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Entrou e encostou a porta atrás de si. Acendeu as duas velas que ficavam sobre a cômoda, manteve a luz elétrica apagada, para certas coisas a luz do fogo sempre era melhor, fazia com que a mente se abrisse, se apropriasse do que lhe era natural e primitivo e evitava racionalizações desnecessárias, mais fácil para ele que conhecia a prática desde menino, mais difÃcil para quem quisesse aprender agora, ainda assim não renunciava a certos rituais. Â
Foi ao banheiro, lavou o rosto e enfiou a cabeça sob o jato de água fria da torneira. Sem dormir direito se sentia um farrapo.Â
Quando retornou, desembrulhou o espelho pesado de obsidiana negra que possuÃa desde que teve que trilhar o caminho do desespero. No quarto onde sua mãe trabalhava na casa sagrada havia um quase idêntico à quele. Um presente que chegou a sua porta dias depois de retornar da jornada que o levou de volta ao lugar onde nascera. Â
O espelho era um meio de comunicação entre seu mundo e o mundo da mãe, tinha outras funções e outras propriedades, mas a razão de estar ali era que a Senhora pudesse falar com ele quando achasse apropriado.Â
 Quando ela achasse apropriado, não ele. A mãe nunca tinha aprendido sobre limites ou respeito ao espaço alheio.Â
 Ele não era apenas filho, era súdito e um servo com um dever e, como as três figuras se confundiam numa só, a Senhora usava de sua autoridade sobre Alexandre, o pressionando da forma como melhor achasse.Â
Quantas vezes tinha pensado em colocar aquela coisa no quarto de bagunça nos fundos, se não o fez foi porque Samanta o convenceu do contrário.Â
 A esposa que sabia de tudo sobre ele havia dito que mesmo que a relação fosse difÃcil a mulher ainda era sua mãe, deveria amá-la e obedecê-la se não fosse fazer mal a ninguém. Samanta era uma católica fervorosa, honrar pai e mãe era um mandamento primordial para que os outros fossem cumpridos. Mesmo que todo o resto do que fazia não lhe parecesse mal, remover o espelho era algo que ela não permitia. O trambolho acabou ficando e ali estava até então.Â
Afastou as velas de modo que ficassem equidistantes no reflexo, uma posicionada de cada lado de seus ombros, gostou do reflexo. De pé entre as chamas, controlou a respiração e chamou de modo que ela não pudesse ignorá-lo. Â
Mesmo com a distância e o poder que a envolvia, com as barreiras de proteção que a casa sagrada possuÃa e com as noviças que dormiam a volta dela servindo de proteção para o caso de algum demônio possuir alguém do povo e tentar machucar a Senhora, havia uma coisa que ele podia fazer e ela não.Â
Liana não era uma caçadora.Â
 Quando era criança e tinha começado a testar seus limites como caçador, escondido de todos pois tinha medo de ser banido como o pai, acabou brincando de invadir a casa da mente da mãe. Â
Surpreende-se que se parecesse com a casa sagrada, ao menos em sua fachada, não podia afirmar que por dentro era igual pois era um lugar em que só estivera pouquÃssimas vezes em sua vida, onde só era aceito nos dias de festa, quando todos eram iguais e ela pedia que alguém o trouxesse.Â
Perambulando por lá descobriu a caixinha decorada e trancada com correntes, a curiosidade foi mais forte que o bom senso. Em sua defesa, tinha apenas cinco anos e ninguém se preocupou em lhe dizer o que aquele objeto representava nem em impor limites sobre espiar na cabeça de outras pessoas, provável que também não soubessem que tinham que fazer essas recomendações.Â
Abrir os cadeados que prendiam as correntes no lugar tinha sido a tarefa mais fácil que já fizera, muito mais que os testes pelos quais passava quase todos os dias. Já era alfabetizado na época, então conseguiu ler a única palavra escrita no pergaminho enrolado dentro da caixa.Â
Não entendeu na hora o que significava. Ajeitou tudo conforme havia encontrado e desistiu da aventura, crente de que por ter deixado tudo arrumado nunca descobririam sobre sua pequena excursão noturna.Â
Antes que o sol nascesse o séquito de moças que tinham o dever de servirem de escudo para sua Senhora entraram no quarto que dividia com o professor, o protetor com quem vivia e que tinha a função de educá-lo em tudo que pudesse ser aprendido e testá-lo em tudo o que deveria ser um dom natural. Formaram duas filas e a mãe passou por entre elas. Â
