Uma caneca de café brotou do nada na minha mesa. Eu parei de digitar,
erguendo o olhar para a mão que a largara ali. Gabriela? Ela parecia um pouco tímida,
um pouco perdida, mas estava diante de mim, com um sorriso incerto.
“Isso é para mim, certo?”, brinco, esperando a confirmação dela. “Muito
obrigada, você acaba de salvar o dia”, tomo um gole, faço um gesto que indica uma
cadeira ao lado dela, de frente para mim.
Gabriela se senta.
“Você precisa de alguma coisa? Posso ajudar de alguma maneira?”, pergunto.
Ela solta o ar que eu não sabia que prendia.
“Eu quero agradecer você, Laura”, ela diz finalmente.
Eu não compreendo.
“Pelo que você quer me agradecer?”
“Aquele dia...”, ela espera, tomando coragem, então continua: “Você não
defendeu só a Bibi, você defendeu todas nós. Foi corajosa, Laura. Mais corajosa do
que qualquer um aqui, homem ou mulher.”
Analiso suas palavras, tomando mais um pouco de café.
“O que estou dizendo é que você não está mais sozinha aqui dentro”, Gabriela
continua. “Se você decidiu ser corajosa, eu posso fazer o mesmo. Podemos ser amigas,
se você quiser. Eu sei como esse lugar, esse trabalho, pode nos deixar solitárias. As
pessoas aqui não são muito receptivas.”
Acho que estou sorrindo para Gabriela.
“Eu agradeço, Gabriela”, digo enfim. “É bom saber que posso contar com
você.”
“Sobre o Fernando, eu o conheço pouco, mas sei que não pensa como o Pablo,
ele gostava da Bibi”, ela me encara. “Ele ficou muito mal depois do que aconteceu,
fez uma reunião com nosso time e disse que não vai tolerar aquele tipo de
comportamento ou comentários.” Gabriela hesita então, decidindo se continua,
prossegue depois de firmar seu olhar em mim de novo. “O Pablo... Ele não é uma
pessoa má, Laura. Ele é meu colega, ele me ajuda muito. Eu conheço a família dele.
Ele também refletiu bastante depois daquele dia. Acho que o problema é essa divisão
que eles fazem das mulheres, entre santas e pecadoras, sabe?”
Eu podia entender o que Gabriela estava dizendo. Ela me fez lembrar da
conversa que tive com Fernando após o episódio. Ele estava terrivelmente
envergonhado, pediu desculpas em nome do colega. Disse que algo assim não voltaria
a se repetir. Eu decidi acreditar nele, disse que entendia sua posição, mas garanti que
não aceitaria o mesmo comportamento de antes. Outra Abigail não seria massacrada,
não na minha frente. E para isso era preciso que gente como o Pablo tomasse muito
cuidado com suas palavras. Como nada do que acontecia aqui dentro ficava realmente
em segredo, toda a equipe acabou sabendo da nossa discussão na cozinha. Pela
primeira vez, os fofoqueiros fizeram um favor: divulgaram o meu aviso. Eu não
permitiria aquilo de novo, e agora todos sabiam disso.
Talvez esse fosse mais um privilégio meu, estar numa posição em que eu podia
exigir isso, um mínimo de respeito. Em que podia fazer o que eu bem entendesse sem
temer represálias, como atacar Walter Ramires. Eu devia obedecer a hierarquia
institucional, como todos, mas quando o diretor da unidade me chamou,
estupidamente bravo com meu comportamento durante o encontro com o empresário,
eu não permiti que me desse uma advertência, porque eu consegui o acordo, porque
eu ainda podia fazer da vida de ambos um inferno, caso divulgasse essas informações
para a imprensa, anunciando a recusa do empresário a um investimento social, mesmo
após os escândalos. Era um plano completamente falível, o mundo tinha o poder de
me engolir, de uma só vez, eu não era nada, não era ninguém, mas eu perdi tudo. Não
tenho mais nada para perder. Por isso, faço o que eu bem entender, porque eu aguento
as consequências, porque não preciso me preocupar com o que vão pensar de mim.
