Enquanto Eros tentava acalmar sua Senhora, Samuel sentado sobre a cama balançava a perna inquieto e irritado por não conseguir pensar em nada para fazer e Diego já há algum tempo observava da janela, curioso com o mundo novo lá fora, observando a vida daquelas pessoas que não conhecia acontecendo.Â
Viu quando alguém se apressou em direção da porta. Um daqueles meninos vestidos com túnicas azuis, parecendo jovem demais para qualquer função e ainda mais para o que parecia um exército.Â
O menino parou diante da porta e se ajeitou antes de bater.Â
Três batidas incertas, tÃmidas. A criança deveria saber que a Senhora estava naquela casa e queria fazer boa figura. Quem sabe até impressionar. Diego tinha a sensação de que o menino achava que aquela era a missão mais importante que teria na vida e talvez fosse quase isso.Â
Eros abriu de uma só vez, assustando o garoto que levou um segundo para se recompor e disse com sua voz fraca.Â
—Mestre Eros, uma passagem se abriu na barreira. Quatro pessoas estão chegando e o herdeiro está entre elas.Â
—Não! A Senhora fica aqui até sabermos a intenção dessa gente. Se algo ruim acontecer, não podemos arriscar vocês dois!Â
—Eu vou! Ele é meu filho, nada mais importa agora. Entendeu, protetor?Â
Eros engoliu antes de responder, sem uma alternativa.Â
SaÃram da cabana de Eros com uma sensação estranha, o protetor ia adiante, os filhos de Alexandre iam cada um de um lado da avó, sem saber que assumiam a postura de protetores imitando Eros.Â
As pessoas olhavam curiosas, mas não aflitas, aparentemente sem ideia do que poderia estar acontecendo. Eros parou um dos protetores e mandou isolar a área próxima ao poço.Â
 Pouca gente ia lá, as pessoas tinham medo de se perderem na floresta, acabar ultrapassando o limite do inÃcio da barreira e nunca mais voltarem. Ainda assim era necessário garantir que as crianças não fossem levadas por sua curiosidade natural e houvesse riscos de alguma delas se ferir, melhor que ninguém, nem mesmo seus protetores se aproximassem do lugar.Â
Chegaram quase ao mesmo tempo em que Alexandre terminava de cruzar a barreira. Correu os olhos por seus filhos e seu professor e os fixou em Liana.Â
Ele sorriu. O sorriso mais cansado do mundo, bonito ainda assim. Os olhos não pareciam resignados. Seja lá o que ele estivesse pensando, parecia que não era em apenas entregar os pontos. Seu filho tinha algo em mente.Â
Alexandre deu alguns passos a diante, deixando os dois homens que o acompanhavam tensos e parecendo não perceber ou se importar com isso. Abraçou sua mãe, que mantinha os olhos na mão machucada.Â
—Vamos chamar alguém para cuidar disso!Â
—Mais tarde, consegue um lugar para a gente conversar um pouquinho.Â
Eros pensou em levá-los de volta a própria casa, Alexandre balançou levemente a cabeça e Eros entendeu sem que seu garoto precisasse completar a mensagem em sua mente. Bem no meio da vila, gente demais, se as coisas saÃssem do controle ele não queria ninguém machucado.Â
Havia uma cabana vazia quase ao pé da montanha. Tinha pertencido ao antecessor de Eros muito tempo antes, devia estar suja e malcuidada, não sabia se alguém tinha se ocupado em mantê-la habitável, mas encontrariam uma mesa, cadeiras e paredes que os deixariam fora de olhares curiosos. Devia servir.Â
Alexandre deu as costas a seus filhos sem falar com eles. Como se não quisesse preocupá-los ou quisesse dizer algo com o gesto de aparente desprezo. Diego ainda não entendia qual era a mensagem, mas entenderia em breve, se houvesse algo a entender.Â
—Quem são eles, Elohi? O que essa gente quer?Â
—Ela diz que é minha noiva e eles... nós vamos conversar lá dentro, tá bem?Â
Abriu a porta deixando que todos entrassem antes de entrar ele mesmo. Bruno foi o último, afastando Alexandre da porta e impedindo que ele a trancasse. Encarando o herdeiro como se dissesse “sem gracinhas!†novamente. Como se Alexandre fosse tentar algo estupido com as pessoas mais importantes de sua vida ali. Jamais os arriscaria, a si mesmo, sim.Â