Sentou-se a seu lado e mandou que todos saÃssem, não era o protocolo, mesmo durante a Festa a Senhora sempre seria acompanhada por alguém disposto a morrer por ela, também não era uma visita comum, apenas porque ficou com saudades da criança. Ninguém ousou desobedecer.Â
Ela explicou calmamente que o que ele tinha visto jamais deveria ser contado a ninguém, ela não era uma caçadora, não poderia impedir que alguém entrasse em sua mente, mas o conteúdo da caixa, nas mãos de pessoas ruins poderia destruir a todos eles, então era um segredo que tinha que ficar entre os dois e ele tinha que prometer que nunca, não importa o que acontecesse, contaria a alguém. Não importava quem fosse.Â
Ele prometeu. Na época estava ávido por agradá-la mesmo que não soubesse como.Â
A promessa não foi suficiente. Â
A mãe segurou sua mão. Fez surgir um punhal de pedra preta, a mesma do espelho, de entre as saias, fez um corte profundo na palma da mão direita. Fez com que fechasse a mão e pingou algumas gotas do sangue que escorriam em um lÃquido dentro de um frasco. Â
Pediu que pensasse na palavra lida e apenas pensar fez o corte arder com uma dor que subiu por todo o braço até o cotovelo. Â
Explicou que precisava fazer isso para que ele não fosse persuadido a contar o que leu, que aquela palavra era seu primeiro nome, recebido de sua mãe ao nascer. Ele também tinha um, que ela lhe dera assim que foi colocado em seus braços, era a primeira palavra que um bebê ouvia e impedia que alguém pudesse forçá-lo a algo que não quisesse, que tivesse controle sobre a pessoa. O sangue no frasco garantia que se o nome fosse pronunciado ele queimaria até os ossos. Sentia muito ter que machucá-lo, mas ele precisava entender que era para o bem de toda Al Dahin.Â
Ele ainda tinha a cicatriz e pensar no nome a fazia arder como o diabo, a dor era suportável com alguma força de vontade. O chamado que ela escutaria na sua mente seria irresistÃvel. Â
Alexandre sorriu ao pensar o quanto esse pequeno atrevimento a deixaria irritada. Que bom! Ela merecia algum incomodo.Â
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Liana surgiu diante do espelho no lugar de seu reflexo. O rosto ainda bonito começando a ganhar marcas de expressão. Os olhos muito azuis chispando, apertados de raiva. A baixa estatura fazendo com que Alexandre tivesse que inclinar ligeiramente a cabeça para olhá-la nos olhos. Os cabelos negros presos numa trança que indicava que seu dia de trabalho já chegava ao fim.Â
—Você não fez isso, Elohi. Você não se atreveu!Â
Elohi era o primeiro nome público que teve na vida, o nome que abandonou assim que pisou no mundo comum. A mãe era a única pessoa que nunca o chamava de outra maneira e nem chamaria, aquele era o nome que ela lhe dera, nem adiantava brigar por isso.Â
—Eu precisava falar com a senhora e tinha que chamar sua atenção de algum jeito. Se não fosse assim duvido que a senhora viria.Â
—Eu viria assim que pudesse...Â
—Assim que fosse conveniente para a senhora, só que sou eu quem preciso dessa reunião então a sua conveniência podia não ser conveniente para mim.Â
—Não ouse me interromper, eu estou quase te deixando falar sozinho. Sua falta de respeito já está passando dos limites, sabia?Â
—Ah, a minha né?Â
A resposta a pegou de surpresa. Alexandre achou que tinha se excedido um pouco e retrocedeu no tom. Â
A relação deles estava a um fio de se romper desde que Alexandre saÃra de casa. Liana achava que ele fugia a suas responsabilidades e desejava trazê-lo de volta ao que considerava seu lugar, Alexandre não aceitaria viver sob o jugo de um destino que não tinha escolhido, os dois eram parecidos nesse sentido a ponto de saberem que o outro nunca voltaria atrás em sua posição, bastava ver quem conseguiria impor sua vontade ao outro. Embora soubesse que se a mãe faltasse ele não teria mais escolha.Â
—Eu só precisava falar com a senhora, não vai levar muito tempo...e desculpe chamar por seu nome.Â
—Melhor assim. Não se esqueça que eu também sei o seu primeiro nome... de repente eu posso me decidir a usar uma hora dessas.Â
Alexandre sentiu vontade de rir, respirou fundo para se controlar.Â
—Eu sei, foi a senhora quem o escolheu. Só não sei se funcionaria. A gente não precisa descobrir, deixa assim.Â
