Só tinha uma missão na vida e falhou! Que seria de sua gente agora?Â
Diana não era porteira, não tinha todos os requisitos para fazer a barreira se destruir de uma vez por todas, por isso a barreira se desvanecia aos poucos, abrindo pequenas passagens em todo seu perÃmetro, como se a eterna máquina de produzir névoa tivesse finalmente sido desligada após todos aqueles anos.Â
Ser um caçador à s vezes era um pesadelo, aquele era um desses momentos.Â
Captava o medo de cada cidadão de seu povo vendo a névoa se tornar menos densa, captava o maravilhamento e estranhamento e medo de pessoas de fora que estavam próximas ao paredão de névoa pelo outro lado. Uma curiosidade sem fim que dali a pouco os levaria até o que antes era a parte de dentro da barreira. Não sabia como seu povo reagiria, medo faz as pessoas agirem de forma louca.Â
Ouviu pessoas chorando e entendeu a primeira das consequências da queda da barreira. Al Dahin não era só separado do mundo exterior no espaço, mas também no tempo. Eles envelheciam devagar porque o tempo no lugar, se não havia parado, ao menos havia se retardado até a quase inércia. Sem a barreira, aqueles que já haviam vivido muitos anos e que estavam debilitados, mas com o cuidado necessário continuariam com eles por alguns anos, sentiram o peso da vida cair sobre seus ombros de uma vez só. Nunca tinham perdido tantos de um único dia.Â
O barulho era impossÃvel. Ainda mais forte do que quando vivia do lado de fora. Parecia que todas as vozes do mundo estavam ao mesmo tempo em sua cabeça, não conseguia pensar em uma solução com toda aquela gente falando. Levou as mãos aos ouvidos mesmo sabendo que de nada adiantaria. Â
Não podia deixar sua gente morrer daquela maneira. Â
Só conhecia uma maneira de parar isso. Fazer como a primeira Senhora, como Diana havia feito a pouco, tomar uma decisão e se afundar nas chamas verdes com essa ideia na cabeça, fazer o que um verdadeiro Senhor faria por seu povo.Â
A parte difÃcil nem era se mover adiante e seguir Diana em seu destino. Era fixar na mente o que devia querer com a ação. Sua cabeça ficava mudando entre várias coisas e entre os pensamentos de outras pessoas. Os pés continuavam avançando como se tivessem mais certeza do que deveriam fazer do que a cabeça lá em cima.Â
E então parou, sem entender por que não podia avançar, até se virar e ver a mãe atrás dele, movendo os lábios sem emitir som. Liana havia usado seu nome particular e mesmo querendo, ele não poderia mais se mover.Â
Liana chegou até ele, tocando no rosto.Â
—Desculpa por isso, eles precisam de você e meu tempo acabou já. A gente se vê um dia...Â
Mesmo tentando, não conseguia se mover, não podia fazer nada além de chamar por ela. Foi Eros quem conseguiu fazer algo em seu lugar. Por sorte Liana tinha sua constituição pequena, fácil de carregar e mesmo que se debatesse, Eros podia com ela.Â
O olhar de ódio destinado ao protetor não surtiu efeito. Â
—Você precisa me deixar fazer o que tenho que fazer!Â
—Desculpe, Liana! Eu não te devo mais obediência, devo a ele.Â
Um dia de reinado! Um lugar que existia a milênios e sempre prosperando, um paraÃso como diziam, e ele só tinha levado algumas horas para arruinar tudo. Impressionante!Â
Não conseguia se forçar a continuar graças ao feitiço do nome que deveria salvá-lo. Irônico!Â
Não conseguindo pensar em nada além dos gritos das pessoas que morriam, deixou que o peso do corpo tombasse sobre seus joelhos e acabou sentado na grama diante do poço que poderia reconstruir o muro que pararia o sofrimento. Era um bom lugar para ver o mundo acabar.Â