No meu caso, não ter nada a perder, era um privilégio. Um privilégio estranho.
“Laura?”, escuto Gabriela chamar.
“Desculpe, Gabriela”, peço, voltando à conversa. “Eu estava pensando nisso
que você disse”, minto, mais ou menos.
“Podemos almoçar juntas um dia desses?”, ela pergunta, enquanto se levanta.
“Será por minha conta, para te agradecer.”
Esboço um sorriso amigável.
“Eu é que não vou perder comida de graça”, brinco. “Claro, quando você
quiser. Obrigada por vir aqui, significa muito.”
Como Dudu estava de volta, eu podia me permitir um pequeno luxo naquela
noite. Escolhi um restaurante japonês que tinha indicações online muito positivas e
fiz uma reserva. Um pouco de saquê e salmão me ajudariam a relaxar. Eu estava feliz,
acabara de conseguir mais um investidor para o projeto, e dessa vez a escolha foi
inteiramente minha. Era uma senhora filantropa muito conhecida, todo ano ela
escolhia um projeto para amadrinhar. Nossa reunião foi tão diferente! Nós rimos e
comemos, nós conversamos sobre nossas vidas, falamos sobre seus outros projetos e
ela ainda me serviu chá. Embora os valores doados por ela não chegassem perto do
que eu havia conseguido anteriormente, nossa reunião foi muito mais agradável, e eu
sabia que ela ajudaria a fiscalizar a destinação dos recursos, acredito que participará
até mesmo das ações nas comunidades beneficiadas. Foi um dia bom, um dia muito
bom.
A minha mesa no restaurante japonês era privada, estava localizada dentro de
um espaço que parecia uma pequena salinha, mais um dos motivos por eu ter
escolhido esse lugar. Ali eu podia beber e comer o tanto que quisesse, não precisava
ver ou falar com ninguém. Era como um pequeno pedaço do céu na terra. Coloquei
uma música no meu aparelho celular, baixinha. E era como se eu já tivesse feito tudo
o que queria nesta vida, como se estivesse pronta para morrer, se fosse o momento.
Eu não acreditava que havia momento certo para morrer, não exatamente, mas se
existisse, como muitos acreditam, o meu podia ser agora. Eu aceitaria a oferta de bom
grado. Talvez a morte fosse como um sono eterno, relaxante, eu gostava muito dessa
teoria, crença ou abordagem, não sei como nominar, só quero muito acreditar nela.
Um adormecer tranquilo, como agora, depois de um dia como hoje. Uma morte assim,
será que era pedir demais? Quase podia sentir o sono, ou a morte, chegando. Eu sorria,
enquanto minha cabeça pesada escorregava para um lado, acho que bebi demais. Ela
escorregava, até encontrar um lugar aconchegante, ao qual me agarrei. Era a morte
enfim? A morte tinha um braço musculoso, mas não me importei, agarrei mesmo
assim. A morte era cheirosa também e sabia confortar as pessoas com seu ombro largo.
A morte era tudo o que eu precisava naquele momento.
“Por que você está aqui sozinha?”, Bernardo sussurrou.
Então era Bernardo, não a morte. Fazia sentido. Por um segundo eu quase me
afastei, mas estava tão bom ali que não me mexi, pelo contrário, ajustei meu corpo ao
dele, aceitando o conforto oferecido. Ele me pegou e me colocou em seu colo, me
abraçou, me deixou descansar em seu peito, cheirou meu cabelo, beijou minha testa.
“Você está bem?”, sua voz era sussurro, estava com medo de eu acordar e
correr dali, correr dele de novo.
“Eu não consigo dormir direito”, confessei, massageando minha bochecha na
sua camisa. “Vou ficar aqui só um pouquinho. Pode me emprestar seu corpo? Ele é
muito macio.”
Ele suspirou baixinho, deixando algo escapar, como agonia.
“Está desconfortável para você?”, perguntei.
Como resposta, ele me apertou ainda mais.
