A cidade era diferente do que se lembrava depois que escurecia.Â
A quantidade de gente vivendo nas ruas havia aumentado. Até famÃlias inteiras e crianças pequenas. Um mar de gente desesperada e com medo.Â
Caminhou junto com o filho do meio por cada beco, cada canto e não tinha ideia de onde procurar seu garotinho. Â
Bento não tinha levado nada consigo, nem dinheiro, nem objetos de valor, nada! Só a roupa do corpo. Aonde podia ir assim? Com certeza não muito longe...Tinha que estar por ali, na cidade onde cresceu.Â
Samuel tinha um pensamento mais organizado que o pai. Não conhecia cada lugar sórdido que o irmão frequentava, mas imaginando que ele estava sem nada seguia tentando se lembrar de pessoas que Bento poderia ter procurado, gente que emprestasse algum dinheiro, que abrisse a porta de casa para ele ou pudesse fornecer o tipo de coisa que queria. Agora que estava alimentado e dormira várias noites sob um teto e numa boa cama, já podia se preocupar com o monstrinho que mordia a alma, como o pai chamava.Â
As opções que tinha eram poucas agora. Samuel e Diego costumavam ser as escolhas preferidas. Um estava ali e o outro na casa do pai, tinha certeza de que Clara havia trancado bem sua casa e no prédio onde morava sabia que ninguém deixaria Bento subir.Â
Com a tia morta, talvez ele fosse até lá procurar dinheiro ou bens de valor, mas haviam passado a tarde organizando o lugar e Bento não tinha como saber se Dani iria dormir lá ou não. Â
Não! A casa da tia não seria uma escolha para o irmão fugitivo.Â
Pensou no tal amigo. Uma vez Bentinho ligou de lá, um momento de lucidez fez com que pedisse que o buscasse. Não era um lugar bom para estar. Â
Naquele dia Bento só chorava, sentou-se ao seu lado tremendo e derramando lagrimas em fios grossos, não disse nada sobre o que tinha acontecido lá na casa do “amigoâ€. Dali foram direto para emergência do hospital. O lado direito do corpo tinha marcas arroxeadas e uma costela tinha trincado. O rosto de Bento também estava um pouco machucado. Ele não falou sobre seu estado e Samuel também não perguntou. O pai saberia o que tinha acontecido apenas por olhar para Bento. Que bom que não tinha visto! Não achava que era o tipo de coisa que o pai gostaria de saber.Â
Samuel tomou a frente ao chegar à  casa do homem. Hesitou no portão, não sabia que nome chamar. O quintal tinha algum lixo espalhado, sucata, portões enferrujados que se abriam para um pedaço curto de chão sem calçamento ou grama. Terra vermelha pisada que acabava em dois degraus que levavam a uma porta de madeira sem maçaneta, com um buraco atravessado por uma corrente pendurada que devia servir para trancá-la. Um feixe de luz escapava sob a porta, indicando que havia gente em casa.Â
Samu bateu palmas. O pai estava a dois passos de distância, um pouco atrás. As mãos metidas no bolso e as costas um pouco encurvadas. O rosto baixo. Estranho! O pai era um homem grande, tinha uma boa postura. A maneira que parava chegava a ser altiva. Daquele jeito parecia mais novo e menor do que realmente era.Â
Um cara magrelo saiu sem camisa pela porta destruÃda. O peito e as costas vinham com muitas marcas do que Samuel julgou espinhas da adolescência. Havia uma cicatriz sob o queixo que junto com os olhos estalados lhe conferia uma aparência insana. Â
Samuel olhou um segundo para o pai e como não houve qualquer reação decidiu ir em frente.Â
—Boa noite... Eu acho que você é amigo do meu irmão, Bento... Você o viu? Sabe onde ele se meteu.Â
O homem abriu o portão, se apoiando com uma das mãos na parte que não se movia.Â
—Sei de nenhum Bento. Bateu na casa errada. Â