Pouco depois que Alexandre saiu da cabana, um monte daqueles homens em túnicas azuis chegou, atraÃdos pelo som do tiro que parecia ter ecoado longe, vinham de todas as direções. Dominaram o homem que tinha atirado antes que ele tivesse realmente entendido o que tinha saÃdo errado. Eles o levaram, praticamente ignorando os dois irmãos que tinham conseguido imobilizá-lo depois que toda a confusão tinha iniciado.Â
Os filhos do herdeiro ficaram livres para irem atrás do pai, da avó e do protetor que minutos antes estavam com eles na cabana velha.Â
Quando saÃram enxergaram o irmão caçula chegando do lado em que o povoado era cercado pela floresta. Estava horrÃvel, imundo, tropego e se fosse possÃvel, ainda mais magro, mas sorria, fazendo com que os irmãos se perguntassem o que tinha acontecido a ele desde que desaparecera.Â
Eles ampararam Bento, que parecia esgotado demais para dar mais um único passo e mesmo assim pareceu natural aos três ir para a direção das chamas esverdeadas.Â
Encontraram o pai sentado na grama. A Névoa densa parecia estar se dissipando. A avó lutava para se libertar de seu protetor. O céu dourado tinha dado lugar a um cinza desbotado que não combinava com a hora do dia nem com o lugar.Â
Diego se certificou de que Samuel podia sustentar o peso quase infantil do irmão mais novo e começou a caminhar em direção ao pai por nenhum motivo em particular, só sentia que era o certo.Â
Sentou-se ao lado de Alexandre, espelhando a posição, com os pés cruzados, joelhos diante do peito e cotovelos que se apoiavam de lado sobre os joelhos.Â
Alexandre voltou o rosto lentamente para o filho, esquecendo por algum tempo de que existiam outras vozes gritando ao seu redor e dentro dele.Â
—Eu fiz tudo errado. Se você e seus irmãos aproveitarem uma das brechas no muro agora podem ficar bem. Daqui a pouco, quando tudo se for eu não sei.Â
—Não acho que fez tudo errado. Nem deu tempo ainda... A gente pode consertar...Â
—Eu não tenho ideia de como. Filho, não sei se já te disse, agradeço por você ter feito minha vida mais completa. Eu não teria nada se você não viesse...Â
—A honra foi minha, seu Alexandre.Â
Vida completa... Era um conceito interessante... As pessoas de que sentia a morte em sua própria carne agora tinham tido uma vida plena a suas próprias maneiras, as pequenas luzes verdes corriam até o poço para se juntar aos seus, talvez houvesse uma festa quando se reunissem, todos contando tudo o que tinha passado desde a última vez que estiveram juntos.Â
As imagens de toda sua vida também desfilavam bem diante dele. Todos os amigos que tinha feito, os amores passageiros, o amor que ficou e talvez morresse com ele, aqueles três rapazes que tivera o prazer de criar.Â
Se a intenção da primeira rainha ao construir a barreira tinha sido dar uma chance ao seu povo de ter uma vida de verdade, tinha sido muito bem-sucedida, pelo menos no que dizia respeito da maioria.Â
O pensamento voou até Liana que para salvá-lo usou seu nome particular para evitar seu sacrifÃcio. Ela nunca tinha tido a chance de viver de verdade, uma vida como um instrumento, não era justo que logo na sua vez tudo acabasse.Â
Bento se sentou um pouco para trás de Diego, colocando uma das mãos sobre o ombro do pai, Samuel ocupou o outro lado.Â
Que bom que estavam ali, não gostaria de dividir o fim com nenhuma outra pessoa no universo.Â
As fotos de seus pouco mais de cem anos pareciam organizadas em uma rede diante dele, flutuando num tecido grosso e bem tramado.Â
Alexandre sempre tinha sido uma pessoa cujas ideias surgiam em imagens. Sons ele aprendeu a ignorar pois sempre eram muitos, imagens faziam mais sentido.Â
A rede de seus momentos favoritos deixou claro o que ele tentava entender até então.Â
