Quando olhou para o lado contou seis daquelas pessoas com roupas de épocas diferentes. Tinha encontrado com cada uma conforme seguia seu caminho, tinha matado tempo conversando sobre o que viam. Algumas relutaram mais que as outras, acreditando mesmo que para elas já tinha acabado, que mereciam o inferno cinzento onde se encontravam, a visão paralisante as perseguiria aonde quer que fossem. Bento então sorria e estendia a mão, dizendo que então podiam se levantar e seguir só para esticar as pernas, já que não fazia diferença. Agora eles o seguiam para todo canto, andando por perto, nunca se afastando mais que alguns passos.Â
Não conversavam nem com Bentinho e nem entre eles, mas ao menos haviam parado de rolar os olhos pela neblina a procura das coisas que os machucavam. Bento já considerava isso uma vitória.Â
De vez em quando acabava encontrando com um dos seus, uma peça mal montada chamada de desfile da vergonha, não pareciam mais tão sólidos e nem tão dolorosos, só tristes. Se pudesse voltar no tempo, talvez fizesse tudo diferente. Não podia então precisava aceitar que as coisas que tinham acontecido, outras coisas acabariam acontecendo, não precisava ficar preso olhando para elas. Â
Seu corpo reclamava um bocado. Poderia se deitar e dormir por dois dias seguidos. Se achasse água beberia um galão todo e o estomago parecia colado as costas.Â
Chegou a pensar que seria bom parar, sentar um pouco só para recuperar as forças, então ouviu a voz do pai, lá longe, na sua lembrança, como um sonho velho que do nada surge no consciente e te deixa se perguntando por que está pensando naquele sonho logo agora. O pai pedia, quase implorava para que não parasse, para caminhar sempre em frente e para não desistir.Â
Ainda que quisesse descansar um pouco, os novos amigos deviam estar muito mais cansados que ele, não seria justo parar agora. Â
Olhou para cada uma daquelas pobres almas e continuou. Pouco mais a frente encontrou outro. A sombra se adensou mais do que a maioria antes dele, tornando mais real. Devia ser novo por ali.Â
Um homem ajoelhado no chão, abraçando o próprio corpo, com os olhos trincados, fuligem no rosto cortadas por dois riscos limpos por causa das lágrimas grossas que rolavam sem parar.Â
Bento não sabia se seus companheiros também viam o que o homem via quando olhavam na mesma direção. Se viam não deixavam transparecer qualquer julgamento. Bento achava que tinham passado tanto tempo olhando para os próprios pesadelos e pecados que não se atreveriam a se sentir superiores a quem quer que fosse.Â
Um carro vermelho escuro, fumegante e destruÃdo pela metade tinha batido de frente contra um carro azul metálico que acabou sendo jogado de lado. No interior do carro azul, uma menina de uns dez anos com os cabelos trançados com fios coloridos respirava com dificuldade e chorava no banco de trás. O corpo tinha sido atravessado pouco abaixo do ombro por uma coluna do carro. Na frente havia duas pessoas, um homem com o pescoço numa posição estranha e uma moça que se parecia com a menina atrás. Os olhos da mulher tremiam. Ninguém gritava, exceto o homem do outro carro, em pé do lado de fora do carro destruÃdo.Â
Ao julgar pelo estado do veÃculo deveria estar morto ou quase, mas tirando alguns arranhões no rosto e um pulso que parecia quebrado estava como novo.Â
Bento se aproximou do homem que encarava a cena, chorando constantemente. Tentou fazer como tinha feito com os outros. Aproximou-se, convidou a seguir com ele. Insistiu. O homem nem mesmo chegou a olhá-lo. Â
Já fazia algum tempo desde que entrara na névoa que não sentia o aperto no coração que sentia agora, tentou até agarrar o homem, arrastá-lo, obrigá-lo a ao menos virar o rosto em sua direção. Não conseguiu nada. Deixou-se abalar porque até ali tinha sido bem-sucedido e não queria deixar nenhum deles para trás. Os outros continuavam ali parados, distraÃdos, esperando por ele.Â
Partilhou com o homem as lágrimas grossas, agora elas desciam por seu rosto também. Não sabia de onde estava tirando forças para fazer o homem se mover um pouco, só para vê-lo voltar logo em seguida para a mesma posição anterior, como se nada tivesse acontecido ou como se não percebesse mais nada por ali.Â
Bento já estava ofegante, não tinha a menor ideia de há quanto tempo estava tentando fazer com que o homem desviasse o olhar da cena horrorosa a sua frente.Â
Olhou para os companheiros da névoa, ainda ali em seus próprios pensamentos. Olhou para suas próprias mãos, que pareciam menos sólidas do que antes, mesmo que fosse impressão sua.Â
Esfregou as mãos nos jeans puÃdos e sujos e se levantou devagar.Â
Deu uma última olhada no sujeito, só para ter certeza de que realmente não poderia fazer mais nada. Secou as lágrimas na manga da blusa esfarrapada. Respirou fundo e se pôs em movimento novamente. Seus companheiros o seguiram, passando pelo homem e por seu acidente-prisão. Só Bento olhou para trás, sentindo uma tristeza que parecia não caber no peito.Â