—Eu já vim buscar ele aqui, é essa casa mesmo. Por favor! A gente só quer saber se ele está bem. Ele desapareceu de casa e sempre que some ele passa aqui.Â
Sem pensar no que fazia, Samuel começou a gritar o nome do irmão, tentando entrar na casa e sendo empurrado pelo homem.Â
Alexandre se moveu sem pressa e sem mudar a postura. Ficando do lado do filho que já tentava avançar novamente para a casa do “amigo†do irmão caçula.Â
A mão do pai espalmada delicadamente sobre seu peito o fez parar. Alexandre encarou o homem por alguns segundo.Â
—Samuel, o moço disse que não sabe do Bentinho, para que esse escândalo? —Disse num tom de humildade que não lhe pertencia, quase como se estivesse amedrontado. Samu não acreditava que fosse o caso.Â
Sem esperar resposta Alexandre avançou mais um passo, ficando de frente para o homem. Samuel pensou em se colocar ao lado do pai, mas ouviu a ordem silenciosa de se afastar e sem se dar conta foi o que fez.Â
—De qualquer forma, obrigado! E desculpe incomodar.Â
Viu o pai estender a mão para cumprimentar o homem que estudou o rosto e a mão estendida antes de estender a sua e apertá-la. Aquele deve ter sido um de seus maiores arrependimentos ao longo da vida.Â
Tudo aconteceu bastante rápido. Samuel teve tempo de registrar algumas coisas que nunca tinha imaginado.Â
Alexandre fechou a mão na do homem magricelo, tornando a postura usual em seguida. A mão escorregou travando o pulso do sujeito e puxando o corpo para fora da casa suja. A mão livre começou a trabalhar no rosto e dorso do magrelo antes que ele tivesse tempo de perceber o que acontecia e tentar se defender. Â
Quando a mão livre e os pés do magrelo começaram a se mover para todos os lados, ora tentando desviar do castigo e ora tentando acertar o oponente, Alexandre se afastou um pouco e torceu o pulso em seu poder para trás do corpo, obrigando o homem a lhe dar as costas e fazendo com que o ombro do braço torcido parecesse estar encaixado errado. Os gritos do sujeito tomaram tudo ao redor.Â
O pai forçou o rosto do sujeito contra as grades do portão. Em seguida se aproximou do ouvido dele e dizer o que de onde estava soou como “Sem choro! Fica quietinho, nem tá doendo!â€. Â
Os gritos cessaram, não porque realmente não estivesse doendo, pela forma como o homem respirava doÃa mais que tudo. Da sua boca escapavam sons estranhos, como um gargarejo abafado. Samuel não sabia dizer se era o homem segurando o choro por medo ou se o pai usava uma espécie de mordaça mental, ou mesmo se aquilo de fato existia.Â
O rosto do sujeito foi batido com força conta as grades duas vezes. Um talho se abriu em uma bochecha, outro no supercilio. Dali algum tempo formariam cicatrizes altas e rosadas que fariam a cicatriz anterior parecer um gracioso risquinho.Â
Alexandre falou algo que Samuel entendeu como um “se pensar em tocar nos meus meninos, esse ali atrás ou no Bentinho novamente, eu vou voltar aqui e fazer você comer seus dedos, entendeu?Â
Antes de se afastar, achou por bem verificar os bolsos do sujeito ensanguentado que estava deixando. Um isqueiro e um maço de cigarros amassado que foram transferidos para os bolsos de Alexandre.Â
O homem ainda estava consciente. Talvez até preferisse não estar, pelo gemido que soltava e a respiração difÃcil.Â
Samuel olhava para o pai como quem tivesse visto um extraterrestre.Â
Sempre tinha ouvido falar que ninguém conhece os próprios pais de verdade até ter envelhecido e se afastado o bastante para deixar de vê-los como deuses e ver como seres humanos falhos e incompletos. Ainda não havia tido tempo para isso, mas a demonstração de ainda pouco tinha mostrado uma porção de coisas que nunca tinha imaginado.Â
