Se viu sozinho finalmente. Â
O pensamento ficava correndo entre milhares de coisas. Aquele dia parecia estar durando eternamente. Tinha começado não horas, mas anos atrás.Â
Tomou banho, cuidou das feridas e se deitou de costas, de olhos fechados. Â
Lydia morta! Nunca mais a veria.Â
Muitos de seus amigos queridos ao longo da vida estavam mortos. Quando se vive o suficiente, as pessoas que conhecem acabam morrendo mais cedo ou mais tarde. Era natural e já tinha se acostumado, mas Lydia doÃa mais. Era sua melhor amiga e também era a última.Â
Achou que devia chorar. Não havia lágrimas. Lydia merecia todas as lágrimas do mundo e não conseguia derramá-las. Nunca tinha sido muito bom em lidar com os próprios sentimentos, tudo ficava muito confuso e misturado dentro dele. Não conseguia separar. Tristeza, frustação, raiva, solidão, tudo virava uma coisa só e por isso não conseguia deixar que as coisas seguissem seu rumo natural, viver o luto e conseguir superá-lo. Â
Tudo o que morre fica vivo na lembrança, imagina o quanto é difÃcil andar por aà carregando um cemitério cheio dentro da cabeça. Cemitério lotado, vida vazia.Â
Estava ficando meio sozinho. Seu mundo estava encolhendo, sabia que ia acontecer e não deixava de ser ruim por isso.Â
Tinha a famÃlia e estava crescendo. Seus meninos, a nora que ainda não havia tido tempo de conhecer e o bebê que estava por vir.Â
Pensou que não era apenas ele quem tinha sofrido uma grande perda naquele dia. Lydia tinha cuidado dos meninos em cada momento que Alexandre não pudera estar com eles. Deviam estar sofrendo tanto quanto ele.Â
O céu clareou e o pegou acordado. Â
 Levantou-se cedo demais já que não iria dormir mesmo. Não podia ficar na sala ou no escritório porque Samuel insistiu em dormir no sofá, o resto da famÃlia ainda estava em seus quartos. Sentou-se um pouco na cozinha, mas a casa começou a parecer pequena, sufocante.Â
O peito doÃa um pouco e parecia difÃcil respirar ali. Queria sair e caminhar um pouco e sabia que não era o melhor momento para se afastar. Voltou para a sala e abriu a porta da frente.Â
Ainda não tinha clareado de todo. A rua começava a ganhar algum movimento, pessoas descendo em direção ao ponto, algumas luzes acessas em casas onde crianças se preparavam para ir à  escola. Alguns adolescentes esperando que um amigo saÃsse para caminharem juntos para a aula. Sentou-se nos degraus da frente observando o mundo ganhar vida e se mover.Â
Respirou fundo algumas vezes na tentativa de fazer com que o coração oprimido batesse mais devagar. Uma sensação esquisita do mundo inteiro estar desabando sobre sua cabeça. Não era a primeira vez. Só tinha que se acalmar um pouco. O mundo não ia acabar, a vida continuaria, não precisava deixar que a ideia de perder tudo o que tinha construÃdo criasse raÃzes. As coisas iam ficar bem.Â
Mas quanto mais tentava se acalmar, mais o peito doÃa. Lydia era a pessoa para quem ligava quando ficava assim, para quem devia ligar agora?Â
Foi quando ouviu a porta atrás dele abrir e tornar a se fechar. Pés se arrastarem silenciosamente até pararem a seu lado e passarem um minuto decidindo se ficariam ou se voltariam para dentro. Não precisava erguer os olhos para saber quem era.Â
Diego se sentou ao lado de Alexandre, também havia passado a noite acordado. Clara implorava para embora. Eles haviam discutido um pouco. O filho mais velho de Alexandre não dizia nada, mas achava que a esposa tinha razão, não era obrigada a entender ou aceitar toda a mudança quando ninguém sequer tinha se dado ao trabalho de conversar com ela . Se ainda não tinha ido embora era só por causa da morte da tia do marido que ela conhecia e de quem gostava.Â