“Eu posso te emprestar, te dar, o que você quiser, Laura”, sussurrou de novo.
“Você tem o que quiser de mim.”
Eu sorri, me aninhando ainda mais ao seu corpo, que esquentava muito, pegava
fogo. Então eu senti sua ereção.
“Bernardo...”
Eu tentei me afastar, ele não deixou.
“Não faz isso, Laura”, ele implorou. “Não liga pra isso, eu consigo me
segurar.”
“Bernardo...”
“Não vai embora de novo, por favor”, eu estranhava seu tom de voz. “Pode
dormir, eu prometo que me comporto.”
Eu confiei nele, estranho, muito estranho. Talvez fosse o cansaço.
Dormi profundamente, por quase duas horas. Devia ter sonífero no corpo dele,
ou relaxante muscular. Era isso ou o álcool que eu ingeri. Quando abri os olhos, ele
ainda me apertava na mesma posição de antes, ergui o olhar envergonhado para seu
rosto, logo acima do meu.
“Oi”, eu disse, sem graça.
Bernardo sorria de um jeito que eu ainda não tinha visto.
“Oi”, ele repetiu, também um pouco sem graça. “Você dormiu bem?”
“Sim, eu dormi”, confessei, porque não havia motivos para mentir. “Como não
fazia há muito tempo. Muito obrigada, Bernardo.”
Eu tentei descer do colo dele, mas novamente ele não me permitiu.
Meu rosto pegou fogo.
“Não me diga que vai cobrar seu pagamento agora”, brinquei, mas me
arrependi, porque o semblante dele se tornou muito confuso de entender, parecia
muito triste.
“Desculpe”, eu sussurrei, envergonhada.
Ele continuava com um semblante torturado, fiquei com medo do que via.
“Você está bem?”, eu tentei, incerta, mas ele não respondeu.
Quando Bernardo não responde, eu levo minha mão até seu rosto, até seu
queixo, obrigando-o a me olhar.
“Você está bem?”, insisto.
Ele dá um sorriso doloroso de ver.
“O que eu preciso fazer pra ter você?”, ele me pergunta.
Retiro a mão de seu queixo, mas ele a alcança e a coloca em seu rosto de novo,
faz minha mão acariciá-lo, enquanto sua mão acaricia a minha.
Eu penso com cuidado numa resposta.
“Depende”, começo, ainda pensativa. “Em qual sentido você me quer?”
Ele se assusta com minha pergunta, fica confuso, então aproveito para
continuar:
“Se for uma questão de sexo, podemos resolvê-la agora mesmo”, digo,
esperando sua reação alarmada, confusa. Gosto do que vejo, então continuo, no
mesmo tom de brincadeira: “Só que se você me quiser de outras formas, terá um
pouco mais de trabalho, e não podemos garantir nada.”
“Laura...”, ele se interrompe, ainda não entende o que estou falando.
Cruzo minhas pernas em torno dele, aproximo nossos rostos, trago suas duas
mãos para o meu colo e as aperto.
“Então, o que você quer fazer?”, pergunto, brincando com suas mãos, quentes.
Posso ver seu olhar de fome, ele mal se segura, mas sei que não vai avançar
sem minha permissão. Por que será que tenho tanta certeza disso? Devo ter perdido o
juízo.
“Eu quero beijar você”, ele responde, garganta seca.
“E se você me beijar agora vai poder se segurar?”, questiono.
Ele engole em seco.
“Não”, responde com sofrimento.
“Então você já tomou sua decisão?”
Bernardo solta suas mãos do meu controle e me aperta contra ele, posso sentir
seu membro enrijecido, é exatamente o que ele quer que eu sinta.
“Então está bem”, digo, levando meus lábios até os dele.
Mas Bernardo me interrompe, com muita dificuldade. Segura meu rosto a
centímetros do seu. Olha sedento para os meus lábios.
“Deve ser a coisa mais difícil que eu já fiz na vida”, admite, todo tenso. “Só
que eu quero você de muitas outras formas.”