—O que você quer, Elohi? Seja breve...Â
—Saber porque a senhora resolveu roubar vinte anos da minha vida.Â
 Ela quem pediu brevidade.Â
—Eu não entendo...Â
—Vinte anos, mãe! Eu é que não entendo! Para que fazer isso? Eu nunca deixei de cumprir com a minha palavra. Até queria, mas nunca nem pensei nisso... não tinha a menor necessidade de tirar de mim o direito de ver meus filhos crescerem...Â
—Elohi, eu não fiz isso! Você mesmo disse, a gente tem um acordo! Você tem cumprido sua parte, não tenho do que reclamar sobre isso. Qual seria o propósito de algo assim? Não me diga que acha que eu faria isso só para te machucar... eu queria você aqui de volta, não tenho a menor intenção de fazer algo estúpido que te faça achar que tem o direito de esquecer quem você é.Â
—Para eu não ter motivos de insistir em continuar aqui. A senhora disse uma vez que se não fosse pelos meninos eu já teria voltado de cabeça baixa e bem quietinho para meu lugar. Merda! Chegou a amaldiçoar o nascimento deles... Se esqueceu?Â
Liana o encarou por algum tempo sem falar nada. Alexandre achou que a mãe não responderia a mais nada, que o deixaria ali sozinho com seu reflexo. Esfregou o rosto com uma das mãos se demorando mais ao esfregar os lábios. Fazia isso sem perceber quando ficava nervoso. Pessoas próximas sabiam. Liana, não.Â
—Eu não fiz isso! Olha, já te fiz passar por um monte de coisas que você não queria ou não entendia, de algumas me arrependo, outras foram necessárias. Isso não era necessário. Se não acredita, olhe você mesmo! Essa coisa de caçador deve servir para alguma coisa.Â
Alexandre não olhou na mente dela. Não achava que ela mentiria, não seria digno para uma rainha e ela não precisava. Liana podia fazer muitas coisas, fazer o tempo andar para trás não estava entre elas. Não podia consertar a situação, logo, não tinha por que mentir sobre isso.Â
Ele baixou um pouco os olhos. A voz soou mais baixo do que pretendia. Quase uma súplica.Â
—Como aconteceu? Se não foi pela sua vontade, como ia acontecer?Â
—Eu... eu não sei! Posso ter errado em alguma coisa quando abri o portal para você fora do tempo... eu vou descobrir o que aconteceu e depois te falo. Vou procurar um jeito de reverter os danos e...Â
—Não precisa. Eu só queria saber... desculpa interromper novamente.Â
Vê-la admitir que poderia ter errado em algo era tão surpreendente que quebrou qualquer disposição que tivesse para contenda.Â
A maçaneta girou e tanto Liana quanto Alexandre desviara o olhar em direção a porta.Â
Um Bento enrolado na coberta surgiu iluminado pela luz forte do corredor, um tanto sonolento e trazendo uma garrafa com água pela metade em uma das mãos. Estacou no vão da porta com olhos arregalados olhando do pai para o reflexo no espelho que em nada se parecia com o pai e tentando entender como era possÃvel. Â
Alexandre sorriu e foi em direção ao filho, abraçando-o pelos ombros e guiando para o lugar onde estava.Â
—Dona Liana, esse é o Bentinho. Meu filho mais novo. Um dia te mostro os outros, agora só ele está aqui comigo.Â
—Ele me lembra alguém...Â
Liana não se dirigia ao neto adotivo, talvez nem ao filho, só um pensamento que escapou alto demais.Â
—A senhora está bem? Parece um pouco pálida...Â
—Impressão sua. Elohi, eu realmente tenho que ir, vou procurar as respostas de que você precisa. Tenha paciência.Â
E eram só Alexandre e o filho diante de um espelho comum. Â
Alexandre se afastou, apagou as velas, acendeu a luz e esperou pelas perguntas de Bento, que se esforçava para entender o que tinha visto sem conseguir chegar à  conclusão alguma que agradasse a parte coerente de sua mente.Â
—Não liga para ela, não é nada contigo! É que ela não estava esperando te conhecer assim...Â
—Tinha uma moça no espelho!Â
Alexandre se divertia um pouco sempre que esse tipo de coisa acontecia. Quando Sam soube sobre ele tinha sido a mesma coisa. Uma sobrancelha subiu e o sorriso de canto se plantou em seu rosto quando se sentou ao pé da cama.Â
—É, tinha.Â
—Pai, tinha uma moça no espelho!Â
—Aham, tinha sim. Já falou isso.Â
—Ela vive no espelho?Â
Alexandre não aguentou e explodiu em uma gargalhada. O quão criativo era esse garoto? Já tinha passado por isso algumas vezes e ninguém nunca tinha chegado a essa conclusão.Â