O pai de que se lembrava, de certa forma o que tinha visto até agora, era um homem com pouca paciência para delicadezas, mas que evitava conflitos e raramente erguia a voz para alguém, até com os filhos parecia quase sempre controlado. Â
O nÃvel de violência e principalmente de destreza que presenciou naquela noite não parecia condizer com o pai que conhecia, ainda assim as duas personalidades pareciam verdadeiras e reinavam em harmonia dentro do homem que o chamava de filho, era difÃcil acreditar.Â
Alexandre enxugou as gotas de suor do rosto, esfregou as costas da mão nos lábios e encostou levemente no ombro de Samuel, caminhando com uma tranquilidade que o filho acompanhou, mesmo desejando sair dali o mais rápido possÃvel.Â
Duas ruas depois que deixaram a casa do conhecido de Bento, Alexandre remexeu os bolsos e quase mecanicamente acendeu um cigarro. Sem olhar para o lado, sentiu os olhos de Samuel cravados nele. Â
Samuel meteu as mãos nos bolsos da jaqueta e olhou para a rua a sua frente.Â
—O senhor não tinha parado?Â
Alexandre sorriu um pouco.Â
—Parei. Tinha esquecido.Â
E jogou o cigarro, o isqueiro e o maço no saco de lixo sobre a calçada.Â
A noite foi bastante longa. Quando o roxo do céu começou a desbotar ambos estavam exaustos. Tinham percorrido cada beco, rua e praça onde um usuário poderia se esconder naquele lado da cidade. Falado com toda pessoa disposta a falar. Â
Umas duas horas antes, Alexandre havia se calado, desistira de falar fosse com o filho ou com os estranhos que olhavam os dois homens desconfiados. Nem uma palavra desde então.Â
Olhava rapidamente nas cabeças fáceis de invadir, abertas a quem quisesse, preocupadas apenas com suas obsessões mesquinhas sobre as quais não tinham qualquer controle. Procurava o rosto do filho. A aparência que tinha quando saiu de casa. Qualquer um com o blusão de lã marrom maltratado que podia ter sido captado por uma visão periférica sem que a pessoa se desse conta.Â
Ninguém sabia de Bento. Como alguém podia ter sumido sem deixar qualquer rastro ou memória? De que servia ser um caçador se não disso levasse ao filho?Â
Estacou um pouco. Fechou os olhos procurando Bento entre toda a imensidão de pessoas que o cercavam. Pensou que ouvia, muito longe, quase imperceptÃvel.Â
Não via nada, só um borrão branco e contÃnuo. Bento estava vivo, assustado, confuso e não queria estar onde estava. Em um lugar que não conhecia, Bento não sabia onde era ali, por isso não podia mostrar ao pai, mas chamava por ele e continuava caminhando. Alexandre esperava que o filho pudesse ouvir no lugar desconhecido. Seus lábios se moveram sem emitir som, pedindo ao filho para não parar e não desistir. O encontraria, não importava o que precisasse fazer para isso. Estavam indo!Â
Samuel não percebeu que o pai tinha parado de andar. Um momento estava do seu lado e no outro uma imensidão de tendas improvisadas com lona e tabuas finas os separavam. Atravessou a praça que abrigava dezenas de pessoas, todas unidas pelo vicio e abandono sem perceber que estava sozinho. Olhou em volta procurando o casaco vermelho e não encontrou nada em meio a profusão de tecidos desbotados e escurecidos.Â
Quando se virava para procurar do outro lado, ouviu a voz do pai nÃtida como se estivesse a seu lado, mas não estava. Â
“Vai para casa, tranca a porta e diz ao Diego para pegar o caderno vermelho no fundo do armário do quarto. Daqui em diante é com vocês.â€Â
Mesmo olhando em volta, não voltou a ver o pai ali, fez como tinha mandado.Â