Meu coração, que às vezes parecia pedra, não se comportou. Mas eu sabia
exatamente o que estava fazendo ali. Eu estava apostando, apostando com Bernardo,
apostando que eu quebraria o seu jogo. Eu gostava de vê-lo sofrer, eu gostava de vê
lo implorar. Talvez a equipe médica que me avaliou após o incidente na infância, bem
como os terapeutas e psiquiatras que vieram depois, estivessem certos: eu precisava
reprimir certos impulsos, como a vontade de fazer alguns animais sangrarem. Eu não
estava certa se com Bernardo seria diferente dos casos anteriores, como o agressor da
minha amiga na infância, Walter Ramires ou os meus colegas de trabalho, mas queria
pagar para ver. De toda forma, eu sabia no que estava me metendo, porque eu já
conhecia Bernardo o suficiente, conhecia o funcionamento do mundo e o desenho das
pessoas a minha volta, sabia como brincar nesse jogo, não me importava com nada.
No fim das contas, eu não esperava nada, não ganharia nada com aquilo, não tinha
nenhum objetivo, mas como eu também não tinha nada a perder, podia fazer o que
bem entendesse. Estranho demais, esse meu privilégio.
Havia, no entanto, outra possibilidade: por saber exatamente o que ele queria,
eu estava disposta a deixá-lo ter, porque Bernardo me ofereceu um lugar muito bom,
onde eu podia enfim dormir, onde eu podia descansar. Poderia funcionar como um
acordo, semelhante a outros que fizemos antes.
Ele ainda respira com dificuldade, me aperta contra seu membro enrijecido.
Enquanto espero para ver o que ele faz em seguida, percebo as tatuagens que cobre
um de seus braços. É a primeira vez que o vejo numa camisa de manga curta, é a
primeira vez que vejo suas tatuagens. Enquanto se controla, ele nota que eu o estudo.
“Não gosta de tatuagens?”, ele me pergunta.
Eu sorrio para Bernardo.
“Fica bom em você”, respondo.
Ele geme, quase quebra sua própria decisão.
“Devo ficar montada em você assim por quanto tempo?”, sussurro, sabendo
exatamente o que estou fazendo.
Ele me olha com sofrimento.
“Você é muito má”, brinca, voz trêmula, febril.
“Vamos para casa?”, sugiro, tentando ser doce.
Ele suspira muitas vezes, antes de balançar a cabeça, concordando.
“Precisa de um minuto?”, pergunto.
Ele ri, sem graça.
“Acho que preciso de mais”, responde.
“Vamos fazer o seguinte”, começo. “Eu vou me levantar, vou ao banheiro,
você fica aqui. Leve o tempo que precisar. Depois vamos para casa, tudo bem?”
Bernardo concorda, mas saio de cima dele com dificuldade, porque ele ainda
não tem certeza se pode me soltar.
Fazemos como o combinado.
Quando retorno do banheiro, ele parece bem melhor. Esperava por mim perto
da porta. Eu entro e ele me puxa para um abraço muito apertado. Tenho dificuldade
para respirar.
“Pensei que você me odiasse”, ele confessa.
Consigo soltar meus braços do seu abraço sufocante, com eles livres posso
cruzá-los em torno do pescoço dele. Bernardo é muito alto, mas facilita a minha vida,
quando me ergue para que eu possa envolvê-lo.
“Eu te odeio mesmo”, brinco. “Vou fazer você sofrer como um condenado,
Bernardo.”
Ele ri no meu pescoço.
“Tem certeza de que quer fazer isso?”, pergunto, talvez preocupada. “Você já
se enganou uma vez.”
“Você não me assusta, Laura”, ele promete.
Fico com medo, não sei bem de onde vem essa sensação. Quando as presas não
demonstram medo, temos que partir para um combate direto, e geralmente o mais
forte é o vencedor. Eu confiava na minha força, mas só ganhei até agora porque não
demonstrei medo, porque pude provocá-lo ao invés de demonstrá-lo. Dessa vez, teria
que tomar mais cuidado.