—Que eu saiba não. O espelho é só um jeito de comunicar, tipo vocês e esses telefones que fazem um monte de coisas. Ela é a sua avó, você é o primeiro neto que ela conhece.Â
—Ela não pode ser a vovó. É mais nova que eu!Â
—A gente envelhece devagar depois que fica adulto, já te disse.Â
—Espera! ela sempre pode ver a gente pelo espelho, tipo uma câmera?Â
—Em tese até daria, só que ela é ocupada. Em geral eu costumava deixar esse espelho coberto quando ia dormir ou quando usava o quarto para fazer outras coisas. Com o que você está preocupado?Â
—Ai, Jesus! Pode ter um monte de gente por aà vendo o que a gente faz pelos espelhos? Tipo quando a gente vai em motel e tem espelho até no teto e ... Ai, Jesus!...Â
—Bento! Não precisa surtar. Filho, é só esse espelho e só porque tem um igual do outro lado, pode ficar tranquilo, ninguém viu nada de você por aÃ. Eu cobri o espelho para você dormir aqui. Relaxa!Â
Bento concordou sem muita certeza. Â
—Isso foi um daqueles sonhos estranhos? Do tipo que acontece de vez em quando se a coisa que eu fumo bate mal?Â
—Não! Esquece as coisas que usava e esquece os sonhos, não vai mais acontecer. Vai dormir?Â
Bento negou. Tinha ido para o quarto pensando nisso, agora estava agitado demais, toda hora desviava o olhar para o espelho tentando ver se alguém espiava.Â
—Quer saber mais sobre isso?Â
O garoto concordou, ainda desviando para o espelho. Só sossegou quando Alexandre o cobriu novamente.Â
Separou uma muda de roupa sua para Bento, ficariam grandes, mas no momento teriam de servir. Mandou que o filho fosse tomar banho e prometeu responder tudo o que quisesse quando ele voltasse.Â
Conversaram quase até o amanhecer sobre o local de origem do pai. Alexandre respondeu com franqueza a tudo o que o filho perguntava.Â
Quando Bento ficou esgotado se jogou de lado na cama do pai e adormeceu em segundos. Alexandre olhou no relógio sobre a cômoda, nem valeria a pena tentar dormir, logo os filhos mais velhos chegariam. Era bom começar a se preparar, precisava de um banho e de roupas limpas para se sentir mais gente de novo.Â
Droga! Contando com os dias de viagem, já estava com quase cinco dias que mal dormira. Daqui a pouco ficaria difÃcil bloquear a imensidão de vozes em sua cabeça. Devia estar ficando lento e burro também. Tinha que dar um jeito de dormir um pouco pelo menos.Â
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Diego chegou pouco mais de uma hora depois que Bento foi dormir. Encontrou Alexandre sentado na varanda, um moletom marrom com o ziper aberto e as mangas arregaçadas jogados sobre uma camiseta preta. Parecia um garoto recém-saÃdo do colégio com o capuz jogado sobre a cabeça. Â
Era estranho chamá-lo de pai agora, as pessoas estranhariam. Geraria perguntas. Explicaria a ele e o faria entender, não era falta de respeito, era só uma precaução.Â
Sentou-se ao lado do pai nos degraus da varanda. Havia um banco de bambu ao lado da porta, ninguém o usava, preferiam o chão e os degraus.Â
O bom dia fraco e rouco foi respondido com:Â
—Você estar certo. Não faz sentido seu pai ser mais novo que você. Quer me chamar pelo nome? Tudo bem. Eu acho que vou perder esse nome... Vou ter que trocar agora quando for fazer os documentos novos. Â
—Alexandre não é seu nome de verdade, certo?Â
—Não é o primeiro. Não! Eu mantive porque era o que vocês conheciam.Â
—Qual é o seu nome de verdade?Â
—Elohi. É bem estranho né?Â
—É diferente...Â
Alexandre encarou o filho por alguns segundos. Queria ter um cigarro aceso entre os dedos só para se distrair, mas tinha prometido parar e tinha que dar o exemplo.Â
—Não chama ele assim não, escolhe um nome só dele. Um nome comum e bonito. O meu é difÃcil.Â
Diego o encarou com algum terror. Quando pequeno esse tipo de sensação acontecia à s vezes. A impressão que o pai estava olhando por trás de seus olhos.Â
—Desculpa. Não durmo a dias, fica mais difÃcil controlar quando fico cansado. Eu devia ter deixado você me contar...Parabéns e aproveita, passa mais rápido do que você espera.Â
—Eu soube ontem. Estou apavorado. O senhor teve medo?Â
—Eu ainda tenho. E você vai se dar bem melhor que eu nisso, é mais preparado.Â
Samuel vinha subindo a rua. A parada do ônibus ficava a dois quarteirões dali. Diego quis apontar que estava atrasado, mas o pai não deixou. Não importava, ao menos estava ali.Â