Eu me sento na roda, assim como todos os outros, em volta da fogueira.
Bergmann toca violão e canta Hoje a noite não tem luar, está no meio de todo o
mundo, mas parece novamente um lobo solitário e triste. Estou feliz por vê-lo tocar e
cantar, mas também porque tive um dia muito bom, consegui um estágio num
escritório de advocacia renomado na cidade e em pouco tempo vou começar a prestar
os vestibulares para a Faculdade de Direito. Minha mãe está feliz, acha que finalmente
verá algum resultado depois de todo o nosso esforço.
Enquanto viajo ouvindo a voz hipnotizante de Bergmann, lembro do momento
em que decidi cursar Direito. Estávamos no segundo ano do Ensino Médio,
conversávamos sobre o nosso futuro, os meus colegas anunciavam suas escolhas:
Medicina, Engenharia, Direito, Matemática, Educação Física, Farmácia, Nutrição. E
quando permaneci em silêncio, eles me questionaram, de forma que fui obrigada a
dizer o que queria fazer com a minha vida: eu queria escrever, eu queria ser uma
escritora. Após muitas gargalhadas, e uma reunião de intervenção com meus
professores quando a notícia se espalhou, eu fui facilmente persuadida. Se você gosta
tanto de ler e escrever, Maria, por que não se torna uma advogada? Escritor no Brasil
só se torna grande postumamente, isso se tiver sorte. Quer mesmo fazer isso? Se eu
gostasse de ler, eu teria escolhido o Direito. E com essas dúvidas plantadas na minha
cabeça, vieram outras que atingiram também o meu coração: como uma garota pobre
como eu, com origens como a minha, podia sonhar tão alto assim? Como eu cuidaria
da minha mãe, se não tivesse dinheiro suficiente? E foi assim que alguma coisa
novamente se partiu, outra transformação aconteceu. Eu seria uma mulher incrível e
poderosa, eu não seria preterida em relação a ninguém, eu faria o que eu quisesse da
minha vida, mas eu precisava ganhar dinheiro primeiro. Se era o Direito que podia
abrir o meu caminho, essa seria a minha escolha.
Novamente, uma tola. Novamente, muito ingênua. Rapidamente eu aprenderia
que o mundo não é uma máquina de realização de desejos. Porém, esse ainda não era
o momento de aprender tudo isso. Agora era o momento de escutar o meu coração
bater mais forte enquanto ouvia Bergmann cantar, era o momento de acreditar que eu
estava me apaixonando por ele.
Rafa e Beto estão ao meu lado, Manu na missa. Embora um pouco triste pelo
nosso desentendimento, não quero lidar com isso agora. Enquanto cantamos todos
juntos a única música que conhecíamos d’A banda mais bonita da cidade, observo
meus colegas, a grande maioria, pessoas completamente desconhecidas, com quem eu
nunca havia trocado uma palavra. Eles parecem felizes, como se pudessem fazer
qualquer coisa, como se pudessem amar qualquer pessoa e ser correspondido, como
se pudessem ser felizes no futuro, como são neste momento, como se a felicidade
fosse durar para sempre. Cada um deles tinha um sonho, falavam disso com
frequência, embora pensassem que não havia ninguém realmente escutando. Caio
queria ser um músico muito famoso, queria viver da música; Léo queria fazer
Engenharia Civil e trabalhar com seu pai, mestre de obras; a garota de tranças, cujo
nome não me recordo, queria casar com Bergmann e ter três filhos; a outra, de
piercings na boca, queria só passar mais um dia nesse bairro deserto, em lenta
construção e expansão, sem preocupar com nada, esquecendo a vida que lhe esperava
em casa, esquecendo a preocupação da sua família com o pagamento da escola de
medicina, para a qual ela havia sido aprovada muito cedo; a menina de cabelos
enrolados queria provar para os garotos que ela podia fazer o mesmo que eles, como
comer espetinho de coração de galinha e beber cerveja, ela até sabia algumas técnicas
do futebol e era torcedora do Corinthians. Observando cada um deles com minhas
lentes, muitas vezes embaçadas, eu percebi que éramos como deuses menores,
capazes de legislar a própria vida. Não conhecíamos os prazos apertados, os boletos,
a economia, a política, as expectativas, a perversidade, nem mesmo nossas vontades
ou aptidões verdadeiras, ou aquelas que poderíamos construir. Não conhecíamos a
ansiedade ou o desespero reais, porque a vida se resumia bastante a uma música do
Legião Urbana e a bebidas alcoólicas, talvez um palheiro. Ali, não podíamos saber
que em alguns anos seríamos rotulados como a geração mais azarada da história.
E aí eu pensava em Bergmann novamente. Qual seria o seu maior sonho? O
que lhe fazia realmente feliz? O que ele esperava da vida? Bergmann nunca deixava
essas respostas escaparem, parecia uma incógnita. Eu achei que fizesse parte do seu
charme, ser assim. Eu achei que ele escondesse atrás do violão e da tequila para criar
essa aura de mistério que fascinava tanto as meninas. Talvez, se eu não tivesse me
deixado levar por essas aparências e conclusões precipitadas, eu poderia ter enxergado
o verdadeiro Gabriel Bergmann.