Fazia uns cinco anos que eu não voltava nesta cidade. Depois que saí, devo ter
retornado apenas duas vezes. Na primeira vez, retornei para o enterro de um amigo,
na segunda, para enterrar minha mãe. Agora, retornava mais uma vez, e seria a última,
porque eu não conseguia enterrar mais ninguém. Quando isso acabar, eu vou embora
daqui para sempre. Nunca mais volto neste lugar, porque não consigo lidar com todas
essas perdas.
Não consegui acreditar quando soube da morte de Caio, nem pude acreditar na
forma como ele morreu, vítima de um engano policial, numa apresentação sua na
Praça dos Três Poderes, em Brasília. Aparentemente, suas baquetas pareciam armas
letais ao policial que lhe deu um tiro. Foi realmente um engano, um engano de cor.
Por um segundo, ele ganhou fama nacional, mas depois as pessoas voltaram aos seus
afazeres, esquecendo sua morte injusta, absurda, surreal. Eu achei que nada pudesse
doer tanto, até eu perder minha mãe.
Eu ainda não era uma advogada de sucesso quando me despedi da minha mãe,
ela partiu sem que eu pudesse cumprir minha promessa de lhe dar tudo o que ela
quisesse. Ela nunca me pediu nada, apenas aceitou o que eu podia oferecer. Um amor
tão abnegado que me deixava com vergonha, porém, era o único capaz de me fazer
superar o pai alcóolatra que nos atormentou durante a minha infância infernal.
Despedir da minha mãe foi a coisa mais difícil que já fiz, mas agora tudo dói, como
se ela tivesse partido de novo. Quando voltei aqui pela primeira vez, pelo Caio, ela
estava ao meu lado, então eu consegui aguentar. Hoje, eu tenho os meus amigos ao
lado, mas ela não está aqui, então a ferida volta a sangrar.
Agora, Bergmann.
Nada disso podia ser real, mesmo assim, bateu uma saudade tremenda daquele
tempo, onde o amor era uma questão de playlist, uma lista de reprodução de inúmeras
faixas desconexas. Tínhamos todas as respostas, sobre o presente e o futuro, enquanto
constantemente reescrevíamos o passado. Éramos deuses menores. Éramos deuses,
ainda que menores. O presente não era tão sufocante, verdadeira prisão, e o futuro não
era tão angustiante, fonte de toda incerteza e medo. Hoje, é quase impossível
reescrever o passado. Perdemos nossos poderes, não somos mais deuses. Tornamo-nos aquilo que mais temíamos, a vida aconteceu. Trabalho, casa, companheiro, talvez
um amante. Filhos. E todos os dias uma busca incessante pela felicidade, que nem
mesmo sabemos o que é. Um vazio, que nada preenche. Perdas, difíceis de superar,
difíceis de compreender.
Era dessa forma que eu me sentia naquele momento: incapaz. Estava
totalmente impotente diante daquela enorme caixa que abrigaria Bergmann para
sempre. Roubava-lhe tudo, mas talvez a culpa não fosse daquela figura geométrica de
madeira, fosse de alguma outra coisa; impossível nominar agora. Quando tudo
começou? Quando começaram a lhe subtrair todas as coisas? A roupa, os sapatos,
acessórios, carteira, a vida? Por que terminou assim? Por que não consigo reescrever
o passado agora? Por que é tão difícil evitar a queda?
Ele não pulou de um prédio, ele escorregou. Eu tenho certeza. Bergmann não
faria isso, ele não podia ter feito isso. Por que não procurou ajuda? Por que não falou
com ninguém? O que ele andou fazendo todos esses anos? Por que ele não me
procurou? Eu poderia ter feito Bergmann feliz. Eu faria isso, depois de todos esses
anos, eu ainda faria qualquer coisa por ele. Agora tudo está perdido, eu não posso
trazê-lo de volta, eu não posso vencer a morte. Eu não posso recuperar suas coisas,
roubadas quando ele caiu.