Diego era um bom homem com tendência a evitar conflitos sempre que podia. Preferia conversar a discutir e se fosse forçado acabaria se calando ou concordando. Estava lutando para entender as razões do pai para querer todos sob o mesmo teto, ainda não estava certo de que a pessoa que tinha matado a tia pudesse querer machucar qualquer um deles. Mesmo com tudo, a impressão que tinha era que o pai retornava com a cabeça toda errada.Â
—Quando sua esposa acordar converso com ela. Sei que devo algumas explicações sobre essa famÃlia. Depois se quiserem ir, eu não vou impedir. Não vou obrigar mais ninguém a ficar.Â
—Quando eles liberam o corpo da tia?Â
—Acho que ainda hoje, vão ligar e um de vocês vai ter que ir lá, acho que você seria a pessoa certa, mas se quiser outra pessoa vai. Me dá seu RG e eu digo que sou você, não tem importância. Alguém lembrou de ligar para a Dani?Â
—Clara ligou, ela pediu para a gente tentar segurar o sepultamento, ela está vindo para cá. Como a gente vai explicar o senhor?Â
—Não precisa, ela sabe... eu acho que ela sabe.Â
Ficaram calados por algum tempo, olhando o movimento da rua. Diego ficou um tempo encarando o pai, tinha coisas a dizer e não sabia por onde começar. Sabia o que o pai pensava naquele instante, talvez Alexandre estivesse gritando em sua mente, transmitindo sem perceber como um disco de vinil girando em uma vitrola mecânica que não tem caixas de som, basta encostar a agulha e o som gravado vai ser reproduzido, baixinho, só precisa de silêncio suficiente para escutar. Ou talvez só conhecesse o pai bem o bastante, apesar dos segredos que passara a vida tentando não deixar que eles soubessem.Â
—O senhor está pensando em ir embora, não é? Para o lugar em que nasceu?Â
—Isso passou pela minha cabeça essa noite, não posso negar. Nada aconteceu de ruim a nenhum de vocês enquanto estive fora, eu volto e alguém mata a Lydia. Se tiver alguma coisa a ver comigo, se eu aqui colocar vocês em perigo, preferia ir. De um jeito ou de outro uma hora eu vou ter que ir para casa e cumprir meu destino, como sua avó fala... Â
—O senhor está em casa agora. Não está colocando ninguém em perigo. Não somos mais crianças, pai! Deixa a gente decidir. O senhor sabe de alguma coisa de verdade?Â
—Para ser honesto, não tenho certeza de nada. Só um monte de sensações. Eu posso ter visões à s vezes, mas agora parece que não sei diferenciar. Diego, eu acho que nunca tive tanto medo na vida como tenho agora.Â
Era verdade.  Só não pensou que diria. Sem perceber desabafou com o filho sem perceber. Sentia-se como uma ampulheta sendo esvaziada, como se seu tempo escoasse.Â
—Obrigada por dizer isso. Daqui a pouco tenho que sair, diz para a Clara que quando eu voltar ela vai saber de tudo o que precisa e que ela não está presa aqui, é só uma convidada.Â
Alexandre não esperou uma resposta. Levantou-se, sacudiu a poeira das roupas e foi acordar Samuel. Queria sair dali e dar uma volta. Precisava pegar suas coisas esquecidas na casa da Lydia. Aproveitaria para ver o que a casa podia contar, coisas que as paredes sabiam e Lydia não teve tempo para perceber. Podia ter feito no dia anterior, mas estava mais preocupado em parar de perder sangue por isso tinha que voltar o mais breve possÃvel.Â
Esperou o filho se arrumar e seguiram pelo mesmo caminho do dia anterior.Â
Ficaram parados diante da casa por algum tempo. Samuel riscava o chão com a ponta do tênis sem olhar para nada em particular. Não era como o dia anterior, nenhum dos dois queria de fato entrar ali.Â
Alexandre ofereceu ao filho a chance de ficar de fora dessa vez. Poderia esperá-lo na padaria na outra esquina se quisesse. Não seria nada perigoso, só entraria e conversaria com as paredes, não era legal nem de ver.Â
Samuel se recusou. Ficaria com o pai, ajudaria se pudesse, nem que servisse apenas como um ouvido para o que as paredes tivessem a dizer.Â
