Bernardo podia ter um nome de batismo que remetia a um urso ou a um
cachorro, mas o animal com o qual ele mais se parecia naquele momento era o tubarão.
Uma rápida pesquisa na Internet confirmou minhas suspeitas. Ele era um empresário
de sucesso impressionante, sobrevivia no mundo do capital engolindo peixes menores.
Pelos artigos e notícias que li, já havia abocanhado até mesmo as baleias, fazendo
lhes sangrar. O que um homem como ele queria aqui? Do que, ou de quem, ele estava
atrás? Ele não podia estar envolvido nisso por uma causa nobre, não participaria de
um projeto que não oferecesse algum tipo de retorno. Pelo menos, eu não conseguia
acreditar nisso. Mas a parceria ainda podia funcionar, caso os termos do acordo
fossem razoáveis, caso a administração pública realmente saísse beneficiada e não
lesada. Caso, e essa era a única razão pela qual eu queria tanto ver o projeto funcionar
perfeitamente, seus destinatários diretos, crianças e adolescentes da Ceilândia,
percebessem alguma diferença significativa em suas vidas. Do contrário, tudo não
passaria de discursos políticos e institucionais completamente vazios.
Embora fosse este emprego que me permitia os meus pequenos privilégios e
liberdade, eu não estava aqui apenas para benefício próprio. Se não pudesse fazer nada
de fato, se estivesse aqui só para preencher papéis e participar de reuniões sem sentido,
eu escolheria trabalhar noutro lugar. Muitas vezes, a rotina era realmente frustrante,
não conseguíamos perceber os resultados imediatamente, mas sabíamos sim quando
havia uma construção decente em andamento.
Eu não era tão idealista antes de assumir o novo cargo, também não sofri
nenhuma transformação extraordinária, ainda sou a mesma pessoa com inclinação
para a apatia. Não gosto muito de pessoas, na verdade. Prefiro evitá-las. Todavia, não
suporto ver crianças em situação de vulnerabilidade, talvez por lembrarem a minha
infância. E se somada a essa vulnerabilidade estiver uma negligência não só parental,
mas estatal, algo como uma fúria me domina, fico cega. E cega de raiva, eu não posso
controlar meus impulsos. Tive uma única crise assim na vida, de cegueira, de raiva
incontrolável. Foi quando eu estava no primeiro ano do ensino médio, numa escola de
periferia numa cidade do interior nordestino.
Eu era uma criança sem habilidade para fazer amigos, mas uma garota gentil
se aproximou de mim o suficiente para que fizéssemos algumas refeições juntas
durante o recreio escolar. Isso foi mais do que suficiente para que quando eu a visse
sendo atacada por um homem bem mais velho num beco escuro eu agredisse seu
agressor até a beira da morte. Ele, alcoolizado e pego de surpresa, não conseguiu se
recuperar do meu primeiro golpe, desferido contra sua cabeça com a primeira coisa
que encontrei pelo caminho: uma pedra. Eu podia ter parado ali, ter corrido com minha
amiga e buscado ajuda, mas eu não o fiz. Eu continuei desferindo golpes desajeitados,
com toda a força que eu tinha. Fiquei cega, a raiva me consumia. E não era uma raiva
só daquele agressor, era uma raiva represada há muito tempo. Aquele homem passou
de agressor de uma amiga a meu agressor, à representação de todos os meus
problemas, conflitos e traumas.
Como resultado, eu terminei sozinha novamente. Aparentemente, eu era uma
adolescente com tendência para a psicopatia, a distância era recomendada. O agressor
terminou como a vítima, recebendo todo apoio estatal necessário, enquanto minha
amiga se mudou para bem longe de mim. Quase terminei como uma criminosa, mas
minha família conseguiu recorrer, a única coisa que fizeram por mim. O primeiro
grande problema que causei a eles foi ter nascido, mas até podiam tolerar isso, já o
segundo grande problema causado era intolerável. Ficou impossível conviver naquele
lugar, com aquelas pessoas. Eu sabia que precisava conseguir minha independência
logo e sumir dali. Foi o que fiz, mas às vezes nem mesmo toda a distância que coloquei
entre nós é suficiente.
Não me arrependo do que fiz. Se mais uma vez estivesse diante daquele beco,
presenciando uma cena como aquela, eu faria de novo. Sabia disso. Não tinha nem
mesmo medo das consequências. É como se eu não tivesse nada a perder, e de fato
não tenho. Nesses momentos, quando estamos sozinhas diante de um beco escuro e o
monstro está prestes a nos devorar, não há bondade no mundo que possa nos salvar,
não há poder estatal nenhum para nos ajudar. A polícia some, a escola some, os
representantes do povo somem, os cristãos somem, os cidadãos de bem somem, os
amigos somem, as famílias somem, os vizinhos somem, somem as mulheres e homens
orgulhosos de sua força e junto com eles todos os heróis do mundo, somem
prefeituras, estados e o Estado. Eu não gosto de pessoas adultas, velhas ou novas,
porque elas só têm uma chance de se salvarem: quando ainda são crianças. Se já
cresceram, perderam sua chance. Dificilmente eu me orgulharia de algum adulto, ou
me sentiria remotamente inspirada por um. Nesse sentido, acho que ainda sou uma
criancinha esperando encontrar alguém decente como referência. Lamentavelmente,
o humano ideal, perfeito, não existe. Mesmo assim, não quero me contentar com
protótipos defeituosos.