Os rapazes de Alexandre permaneceram de pé atrás da cadeira ocupada por Liana. Eros se sentou ao lado da Senhora e os homens de Diana se colocaram de pé atrás da cadeira de Alexandre, sentado ao lado de Diana, em frente a mãe.Â
Alexandre encarou seus filhos por alguns segundos e depois estendeu a mão boa sobre a mesa, Liana fez o mesmo, um pouco tremula. Ficaram de mãos dadas por algum tempo.Â
—Estou muito feliz em finalmente conhecer a senhora!Â
Diana quebrou o silêncio, sabendo que o domÃnio da situação lhe pertencia.Â
Alexandre fez um resumo do que sabia, percebendo a preocupação dos filhos e da mãe sobre Bento, mas sem se deter, continuou seu relato de quase tudo o que passou até ali.Â
—Enfim, você quer dizer que não há nada que podemos fazer para impedir a barreira de cair e que você vai colaborar com eles.Â
Liana perguntava com uma tristeza no olhar que era de cortar o coração, um misto de decepção e dor. Naquele momento achava que ele tinha concordado, não se tratava mais de salvar Bento, ele já estava perdido, se insistia era porque concordava.Â
—As coisas precisam mudar, já está na hora...Â
—Dona, ele já disse, as coisas precisam de uma mudança. Adeus ao velho, bem-vindo seja o novo. Â
Diana estava impaciente e perdia sua pose delicada, quase gritando, fazendo com que Eros quisesse corrigir a falta de respeito, mas permanecesse imóvel com as mãos cruzadas sobre a mesa. O olhar rápido de Alexandre foi o suficiente.Â
—Eu não posso fazer isso, Elohi.Â
—Acho que a senhora não entendeu. A senhora vai derrubar aquela maldita barreira porque só o Senhor pode fazer isso, não é? Â
—Ela não pode fazer porque não quer fazer! Eu te disse antes, essa coisa tem que ser um gesto de vontade consciente. Um Senhor não pode ser coagido a nada!Â
—Bom! Se ela não for mais a senhora esse probleminha fica resolvido. Bruno...Â
—Pensei que você fosse mais esperta...Â
A voz de Alexandre estava livre de qualquer emoção. Fez com que Diana fizesse um sinal para que Bruno parasse.Â
—A Senhora de Al Dahin não pode ser coagida a nada! Nem a ceder seu lugar com a morte. Se ela se for sem passar as chaves para seu herdeiro, acabou para nós aqui dentro e para os seus lá fora. Ninguém vai poder derrubar a barreira e eu até consigo abrir passagens, mas não muito grandes e não por tanto tempo. Essa é uma decisão que só o Senhor pode tomar, faz parte da função.Â
—E você faria? É isso o que quer? Você veio para se tornar o Senhor deste lugar.Â
Liana ainda tinha a mão repousando na do filho. O que ele estava pedindo era absurdo e ao mesmo tempo ela tinha esperado que ele quisesse e aceitasse isso durante toda a vida dele. Era confuso.Â
—Era o que vocês queriam. Tudo bem, eu estou pronto, eu posso fazer isso e vocês me prepararam bem. Eu me preparei bem também, não estava parado esse tempo todo... Foi bom, sabe... viver lá fora..., mas eu estou pronto. Confia em mim, mãezinha! Só dessa vez.Â
Liana confiava. Sempre tinha confiado, independentemente de qualquer coisa, sempre soube que ele seria dos melhores. Confiaria nele com sua vida e ele sabia disso.Â
—É o que você quer? Você realmente está pronto?Â
Alexandre não respondeu imediatamente, baixou os olhos pensando em tudo o que isso significava. Diana falava algo a suas costas, mas ele não ouvia. Naquele momento só ele e a mãe existiam no mundo. O assunto era entre eles apenas, a decisão final era dele e no fundo sempre tinha esperado se encontrar nesse momento.Â
Ele balançou a cabeça e voltou a encarar a mãe.Â
—Eu estou pronto. É a minha vontade.Â