Alexandre sorriu ao ouvir essas palavras. Que bom que tinha decidido ter uma famÃlia no mundo em que estava, não eram parte de seu plano inicial, mas eram a melhor coisa que tinha acontecido.Â
O cheiro na casa era quase insuportável agora. Â
Alexandre se lembrou de que teria que fazer uma bela limpeza antes que Dani chegasse. Não permitiria que a afilhada visse o sangue de sua mãe espalhado e ficasse com essa imagem tatuada nas lembranças. Â
Assim que terminasse. Agora teria que conviver com a sensação desagradável, depois trabalharia para deixar tudo em ordem.Â
Tirou o agasalho de moletom e amarrou na cintura, reconhecendo em frente ao espelho a imagem que guardava de si mesmo. Estava abafado na casa de Lydia, ainda não abriria as janelas, não queria nenhuma sensação escapando.Â
Samuel parou próximo a porta enquanto Alexandre se dirigiu ao centro da sala sobre o tapete, olhando em volta como se fosse a primeira vez que pisasse no lugar.Â
—Vamos lá, me contém o que viram.Â
Pensava melhor quando podia pensar em voz alta, parecia que a liberdade tornava as coisas mais claras. Nunca tinha feito aquilo de conversar com as paredes e com objetos na frente de outras pessoas. Essa era uma atividade furtiva e pouco lucrativa sem nenhuma serventia comercial. Fazia mais para ele mesmo por diversão ou para saber coisas que não queria descobrir invadindo a intimidade das pessoas que amava.Â
Caminhou até a porta, correndo os dedos pelas paredes lentamente. Fechou os olhos para ver se a sensação, por menor que fosse, seria um pouco mais clara. Â
A chamada empatia era uma habilidade complicada que algumas pessoas tinham. Dependia de que emoções de pessoas tivessem grudado em coisas materiais. Pessoas muito controladas ou incapazes de sentir não deixavam esse tipo de impressão. Estava certo de que acharia muito pouco do que queria e muito das coisas de Lydia. Tinha que tentar mesmo assim, sob pena de não conseguir seguir se não o fizesse.Â
A maçaneta da porta queria falar do dia em que havia sido fechada após Lydia levar a filha ao aeroporto pela última vez. Foi o dia que Lydia soube que passaria sua velhice sozinha. A primeira vez que se despedia de Dani depois que André tinha partido.Â
 Caminhou mais um pouco. A quina da coluna agora pintada de branco queria falar sobre como tinha visto a menina crescer, os riscos de suas alturas até completar oito anos e não querer mais saber daquilo. Nem precisava da lembrança da parede para se lembrar do cantinho que Lydia não tinha coragem de pintar. Â
Cada tijolo queria lembrar de uma coisa bonita que Lydia vivera, muitos deles contavam coisas que testemunhou pessoalmente. Durante muitos anos passava mais tempo ali do que em casa. Dani era sua afilhada, cinco anos mais velha que Diego. Ali era a casa de sua famÃlia antes de ter uma para si, era difÃcil não deixar que uma enxurrada de sentimentos e lembranças o invadissem.Â
Da pessoa que invadia para machucar só sentiu um leve resquÃcio próximo a porta, onde deve ter ficado assustado e excitado ao fechar e algo mais forte parado diante do sofá. O homem parou exatamente onde estava agora, podia ver o que ele tinha visto. Via pelos olhos dele e não era disso que precisava, queria ver o rosto. O homem estava fora do foco do espelho como se evitasse de propósito seu próprio reflexo.Â
De qualquer modo via o que ele via e sentia o que ele sentia, era um bom vestÃgio, forte, presente. Até ali não tinha sentido nada. O homem entrou na casa como quem entra em um corredor de um prédio para escritórios e tem a missão de trocar uma lâmpada, nada demais, só mais um trabalho, por que as coisas tinham mudado quando tinha chegado à quele ponto?Â
Olhou em volta. De onde estava não podia ser visto da janela, mesmo se a cortina estivesse aberta e não estava, não tinha sido o medo de ser visto por um vizinho bisbilhoteiro que o fez parar. Â