Enxergou claramente os fios do tecido que ele descosturava para abrir suas pequenas passagens, soltos e cortados no ar. Começou a amarrar os fios, um a um, se esticando mais que podia para agarrar as pontas, pegando emprestado coisas de cada um cuja voz ressoava em sua mente para alcançar quando uma parte faltava. Â
A vida da Primeira formou a primeira barreira, a segunda foi feita com pequenos recortes da vida de cada pessoa sob sua guarda. Seus filhos pareciam entender antes dele e vieram ensiná-lo, dando permissão para que usasse quanto quisesse.Â
Fio a fio ele foi reatando. Costurando, tecendo. Pedacinho por pedacinho de cada vida que recolheu, e muito da sua, formando um mosaico bonito que só ele podia enxergar. Pensou em Diana tentando com todas as suas forças melhorar o mundo no que julgava estar errado, na promessa que tinha feito e no desejo verdadeiro de mantê-la.Â
A névoa começou a retornar com suas espirais brancas. As nuvens se dissiparam e o céu começou a readquirir seu tom de dourado, agora encimado por laranja e roxo. Aquele deve ter sido o anoitecer mais bonito que muitos dentro da barreira já tinham visto em suas longas vidas.Â
A nova barreira não seria nunca tão densa quanto a barreira desfeita por Diana, talvez porque a vontade de quem a fizera não fosse tão forte quanto a da Primeira Senhora, nem tanto quanto a da mulher que arriscou tudo o que tinha para fazer o que achava certo.Â
Impedido de doar os dias que ainda tinha para viver pela proteção de sua mãe, Alexandre encontrou um meio doando os dias que já tinha vivido por seu povo. Tinha ficado com muito pouco de si para si mesmo. Os últimos vinte anos que tinha vivido porque eram os que tinha convivido com os filhos. Um pouco da infância, um pouco de Lydia. Todo resto deixou que fosse. Memórias que eram caras e que nunca recuperaria já que outras pessoas com quem tinha partilhado já não existiam.Â
Não importava. Tinha todas as que precisava bem ali, depois construiria novas.Â
Com a barreira refeita, Alexandre se deu o direito de deixar a vista escurecer pelo sangue perdido e pelo cansaço.Â
Naquela noite os curandeiros tiveram mais trabalho do que em todo o tempo em que viviam. Liana deu as ordens, não como Senhora, anunciou a passagem das chaves assim que teve a chance e convocou Eros como testemunha, mas como a rainha Mãe preocupada com o novo Senhor e fazendo as coisas em seu nome. Ordenou, como ele desejaria, que todos fossem atendidos e que salvassem quem pudesse ser salvo. Ao Senhor coube apenas a prioridade até que o sangramento cessasse, e as feridas estivessem limpas, depois foi tratado com o mesmo cuidado que qualquer outro, como ele diria que era o correto.Â
Alexandre acordou quando o dia seguinte quase anoitecia.Â
O leito que ocupava era seu velho conhecido, tinha até seu nome escrito em letrinhas tremulas e malformadas de criança sendo alfabetizada. O companheiro de quarto é que era novidade naquele cômodo.Â
Bento estava de olhos fechados, as mãos cruzadas sobre a barriga e vestido com roupas comuns ao povo de Al Dahin. Nunca tinha imaginado vê-lo com essa aparência, gostou do resultado. Sentou-se na beira da cama, olhando o filho que fingia dormir. Â
Bento não abriu os olhos para iniciar a conversa, não se moveu, mas deu um sorriso leve. Parecia bem.Â
—Oi, Bentinho. Como você está? Â
—Eu tive o sonho mais estranho da minha vida! Acordei aqui, na casa da vovó. Eros me cedeu a cama dele. Meus irmãos estão ficando com o Tio Othis. Â
Ele tinha respondido em ordem cada uma das perguntas que imaginou que o pai faria, mas estava enganado. Alexandre já imaginava onde os outros filhos estavam. No momento, Bento tinha sua total atenção.Â
—Levanta, Bentinho. A gente tem muito o que conversar