aberto na geladeira.
Seus movimentos servem para me lembrar que eu sou a convidada nesta casa.
Eu quase sorrio, encarando esse desafio estúpido.
“Laura, eu preciso agradecer você”, diz, enquanto brindamos. “Sei que você
ajudou o Bernardo a organizar uma série de coisas. Infelizmente, não conseguimos
contratar ninguém a tempo. Foi tudo muito de última hora, pensei que o Joaquim nem
quisesse festa de aniversário.”
“Ele só queria passar mais tempo com o pai”, respondo, tomando um gole do
meu vinho. “A festa foi uma desculpa.”
Ela me analisa com cuidado, sei que controla sua reação e suas próximas
palavras. Penso que posso estar realmente me intrometendo em suas vidas, mas não
consigo evitar. Por fim, ela apenas balança a cabeça, concordando.
“Eles realmente não passam muito tempo juntos”, diz. “É uma pena para o
Joaquim. O Bernardo sempre trabalha demais, nem para em casa direito, foi sempre
assim. E agora ele ainda tem você.”
Natália já devia estar entrando naquela zona perigosa para qualquer
alcoolizado, quando algumas palavras escapam sem que possamos evitar. O que ela
pensava, e sentia, de verdade, estavam cada vez mais visíveis. Eu preferia isso a
qualquer máscara.
“Bernardo não é o único negligenciando os sentimentos do filho, Natália”,
prossigo, sabendo exatamente o que estou fazendo. “Pelo que vi, o Joaquim nunca
consegue o suficiente de nenhum de vocês.”
Natália ri, sei que está furiosa.
“Você está me acusando de alguma coisa aqui, Laura?”, sua voz ainda não
atingiu os decibéis que eu esperava. “Você está me dizendo o que eu devo fazer com
meu próprio filho?”
Eu deixo a taça na bancada e me aproximo dela, tomo suas mãos, tentando ser
a amiga que ela disse que seria para mim. Mostro que posso fazer o mesmo, que posso
atuar tanto quanto ela.
“Eu só estou preocupada com o Joaquim”, digo, procurando ser doce. “Não
estou me enfiando na vida de vocês.”
“Mas eu acho que é exatamente isso o que você está fazendo, Laura.”
“Você disse que seríamos uma família, não disse?”, rebato. “Pensei que eu
pudesse falar com você se percebesse algo assim.”
Ela fica em silêncio, está à beira de uma explosão. Aproveito a oportunidade
para finalizar a partida, acabando com essa farsa insuportável.
“Nesse caso, não seja tão leviana com suas palavras, Natália. Não venha me
dizer que somos família se não é assim que você realmente se sente.” Encaro seus
olhos irados. “Você não precisa gostar de mim, então não finja uma merda que não
existe, porque eu odeio adultos irresponsáveis.”
Finalmente, posso ir embora descansar. O Joaquim está feliz brincando com o
Bernardo, agora a festa é realmente dele. E Natália ficou na cozinha, digerindo a
minha resposta. Se ela fosse capaz de entendê-la direito, não voltaria a me tratar como
uma idiota, entenderia que não pode me manipular.