Minha avó sempre falou de honestidade quando a gente crescia, de levar uma
vida honesta e digna, acho que ela só tinha medo da gente querer subir o morro, porque
era mais fácil subir o morro. Era comum subir o morro pra subir de vida. Certeza que
seria mais fácil do que ficar o dia todo estacionando esses carrões de burguês.
Dirigindo essas máquinas um pouquinho, sonhando com uma vida em que a gente era
dono de uma assim. Sonhando com a vida dos playboys.
Meu pai morreu quando a gente era criança, porque achou que ele podia subir
o morro. Minha mãe saiu de casa um dia e nunca mais voltou, acho que ela morreu.
Deve ter sido as drogas. Minha avó criou a gente sozinha, ralando como uma
condenada na mansão de ricaço que ainda pechinchava o pagamento dela do mês.
Quando minha irmã ficou doente, achei que eu não ia dar conta, que também teria que
subir o morro. Pensei em fazer um tanto de besteira, mas aí um dia, alguém no trabalho
me ajudou. Eu achei que era invisível, mas ela me notou. Disse que reparou que eu
estava triste há uns dias já, queria perguntar se estava tudo bem, mas sem coragem de
conversar comigo. Achei engraçado, alguém naquele lugar me tratar como gente.
Aquele tanto de engravatado, sem tempo pra nada porque estavam ralando pra
construir um país melhor, falando de projeto na Ceilândia como se morassem aqui,
como se soubessem de tudo, mas não davam nem bom dia pra gente como eu.
Invisível.
Nós trocamos umas ideias, a Laura e eu, ela conversou bastante comigo.
Algumas vezes, ela me levava café e uns sanduíches. Contei pra ela sobre a minha
irmã, daí ela se ofereceu pra pagar as contas do hospital. Fique morrendo de vergonha,
queria ainda mais subir o morro, mas ela me convenceu. Disse que podia ser um
empréstimo, que eu podia pagar ela depois. Eu aceitei, porque minha irmã precisava.
Minha irmã começou o tratamento, eu e comecei a trabalhar muito mais, pra mudar
de vida, porque eu não quero subir o morro.
Esses dias a Laura disse que se eu frequentasse um lugar que ela tinha
conseguido me colocar, eu podia conseguir um emprego melhor, que pagava mais.
Ela ainda tirou um sarro, falando que eu podia pagar minha dívida mais rápido.
Resolvi tentar do jeito dela, porque ela era muito legal, era gente boa. Agora estou
dando um duro danado pra trabalhar e estudar. Só não quero subir o morro, por causa
da minha avó.