Quando entro em nossa cozinha compartilhada, quase me assusto. Fernando
resolveu fazer uma reunião bem ali, na mesa da cozinha. Trouxe com ele três pessoas
do seu time. Há documentos espalhados pela mesa e eles discutem sobre um mapa
aberto. Em pé, ao lado da máquina do café numa bancada mais adiante, está Bernardo.
Todos eles me cumprimentam rapidamente quando entro; já estou duvidando se quero
mesmo café.
“Oi Laurinha, desculpe a bagunça”, Fernando se antecipa, ajeitando alguns
papéis, tentando abrir um espaço para mim na mesa. “Senta aqui, já estamos quase
acabando.”
Fernando sempre força uma proximidade que não existe entre nós, chama meu
nome como se fossemos amigos. Não somos. Porém, não me oponho, porque ele
nunca cruza a linha que impus assim que começamos a trabalhar juntos. Ele também
trata as outras pessoas dessa mesma maneira, acho que é traço da sua personalidade.
Não lembro os nomes dos dois homens da equipe dele, só lembro o da mulher, acho
que ela se chama Gabriela. Ela sorri para mim de um jeito doce, mas nunca
conversamos a sós, só trocamos algumas palavras durante as reuniões da unidade.
“Obrigada”, agradeço a Fernando, enquanto caminho incerta até a máquina do
café.
“Com ou sem açúcar?”, pergunta Bernardo, já preparando um café para mim.
Quero protestar, não quero aceitar a gentileza, mas não tenho como fazer isso
agora sem nos colocar numa situação estranha.
“Com açúcar, por favor”, respondo sem graça. “Obrigada.”
Percebo um sorrisinho no canto da boca dele.
Num instante, ele me entrega a caneca, olhando diretamente para mim, como
se pudesse ver através de mim. Eu me sinto nua. Pego a caneca, agradeço novamente
e me dirijo ao lugar que Fernando havia aberto na mesa, mas não me sento ali também.
Fico em pé, analisando alguns papéis em cima da mesa.
“Você não vai se sentar?”, pergunta Gabriela, novamente muito gentil.
“Ah, não. Obrigada”, mostro a caneca de café. “Vou terminar isso aqui
rapidinho. Tenho muito trabalho me esperando”, tento sorrir.
“Laurinha, qual era mesmo o nome daquele escritório de advocacia em São
Paulo?”, pergunta Fernando, analisando um dossiê. “Aquele que visitamos assim que
você foi transferida?”
“Siqueira & Correa Advogados”, respondo prontamente, porque não poderia
esquecer esse nome depois de tudo o que aconteceu. “Por quê? Não me diga que...”
Fernando ergue um olhar preocupado para mim, então compreendo a resposta.
“Eles ganharam a licitação”, Fernando formaliza a resposta. “Eles vão cuidar
da parte legal do projeto.”
Preciso de um minuto para me recuperar.
“E por que isso é ruim?”, questiona um dos homens de Fernando.
Fernando ensaia uma resposta, mas não sai nada.
“Tivemos um mal-entendido com eles no passado”, responde o outro homem.
Eu me esforço para enxergar seu nome no crachá que carrega.
“Mal-entendido?”, lanço de maneira ácida a esse homem, cujo nome pude ver
em seu crachá. Ele se chama Pablo.
Ele se engasga, mas se recupera.
“E como você chamaria?”, rebate para mim.
Fernando se remexe desconfortável na cadeira, sinto a atmosfera da cozinha
esquentar, azedar. Mas não vou deixar essa passar, não mais.
“Não foi um mal-entendido, Pablo. Sabemos disso, não?”, minha voz também
está azeda.
“Você chegou depois, Laura. Não conhecia a Bibi como nós”, Pablo me acusa.
Fernando ensaiou uma mudança de assunto, mas eu não permiti que
continuasse.
“Então me diga, Pablo, o que havia de errado com a Abigail?”
Vejo Gabriela segurar a respiração, desconfortável. Desvia o olhar para um
canto remoto da cozinha, onde ninguém poderá captá-lo.
Pablo parece não se importar com suas palavras, por isso responde:
“Ela dava pra todo mundo do escritório, Laura”, ele soa indignado, ultrajado.
“Não foi só culpa daquele cara lá.”
Meu sangue ferveu.
