Eu estava certa sobre os meus colegas da nova unidade, eles não aceitaram
nada bem a minha partida no dia do motoqueiro maluco. As pessoas eram mesmo
previsíveis. Sussurravam suas críticas pelos cantos, tentando disfarçar quando eu me
aproximava, mas não era como se quisessem realmente esconder sua insatisfação.
Conforme eu demonstrava indiferença, os cochichos aumentavam, subiam um tom.
Eles queriam me atingir. Não sabiam ainda que precisariam de muito mais para que
eu me importasse. Passei a vida toda evitando esse tipo de gente, que parecia ganhar
alguma coisa com a miséria alheia. Não me intimidavam nem um pouco, se não
parassem por conta própria, acabariam passando vergonha.
Fazia semanas, mas ali estavam eles, com sua infantilidade. Tinham o direito
de não gostar do meu comportamento antissocial, muito pouco empático, nem um
pouco sensível, mas seria interessante ver um comportamento mais maduro, para
variar. Às vezes, era mais fácil entender alguns crimes do que o veneno destilado aos
pouquinhos, no dia a dia, por pessoas supostamente boas, cristãs, responsáveis. Tão
boas que envenenavam os outros com doses homeopáticas porque é muita maldade
matar com um único golpe. Amizade, lealdade e amor pareciam coisas mais fáceis de
encontrar entre criminosos.
Todos os dias, eu mantinha a mesma rotina: chegava sorridente, desejava um
bom dia a todos, colocava um copo de café quentinho na mesa do meu estagiário, que
trabalhava como se fosse meu secretário porque me recusei a contratar outra pessoa,
então seguia para o meu escritório, logo atrás da mesa dele. Tudo isso eu fazia sob
olhares escrutinadores. Eu exercia um pequeno cargo de chefia, era responsável por
um número bem reduzido de pessoas, havia outros dois cargos como o meu, ocupados
pelos meus colegas Fernando e Camila, respondíamos ao diretor da unidade. Juntos
coordenávamos a equipe que trabalhava nas baias, localizadas no centro daquela sala
comercial. Nossos escritórios, localizados nas extremidades do espaço, embora
fechados, não ofereciam muita privacidade: as paredes eram todas de vidro. Então,
para acessar meu escritório, eu precisava necessariamente passar pela equipe nas
baias, e como as paredes de meu escritório não podia escondê-los, eu frequentemente
os via sussurrando ao olharem para mim.
Daquele grupo de pessoas, apenas três respondiam a mim, além do meu
estagiário. Outras seis respondiam ao Fernando e cinco respondiam à Camila. Ele, que
havia completado trinta e cinco anos semana passada, ainda vivia nas baladas da
cidade, dormindo com uma mulher diferente toda noite, segundo as fofocas do
escritório que eu não pude evitar. Camila, mãe de três crianças pequenas, trabalhava
muito para conseguir chegar em casa mais cedo. Ela não conseguia contar com a ajuda
do marido com frequência, ele sempre viajava a trabalho.
Geralmente, nós três nos dávamos muito bem, conseguíamos manter um
ambiente de trabalho harmonioso. O único problema daquele lugar era a fofoca, que
eu tanto detestava. Tinha dias em que eu entrava na sala e as baias estavam num
verdadeiro estado de efervescência. Falavam da vida privada dos outros como se fosse
pública, discutiam tudo em grupo como se fosse pauta de uma reunião importante.
Notei isso no primeiro dia em que cheguei, portanto decidi não me aproximar muito
de ninguém. Normalmente, era assim que eu agia em qualquer lugar a qual chegava,
mas um estado de alerta maior me dominou quando cheguei neste lugar, sobretudo,
porque viera substituir alguém aparentemente amado pelos colegas, mas destituído do
cargo por acusações de racismo. Também sei o motivo pelo qual o ministério aprovou
minha nomeação: dentre todos os outros candidatos, a minha pele era a mais escura.
“Laura”, chamou Dudu, meu estagiário e secretário, espiando dentro do
escritório, “você está pronta?”, pergunta.
Levo alguns segundos tentando compreender sua pergunta, então me lembro
da reunião agendada para aquela manhã.
“Claro!”, minto. “Eu não esqueci completamente dessa reunião, nem um
pouco.”