A rotina em nosso ambiente de trabalho não mudou muito nos dias
subsequentes à chegada de Bernardo. Posso até reconhecer que fui beneficiada, de
certa maneira. Como tinham um assunto fresco, a equipe retirou o foco de mim.
Também moderaram os ataques, porque temiam represálias se de fato o estranho
estivesse ali para fiscalizar o trabalho. Embora Bernardo não ficasse muito em seu
escritório, bem de frente ao meu, a sensação era de que ele vigiava a todos mesmo não
estando lá. Outras pessoas também encontraram semelhanças entre o nosso consultor
externo e o motoqueiro maluco, mas ninguém era corajoso o bastante para lhe
perguntar isso diretamente.
Os dias foram passando, a quantidade de trabalho aumentando e eu novamente
sofria com a insônia. Continuava saindo do escritório muito tarde, Dudu estava
terrivelmente sobrecarregado na faculdade, então eu tentava aliviar um pouco suas
atribuições, assumindo-as eu mesma. Bernardo aparecia cada vez menos, nunca dava
satisfações. Em alguns dias, eu me esquecia completamente que ele trabalhava
conosco. Não houve mudanças significativas a princípio. Era a rotina exaustiva de
sempre, portanto, somente quando as luzes da sala começavam a se apagar aos poucos,
a luz da tela numa baia, depois noutra até apagarem-se todas, seguida pela luz de um
escritório e depois o outro até o “boa-noite, Laura querida, não demore muito, vá
descansar” de Camila, é que eu me dava conta das horas.
Enquanto digitava um relatório, após a despedida de Camila, que havia partido
há quase duas horas, uma luz se acendeu na solidão e escuridão do escritório. Eu levei
um susto. Ouvi passos pesados e firmes aproximando, involuntariamente agarrei
minha caneca de porcelana, preparando para usá-la como arma se preciso fosse. Em
questão de segundos, uma figura imensa cruzava minha porta.
“Bernardo”, suspirei aliviada, largando a caneca em cima da mesa.
Ele me avaliou brevemente, tinha as roupas meio amassadas e o cabelo
desgrenhado, como se tivesse acabado de acordar, também parecia estar de ressaca.
“Eu te assustei, não foi?”, conclui. “Desculpe, Laura. Não sabia que ainda
estava aqui. Pensei que pudesse ter esquecido sua luz acesa.” Ele passa uma mão pelos
cabelos desgrenhados. “Mas por que você ainda está aqui? Geralmente não fica
ninguém até esse horário.”
Ele pareceu intrigado, assim como eu estava. Como ele sabia que não ficava
ninguém no escritório até esse horário? Quando ele aparecia por aqui, não costumava
ficar muito. Era sempre um dos primeiros a sair.
“Tenho umas coisas para terminar, estou meio enrolada”, respondi. “E você,
por que voltou?”
“Eu não apareci aqui hoje”, ele ri.
Minhas bochechas queimam.
“Ah!”, tento disfarçar a confusão. “Podia jurar que tinha visto você aqui mais
cedo”, minto.
Ele não parece nem um pouco convencido.
“Precisa de ajuda?”, oferece, me pegando de surpresa.
“Não! Não precisa! Estou quase terminando por hoje”, minto de novo.
Ele analisa minha resposta, ele me analisa. Espero educadamente.
“Você comeu?”, Bernardo pergunta então, me surpreendendo mais uma vez.
No instante de confusão e surpresa em que me encontrei, não consegui me
lembrar prontamente quando havia feito minha última refeição. De toda forma,
independente do que quisesse meu estômago, eu tinha uma resposta pronta para o
homem na minha frente.
“Sim, claro. Eu me alimentei direitinho.”
Ele também não engole essa, mas compreende a minha mensagem, clara como
suas intenções: não, eu não faria uma refeição com ele.
“Ótimo!”, ele recua em direção à porta. “Se precisar de alguma ajuda, me avisa.
Devo ficar um tempinho por aqui.”
“Obrigada.”
Com um aceno rápido, ele parte. Pouco tempo depois, acende a luz de seu
escritório. Eu corro para terminar meu relatório, agora quero ir embora o mais
depressa que eu puder.