“Maria, eu posso me sentar?”
Quando ergo meu olhar, encontro Léo. Eu concordo, ele se senta.
Ficamos em silêncio, no banco da praça próxima ao cemitério. As pessoas
começam a ir embora, agora que já se despediram de Bergmann, ou pelo menos
fingiram. Eu precisava me afastar, porque não conseguia mais ouvir as fofocas sobre
sua morte, sobre sua vida, enquanto ele era enterrado. Eu não tinha muita energia para
lidar com isso agora. Eu só queria correr, ou podia acabar fazendo alguma besteira.
“Eu não consigo acreditar”, Léo começa, tentando controlar o choro. “Pensei
que era impossível passar por isso de novo.”
Eu entendo o que ele quer dizer.
“Foi cedo demais, para os dois”, continua. “Quando perdemos o Caio, eu achei
que o Berg não ia dar conta. Acho que ele nunca aguentou, não de verdade, sabe?”
Eu assenti, sem poder confiar na minha voz ainda.
“O Berg tinha um tanto de problema fodido, mas pirou quando perdemos o
Caio”, após uma pausa, ele continua: “Maria, tem uma coisa que eu preciso te dizer.”
Eu lhe encaro, com medo.
“O Berg me daria um soco por te contar isso, mas acho que preciso fazer isso
agora”, ele hesita, mas prossegue quando reúne coragem suficiente. “Ele gostava de
você, Maria.”
Ele me encara, espera minha reação, eu faço o melhor que posso para não
começar a chorar convulsivamente, porque se eu começar agora, não vou parar nunca
mais.
“O povo dessa cidade só fala bosta, mas ninguém conhecia o Berg”, Léo
continua. “O moleque trabalhava desde os onze anos pra sustentar a avó doente, a mãe
drogada que nunca parava em casa e a irmã mais nova, que logo engravidou e arrumou
mais uma boca para o Berg alimentar. Ele fez todo tipo de trabalho fodido pra
sustentar todo mundo. Trabalhou como repositor e caixa em supermercado, trabalhou
na construção civil, trabalhou como frentista e mais um tanto de trabalho de merda
que pagava uma porcaria. Ele achava que precisava fazer isso, sabe? O Berg achava
que precisava assumir essa responsabilidade porque se sentia culpado pela morte do
pai dele.
“O pai do Berg abusava dos filhos quando eles eram crianças, Maria”, ele se
engasga, controla o choro. “Num dia, ele não aguentou, aproveitou uma chance. Mas
foi legítima defesa, qualquer um podia entender isso. Ninguém ligava para aquele
bosta mesmo, então o caso foi encerrado. Mas o Berg achou que ele precisava cuidar
de todo mundo, ele se sentia responsável pela morte do demônio do pai dele.
Trabalhava pra burro, mas nunca era o suficiente. Cuidou de todo mundo, nunca
conseguiu estudar, vivia fazendo esses serviços de merda, até o Caio morrer. Depois,
alguma coisa mudou.
“Ele se mandou daqui, perdemos o contato, mas eu tinha notícias dele de vez
em quando. Parece que viveu como cigano por um tempo, viajando pelo Brasil,
vivendo como dava, fazendo uns bicos, mais um tanto de serviço de merda, certeza.
Acho que o Berg perdeu a cabeça, sabe? Era muito fodida a vida dele, não consigo
entender como ele aguentou. Ele nunca falava dos problemas dele, mas a gente era
vizinho. Tinha muita coisa que não dava pra esconder. Algumas vezes, ele deixava
escapar alguma coisa. Acho que eu fui o mais perto que ele teve de um amigo.”
Léo começa a chorar convulsivamente, eu o abraço. Parece que estamos noutro
lugar, estou chorando também, mas não consigo me ouvir. Devo estar morta também.
Quando ele se acalma, limpa o rosto como pode e continua:
“Os problemas dele com a bebida aumentaram depois da morte do Caio, e sei
que andou usando umas coisas perigosas. Ele realmente se perdeu, Maria. Eu não
consegui fazer nada. Aí ele foi embora e eu sabia que ele não ia voltar. Mas eu ainda
tinha esperança de que o Berg conseguisse melhorar, de que pudesse arrumar a vida
dele porque não tinha mais tanto peso nas costas. Eu me enganei, Maria. Eu vacilei
feio. Talvez, se eu pudesse ter entendido, eu podia ter feito alguma coisa.
“O Berg era gentil com todo mundo, sempre tratava os mais velhos com
respeito, ajudava qualquer um que pedisse, nunca entendi isso nele. Ele ficava com
um tanto de menina, bebia pra cacete, mas acho que era o jeito dele de esquecer tudo,
sabe? Quando ele te afastou, naquela época, fez isso porque achava que não podia ter
ninguém na vida dele. Ficou com medo de gostar de você. Acho que ficou com mais
medo ainda quando percebeu que você gostava dele. Foi mais fácil deixar você
acreditar no monte de bosta que falaram. Só conversamos sobre isso muito tempo
depois, eu não sabia que ele gostava de você. Também não sei se poderia ter feito
qualquer coisa, mesmo que eu soubesse, entende? Era uma decisão dele. No fundo,
acho que ele acreditava que não te merecia, mas essa é só a minha opinião.”
Léo volta a me encarar. Não sei o que ele vê.
Quero morrer, quero viver tudo de novo. Quero começar minha vida do zero
outra vez. Quero encontrar Bergmann mais uma vez. Pelo menos mais uma vez seria
o suficiente. Quero voltar no tempo. Quero ter a chance de ter meu coração partido
por ele de novo. Quero que ele me queira. Quero que ele seja feliz. Quero ser feliz.
Quero que a dor pare. Quero sair daqui, quero ficar.