Olhou mais um pouco procurando o que poderia chamar atenção do homem em uma casa simples a ponto de mexer com suas emoções, o que sentia era um misto de alegria, euforia, arrepio e uma sensação indefinida entre ansiedade e uma ponta de medo. Viu a prateleira onde antes repousavam quatro fotos.Â
Só podia ser isso. O homem tinha visto as fotos na prateleira e por algum motivo isso mexeu com ele. Depois tinha caminhado até os cômodos internos da casa. Agora que havia encontrado seu rastro emocional não era difÃcil ver pelos olhos dele e sentir o que tinha sentido.Â
Oculto pelo corredor mal iluminado, esperou por muito tempo sem tirar os olhos da porta. Viu na pouca luz do fim de tarde quando a maçaneta girou, não foi visto e nem percebido. Estava calmo, apenas cumpria ordens.Â
Não queria mais ver, mas agora estava integrado demais com as impressões do homem, então viu quando ergueu a arma que fez um som abafado como um pneu sendo esvaziado e duas flores rubras brotaram do peito de Lydia, uma ao lado da outra, crescendo no peito, se espalhando pelo vestido de flores verdes que usava. Â
O homem achou poético, quase bonito. Observou por alguns instantes até que o som de chiado deixasse de escapar pela boca com dentes manchados de vermelho e o silêncio voltasse a reinar na casa quase vazia.Â
Deu dois passos e alcançou a prateleira. Estendeu a mão e tocou o porta-retratos faltante por alguns instantes, uma onda de emoções confusas o invadiu, medo estava entre elas. Demorou um pouco e se decidiu a apanhá-lo. A blusa de tecido sintético preto escorregou um pouco, deixando o pulso a mostra. Â
Uma tatuagem de pássaro em voo, como já tinha visto antes no policial que falou com ele e Diego no dia em que souberam da tragédia da amiga, como já tinha visto antes no pulso do estrangeiro que segurava a lâmina que lhe causou a ferida infeccionada no lado esquerdo do abdômen.Â
Que diabos aquilo tudo queria dizer?Â
Forçou-se a permanecer onde estava. Na lembrança que o homem deixava nos móveis e nas paredes da sala. Se a perdesse nunca mais acharia e já que chegou até ali veria até o final.Â
Com a calma de um artista meticuloso, o retrato foi passado para o lado de dentro de uma bolsa e o corpo arrastado, movido e arrumado para que ficasse na posição perfeita, sua assinatura.  Arrependeu-se de não ter conversado com as paredes de sua própria casa na época, nem mesmo pensou nisso. Sua mente estava confusa e amedrontada, tudo o que pensava era como viveria sem seu amor e como conseguiria cuidar dos três meninos que agora eram só seus.Â
Tinha visto todos os sinais, tinha pensado que as coisas estavam erradas, mas não tinha ido em frente, tinha coisas mais importantes para fazer na época.Â
O homem admirou seu trabalho. Apanhou panos limpos na cozinha, limpou o que julgou que não devia estar sujo e quando achou que tinha o resultado que queria, deixou a casa pela porta da frente, sem se preocupar se alguém poderia vê-lo. Era noite, mas noites quentes em bairros são muito movimentadas, as crianças brincam na rua e os adolescentes se reúnem em grupos diante de alguma calçada. Muita gente poderia vê-lo e por algum motivo ele não se importava e de fato ninguém o percebeu. O homem foi embora sem que ninguém o olhasse duas vezes.Â
E então mais nada, era ele mesmo novamente. Graças a Deus era ele mesmo novamente!Â
Avisou a Samu que se quisesse podia ir para casa, ele limparia tudo. Teria com a casa de Lydia e com a afilhada o mesmo carinho que ela teve durante tantos anos com sua casa e seus filhos.Â
Samuel arregaçou as mangas. Também amava a tia e agradecia por tudo que tinha feito por eles. Terminaram bem depois da revoada de crianças passar correndo pelo portão voltando das aulas da tarde.Â