Dudu entra no meu escritório e fecha a porta.
“Eu preparei umas anotações para você, com base no que conversamos no
outro dia”, ele sorri.
Meu rosto se ilumina.
“Você nem precisa de uma armadura ou cavalo branco, Dudu”, brinco.
Ele parece feliz com minha resposta.
“Acho que eles vão anunciar logo a novidade”, Dudu comenta. “Começaram a
preparar o novo escritório ontem à tarde”, ele aponta para o escritório de frente ao
meu, que até anteontem servia como arquivo.
Dias atrás, o diretor da unidade anunciou que o novo projeto na Ceilândia
contaria com ajuda externa. Ele disse que receberíamos uma espécie de consultoria
até a conclusão dos trâmites burocráticos e início da implementação do projeto, disse
que nossa unidade também seria avaliada por essa comissão consultiva extraordinária.
Fernando e Camila receberam o anúncio com receio, acreditavam que estávamos
sendo colocados sob vigilância, temiam que pudéssemos estar sendo fiscalizados ao
invés de apoiados. Eu resolvi esperar para ver o que acontecia, detestava sofrer por
antecipação.
“Devem anunciar para a equipe toda após nossa reunião de hoje”, digo,
apanhando alguns papéis em cima da mesa. “Você quer me acompanhar na reunião?”,
pergunto.
Dudu faz uma cara de surpresa.
“Eu posso mesmo?”, pergunta empolgado.
“Claro que pode, você estará comigo”, asseguro. “Não se preocupe com os
comentários maldosos.”
Dudu também vinha sendo alvo de alguns ataques, porque é o único estagiário
da unidade que trabalha como um servidor, tendo acesso a reuniões e a documentos
internos. Quando estabelecemos sua carga horária e obrigações, pensamos numa
possível efetivação após a conclusão de seu estágio. Para o cargo que ele pretendia,
não seria necessária aprovação em concurso público. Ele também estava muito
interessado em aprender mais sobre o funcionamento de alguns dos processos de que
cuidávamos, para isso, precisava de acesso a eles. Eu podia oferecer a oportunidade,
então resolvi não contratar outra pessoa, reduzindo custos do meu escritório. No
entanto, como eu não podia pagá-lo com o dinheiro público, retirava do meu próprio
salário o que lhe era devido. Dudu não sabia disso, acredito que não teria aceitado se
soubesse. Ele estava no quarto ano da faculdade de Direito, tinha despesas para pagar,
e não podia contar com a ajuda de familiares, situação que eu entendia muito bem,
por isso propus o acordo.
Mesmo assim, ele ainda era vítima das fofocas, as pessoas estranhavam sua
posição. Não nos importávamos com isso, ambos nos beneficiamos do acordo, o
trabalho era feito com excelência, então os incomodados podiam falar o tanto que
desejassem.
“Eu vou!”, anuncia alegre.
Seguimos para o corredor para pegar o elevador, compartilhado por todos os
servidores e prestadores daquele andar. A sala de reuniões ficava no piso superior.
Nosso prédio era um colosso de vinte e quatro andares, lugar onde funcionavam
inúmeras subpastas, secretarias e outras unidades da administração pública.
“Laura, eu esqueci o meu bloquinho!”, Dudu se dá conta assustado, bem no
momento em que o elevador para no nosso andar.
Eu seguro a porta, enquanto lhe respondo:
“Não se preocupe”, garanto. “Pode voltar para pegar, depois você me encontra
lá, tudo bem?”
Ele hesitou.
“O que foi?”, pergunto, mas percebo que tem alguém no elevador e estou
claramente atrapalhando.
Olho rapidamente na direção dessa pessoa e peço desculpas, sem graça. Em
seguida, peço só mais um instante do seu tempo. É um homem, acho que não o
conheço, não consigo prestar muita atenção. Só vejo que ele concorda, talvez um
pouco a contragosto.
“Você vai ficar sem graça de me encontrar lá depois?”, insisto com Dudu.
“Quer que eu te espere?”
“Não!”, Dudu grita o protesto.
Eu seguro o riso, entrando no elevador.
“Então me encontre lá”, digo. “Seja rápido, Dudu.”
Antes das portas do elevador fecharem, posso vê-lo correndo de volta à nossa
unidade. Reprimo o riso novamente, achando graça do meu pobre estagiário.
