Alexandre e Diego não conversaram muito após saÃrem de casa. Apanharam o documento, passaram em uma loja que Diego achou esquisita e apanharam um livro velho (mais um!) que Alexandre encomendou por telefone e pagou em dinheiro. Passaram no banco para abrir uma conta e começar a dar escopo a vida nova e seguiram em silêncio presos no trânsito da cidade.Â
—Ainda está bravo por eu me meter nos seus assuntos?Â
O pai respondeu com um leve balançar de cabeça. Sem olhar na direção de Diego. A atitude não condizia com a resposta, Diego se calou e voltou a grudar os olhos na estrada.Â
—É difÃcil conversar com esse barulho todo.Â
Poderia ser verdade. Ele andava mais silencioso, como acontecia em momentos turbulentos antes de desaparecer. Poderia ser por causa das mudanças que estava enfrentando, Deus sabia que não lidava bem com isso, ou por causa de outra coisa. Ligou o rádio para ver se ajudava a reduzir o barulho do qual o pai reclamava, quem sabe tirava a sensação esquisita que se instalara entre eles.Â
Alexandre olhou para o filho a seu lado. Ficou algum tempo encarando.Â
—Eu ando com dificuldade de dormir, por isso a cara fechada. Fica barulhento demais, eu fico quieto, é difÃcil pensar. Nada com você. Quando começar a andar, podemos passar na casa da sua tia só para ver como ela está? Ela não sai da minha cabeça desde ontem à  tarde e não retornou as ligações, Estou preocupado com ela...Â
Diego concordou. Não faria diferença esse desvio do caminho, o engarrafamento já tirara qualquer chance de trabalhar no perÃodo da tarde. Essa noite teria que contar a esposa sobre como andava passando seus dias. Clara adoraria a história fantástica, talvez não acreditasse de cara, mas gostaria do mesmo jeito.Â
O carro parado no meio-fio da casinha amarela não se moveria, seu proprietário vomitava na calçada e tremia sem parar.Â
Alexandre sentou-se na guia do outro lado da rua. Esperava que o filho melhorasse e tentava se livrar da imagem que tinha invadido sua mente de dezenas de lugares diferentes.Â
A agonia crescente tinha um motivo. A polÃcia trabalhando na casa de Lydia confirmava qualquer medo que tinha antes mesmo de saber o que tinha acontecido, não precisava perguntar, não queria perguntar, mas sabia de qualquer maneira.Â
Não conseguia acreditar, mesmo sabendo que era real, era imutável. Lydia! Â
E havia sentido, tinha percebido que havia algo errado, julgou mal e não conseguiu fazer nada.Â
O corpo ainda estava dentro da casa. A perÃcia estava trabalhando e o liberaria logo, em seguida veriam a casa.Â
Diego disse à  polÃcia que era sobrinho da idosa, sua única famÃlia era a filha que morava fora. A foto dele e dos irmãos estava na estante ao lado da televisão, seu número e de Samuel eram os contatos de emergência da tia. Seriam eles a identificar o corpo mais tarde.Â
Um policial levou Diego para um canto, fez uma série de perguntas sobre Lydia e deixou que se juntasse ao pai.Â
Alexandre permaneceu sendo ignorado pelos policiais, era o que queria. Os vizinhos curiosos começavam a se aproximar e perguntar entre si o que tinha acontecido. Ninguém perguntou nada a ele, ainda sentado na calçada oposta, corpo encolhido, joelhos diante do peito. Inconscientemente criou uma barreira a seu redor, as pessoas o viam, mas não o percebiam ou não o notavam no nÃvel de consciência necessário para o registrarem ali.Â
Estava ocupado tentando ver o que realmente tinha acontecido.Â
O policial com quem tinham falado quando saltaram do carro tinha dito algo sobre um assalto que tinha dado errado. Aparentemente o sujeito só tinha levado a bolsa de Lydia. O celular e outros objetos da casa pareciam intactos.Â
Tinham dito que Lydia havia saÃdo pela manhã. Quando voltou à tarde devia ter surpreendido o assaltante em sua casa, o homem assustado deve ter atirado e fugido, o corpo foi encontrado duas horas antes deles chegarem, uma das alunas de reforço passou para conversar, viu a porta aberta e entrou. A menina tinha gritado e chamado os vizinhos que por sua vez chamaram a polÃcia. Â
O que o policial não disse, mas permitiu e quase exigiu que ele visse foi que o corpo de Lydia tinha duas perfurações no peito na altura do coração, que estava com os braços abertos na forma de uma letra Y e os pés estavam cruzados um sobre o outro. Quase exatamente como havia encontrado Samanta no dia em que ela morreu.Â
Outro policial tinha permitido que visse que na estante havia três fotos. Duas quase perfeitamente dispostas a cerca de quinze centÃmetros uma da outra no lado direito e uma terceira na ponta do lado esquerdo. Não tinha certeza, mas pelo que sabia Lydia não era uma mulher de fotos Ãmpares na prateleira, ou teriam quatro ou seriam duas, três e numa disposição tão estranha não parecia coisa de alguém cheia de maninas como sua amiga. Se houvesse uma quarta foto, essa teria desaparecido.Â
Diego confirmou o que imaginava. A foto que faltava era justamente uma de Alexandre e André juntos, na época do casamento de Lydia. Alexandre era o padrinho. A foto dos dois sempre tivera um lugar de destaque na prateleira. O que um ladrão faria com uma foto antiga de dois rapazes?Â
Alexandre não acreditava na conversa do assalto. Tinha que entrar na casa para saber o que realmente tinha acontecido.Â
Tão cedo não o deixariam entrar então o melhor a fazer era irem para casa. Apesar de parecer absurdo, achava que tinha culpa no que tinha acontecido e que aquilo tinha mais a ver com ele do que conseguia ver. Tinha certeza de que a resposta era mais simples do que imaginava e se não conseguia ver era porque estava com a mente embotada demais para enxergar qualquer coisa na sua frente.Â