“Pablo, me diga, você é um idiota ou o quê?”, seguro a caneca firmemente,
para não socar a cara dele.
Pablo se levanta, Fernando se levanta e Bernardo se aproxima de mim.
“Pablo, já chega”, adverte Fernando.
Mas para mim ainda não era o suficiente. Largo a caneca em cima da mesa
com estardalhaço.
“O imbecil daquele advogado assediou a Abigail durante todas as nossas
reuniões e depois tentou estuprá-la! Sério mesmo, Pablo? Por acaso foi consensual?
Por acaso o que aconteceu foi só um mal-entendido?”, acho que eu rosnei. “Você não
vai colocar a culpa na vítima, não na minha frente, entendeu?”
Pablo estava pronto para revidar, mas desistiu. Quando paramos de nos encarar
como se fossemos nos matar, eu me volto para Fernando.
“Isso é responsabilidade sua, Fernando”, acuso. “Ele é um membro da sua
equipe, mas você não trabalha aqui sozinho. Se eu voltar a ouvir uma merda assim de
novo aqui dentro, eu não vou deixar passar.”
Enfurecida, eu vou para o meu escritório.
Fecho a porta atrás de mim e tomo um momento, controlando minha
respiração. Vejo o rosto sorridente de Abigail, vejo suas lágrimas quando se despede
dos colegas da unidade. Lembro dos olhos e gestos daquele homem infame que não
lhe deixou em paz durante toda a viajem. Ouço novamente os comentários maldosos
que circularam aqui dentro após nosso retorno, o veneno destilando pelas bocas dos
fofoqueiros, intoxicando a vida de Abigail. Não estavam preocupados com ela, afinal,
era o que ela merecia, disseram. Fernando podia dormir com uma mulher diferente
toda noite, mas Abigail não podia fazer o mesmo, não podia dormir com o homem
que quisesse, ou com vários de uma vez, porque era mulher. Enquanto as fofocas sobre
a vida de Fernando apenas lhe colocavam numa posição favorável, sobretudo entre os
homens, as fofocas sobre Abigail lhe destruíram, colocando-a numa situação muito
complicada, de desprestígio e censura, entre homens e mulheres. Abigail só rejeitou
o advogado em São Paulo porque ele era velho, se fosse um homem da sua idade, se
fosse bonito, ou se fosse muito rico, ela não teria recusado. Tudo isso disseram,
acreditando ter o direito de julgá-la. Sabiam disfarçar os comentários, tornando um
crime, uma tentativa de estupro, numa acusação direta às mulheres que faziam o que
bem entendiam de suas vidas, assim como a grande maioria dos homens.
Deve ter algo muito errado com esse lugar, como que após todas as campanhas
contra o assédio e a violência as pessoas ainda podiam continuar fazendo as coisas
desse jeito? De que adiantava nossos cursos obrigatórios, rodas de conversa e
conferências sobre ambiente e clima organizacional? De que adiantava distribuir
cartilhas sobre comportamentos supostamente adequados dentro de uma instituição
pública se as pessoas faziam e falavam o que bem entendiam? Se, no fim das contas,
os únicos que se sentiam livres para compartilhar suas opiniões eram apenas os
babacas? Abigail não ganhou direito a resposta. Ela foi embora daqui como se tivesse
feito alguma coisa errada e não como a vítima de um ambiente tóxico.
Quando ela foi embora, eu havia acabado de chegar, demorei um pouco para
compreender a dinâmica desse lugar. Rapidamente, compreendi tudo. Na época, não
pude fazer nada para lhe ajudar, mas agora que entendo como as coisas funcionam por
aqui não posso mais tolerar esses comportamentos asquerosos. Se Pablo podia falar o
que bem entendesse, do jeito que quisesse, eu garantiria o meu direito de refutá-lo.
Não vou me calar diante de nenhum deles. Eu não preciso que sejam meus amigos,
vou tomar todas as medidas que achar cabíveis. Provavelmente, vou voltar a ser o
assunto dos próximos dias, mas eu não me importo. Eles podem falar à vontade, só
não vou aceitar desrespeito. Estou começando a achar que o problema aqui precisa ser
tratado com processos administrativos disciplinares. Se me forçarem mais um pouco,
acho que vou aceitar essa dor de cabeça.