“Obrigada”, agradeço ao estranho, mas antes de poder ouvir qualquer
comentário de sua parte, meu telefone toca. Atendo a chamada.
“Oi, Fernando”, ele quer saber se já estou a caminho. “Sim, estou no elevador.
Quase chegando.”
Desligo o telefone, ao mesmo tempo em que as portas do elevador se abrem
novamente. Eu sigo para a sala de reuniões, já estou quase alcançando a entrada
quando percebo que o homem do elevador está logo atrás de mim. Paro por um
instante e lhe encaro. Dessa forma, faço com que ele também se interrompa.
Quando finalmente cravo os meus olhos nele, a imagem do motoqueiro
maluco, que tanto me atormentou em meus pesadelos, vem à tona com violência. Levo
alguns instantes para desfazer essa imagem na minha cabeça. Não podia ser a mesma
pessoa. O homem diante de mim agora não parecia uma besta, usava uma camisa
social branca apertada e cheirava muito bem, o cabelo quase na altura dos ombros,
ainda que levemente desgrenhado, estava bem mais comportado, não estava molhado,
dava-lhe um aspecto quase elegante. Ele não podia ser aquele motoqueiro louco.
Entretanto, seu tamanho lembrava demais o homem dos meus pesadelos.
Acho que estou lhe observando demais, porque ele sorri. Então eu acordo.
“Desculpe”, peço. “Você está me seguindo?”, lanço em seguida, quase com
raiva. Mas eu me arrependo da pergunta estúpida assim que ele ergue uma de suas
sobrancelhas grossas e me encara com curiosidade.
“Depende”, ele responde numa voz grave. “Você está a caminho da sala 316?”
Um pouco chocada com sua resposta, tento lembrar rapidamente o número da
nossa sala de reuniões. Concluo que é a sala em que nos reunimos com frequência,
tanta que eu já nem me lembrava seu número direito.
“Sim, estou a caminho dela”, confirmo.
“Então eu estou seguindo você”, ele reponde sarcástico.
Meio atordoada, eu retomo meu caminho, com ele em meus calcanhares.
Quase podia sentir seu olhar e sorriso de deboche nas minhas costas. Tentei me
controlar para não deixar meu rosto pegar fogo.
Fernando nos esperava na entrada, segurava um lugar para mim perto de
Camila. Ao que parece, só faltávamos eu e o estranho para que a reunião começasse.
O diretor da nossa unidade, um homem na casa dos sessenta anos que fizera carreira
no serviço público após largar a empresa na qual era sócio à beira da falência, recebe
o convidado como se ele fosse uma celebridade. Intercepto uma troca de olhares
preocupada entre Fernando e Camila, então começo a desconfiar de tudo aquilo.
Analisando rapidamente a mesa, vejo que tem muitas pessoas sentadas ali. Consigo
identificar pelo menos dois diretores de outras unidades, alguns membros do time
jurídico e chefes de outras células da organização.
Nesse momento, enquanto os diretores recebiam o convidado, Dudu entra na
sala. Eu não percebi que a porta já estava fechada, então por um instante todos os
olhos se voltam para o meu estagiário que não conseguiu entrar sem fazer barulho.
Posso ver Dudu se petrificando lentamente sob o monte de olhos. Eu me levanto,
reclamando a atenção para mim, enquanto isso aponto uma cadeira no canto da sala
para Dudu, mesmo lugar ocupado por outros secretários.
Eu me sento em seguida, e todos voltam ao que faziam antes.
Em pouco tempo, nosso diretor chama a atenção de todos e apresenta o homem
ao seu lado. Confirmando a suspeita, ele diz que o estranho será o consultor externo,
aquele tão temido antes mesmo de sua chegada. A sala aplaude, mas consigo ver muita
gente preocupada.
Bernardo.
O estranho chama-se Bernardo.
Analisando sua figura muito sorridente para o meu gosto, percebo que o nome
lhe cai muito bem. Ele lembra perfeitamente um urso, mas também poderia ser um
cachorro. Infelizmente, tudo indica que serei forçada a descobrir com qual dos dois
ele mais se parece. Urso ou cachorro, acho que preciso tomar cuidado para não virar
comida.