“Maria, eu não vou!”, Manu praticamente grita para mim. É a primeira vez que
a vejo tão alterada. “Você não consegue perceber o que está acontecendo, não é?”,
questiona preocupada, talvez brava.
“Do que você está falando, Manu?”
“Você está se parecendo demais com aquelas pessoas”, responde minha amiga.
“Essa é mesmo você?”, percebo decepção em sua voz.
Eu quero fingir que não sei do que ela está falando, mas não consigo. Manu
tem razão, estou me tornando alguém muito diferente. Primeiro, já não participo de
nenhuma atividade religiosa, já nem sei se acredito mesmo em Deus. Por que
acreditaria, se Ele só me dizia o que fazer, como fazer, com quem fazer e quando
fazer? Se Ele não me permitia espaço para respirar e para pensar direito? Se deu tudo
para as outras pessoas mas foi egoísta comigo? O que eu podia fazer agora que tinha
tantas dúvidas e não havia ninguém realmente capaz de respondê-las?
A Rafa também se distanciou desses espaços, porém, ela só estava lá para nos
acompanhar. Já que eu e Manu nunca chegávamos num acordo, ela dentro da igreja e
eu o mais distante possível, Rafa podia fazer uma escolha só dela. Rafa era como um
espírito livre, livre de todo o drama adolescente. Fazia sempre o que quisesse, com
quem quisesse, como e onde quisesse, sabia exatamente o que faria do seu futuro, e
ela não precisava de Deus para lhe dizer todas essas coisas. Mesmo assim, Rafa
conseguia ter mais fé que qualquer um de nós. E eu sempre a admirei por isso.
Então, a minha segunda grande mudança: troquei minhas roupas e atitudes,
troquei sapatos, mudei corpo e cabelo. Eu nunca estive realmente feliz com meu
corpo, comigo, para ser mais exata, eu não era o padrão ditado pela indústria da beleza,
era como se o espelho sempre refletisse uma garota diferente. Por isso, eu decidi que
alinharia a forma à imagem, ao invés de fazer o contrário. Nesse sentido, acho que
sempre fui meio tola, qualidade que eu tanto detestava, mas não pude evitar a
transformação, uma que quando ocorreu me libertou. Até me prender outra vez, numa
nova gaiola.
Para Rafa e Manu, sobretudo para Manu, talvez fosse difícil entender, entender
o desespero de não pertencer a lugar nenhum, de estar desconfortável na própria pele,
no próprio corpo, de ter uma origem diferente de todos a sua volta, de ouvir amigas
da sua mãe chamarem você de molambenta, envergonhando a mulher que abriu mão
de tudo para que você pudesse ter um futuro, o desespero de sempre ser preterida em
relação às amigas mais bonitas, mais descoladas, mais inteligentes, aquelas que
sabiam dançar, conforme a música. Tão sufocante! Tudo tão sufocante! Nessa época,
eu queria ser bonita como todas as outras meninas. Ainda não havia entendido que
podia ser bonita do meu próprio modo. Nessa época, eu queria ser incrível,
extraordinária. E eu fui, por um tempo eu me senti assim, até nada mais fazer sentido.
Até não fazer mais sentido dançar essa música, sozinha.
Manu era minha amiga da infância, Rafa apareceu depois. Eu e Manu sempre
fomos muito diferentes, apenas pretendemos ser iguais por um tempo, só que isso não
estava funcionando mais. Rafa era mais flexível, eu me sentia mais livre para
conversar com ela, talvez por isso nos aproximamos tanto, principalmente nessa época
em que uma espécie de cisão aconteceu entre mim e Manu. Eu a amava muito, mas é
tão difícil lembrar disso quando acreditamos que ninguém está nos ouvindo direito,
quando nos sentimos completamente sozinhos no mundo.
Estou de cabeça baixa, refletindo sobre o que ela diz, tentando entender como
de fato me sinto nesse momento.
“Eu não vou com vocês”, avisa Manu de novo. “Eu não quero participar de
nada disso, não quero ficar perto dos seus novos amigos, que só bebem e fumam. Eles
ainda vão causar problemas, Maria.”
“Tudo bem, Manu”, me levanto do banco da lanchonete, quero voltar para casa.
“Você não precisa viver sua vida como eu estou vivendo a minha. Ser sua amiga
também não significa que preciso ser sua cópia.”
Vou embora dali, me sentindo mal por ter magoado minha amiga, mas eu não
aguentava mais ninguém me dizendo o que eu devia fazer.
Nesse momento, estávamos de um lado quase oposto na forma de encarar o
mundo: ela continuava contra o aborto, eu a favor; ela falava bolacha, eu biscoito ou
bolacha, dependia do formato; ela esperando o casamento para fazer sexo pela
primeira vez, eu querendo experimentar agora mesmo; ela sem colocar um pingo de
álcool na boca, eu cada vez mais parecida com o meu pai.