A tradição mandava que aquele momento fosse testemunhado. Num cenário ideal estariam em uma festa particular de seu povo, sem visitantes de fora. Todos deveriam ser liberados de suas atividades, devia haver um grande jantar para todos e poderia haver música se alguém quisesse tocar. As crianças deveriam ser abençoadas com presentes pelo novo Senhor e durante uma semana todos poderiam trazer suas questões em audiência. Era o momento em que pais sem casta poderiam pedir humildemente que um de seus filhos se tornasse um protetor ou que aprendesse com os curandeiros a usar ervas e flores para ajudar o povo. Deveria ser um momento bom para todos, onde a esperança se renovaria e não ser feito à s escondidas em uma casa que há muito não via vida, mas não era um cenário ideal, nada ali era.Â
Alexandre não tinha certeza se as seis pessoas na sala com eles conseguiam ver o que ele via. Um cÃrculo dourado se ergueu apenas ao redor deles, ofuscando a vista e tornando os filhos, o protetor e os outros como se fossem apenas sombras. Â
Havia uma outra luz, azulada e mais fraca, entre sua mão e a mão de sua mãe. Era quente, não era desagradável, como um choque de eletricidade estática que causa um leve formigamento na pele.Â
Da última vez que tinha acontecido o que chamavam de troca de chaves, ele estava por nascer. A bisavó passou para sua mãe diante de todo o povo. Ninguém tinha lhe contado como seria. Era bonito e ele tinha consciência do peso da decisão que tinha tomado. Milhares de vidas agora eram sua responsabilidade.Â
Quando a luz dourada começou a esvanecer, soube que não poderia mais voltar atrás o remédio era seguir e esperar que as coisas saÃssem como tinha imaginado, no melhor dos cenários ninguém dos seus se machucaria.Â
Quando a luz deixou de cegá-los para o que havia além do cÃrculo dourado, teve certeza de que quem estava de fora também tinha visto pelo menos parte do que acontecia.Â
Os olhos de Alexandre cruzaram com os de Samuel. Uma palavra foi o que teve tempo para plantar na mente do filho do meio. O mais velho recebeu outra. Eros foi quem recebeu mais. “Não importa o que ela diga, sua prioridade é a segurança dela, não a minha!â€Â Â
O aceno do protetor foi tão leve que pode ter sido imaginado por Alexandre.Â
—Você já consegue fazer? Podemos ir lá para fora e ver a neblina desaparecendo agora?Â
Alexandre sorriu, diferente do sorriso que dera a famÃlia ao chegar e diferente de todos os que tinham sido realizados até então. Depois, as pessoas daquela sala que tivessem chance de comentar com outros sobre aquele fim de tarde e contar a história, cada uma a seu modo, descreveriam aquele sorriso como o de alguém que tinha aceitado seu destino.Â
—Eu nunca disse que derrubaria aquela bendita barreira, querida.Â
Sem que os dois homens fortes e armados imaginassem. Samuel puxou a faca de lâmina negra que dias antes seu pai tinha usado para convocar o espÃrito da tia. Talvez fosse o resto da luz do dia lá fora que entrava pelos espaços entre as madeiras da cabana, talvez uma impressão que vinha das velas acesas ou de seus olhos viciados na luz dourada e azul que tinha dominado o lugar pouco antes, mas teve um segundo de percepção da lâmina adquirir um brilho estranho que pensou que não deveria estar lá.Â
Apesar da falta de destreza, a lâmina feriu o menor dos dois homens no pescoço, não de forma mortal, mas bastante eficiente, rasgando pele e carne. Fazendo com que caÃsse com a mão sobre a garganta, tentando estancar o sangue. Igor não seria um problema, ao menos por enquanto. Mais tarde se ocupariam com ele.Â
Diego não teve tanta sorte quando tentou sacar a arma encantada. Perdeu alguns segundos preciosos desenroscando o cabo da camisa que usava, permitindo que Bruno, que estava mais atento ou recuperou a visão antes de seu colega, apontasse a sua em direção a cabeça do homem do outro lado da sala. A mão ardeu, fazendo com que o fogo imaginário subisse pelo braço até que a arma, incandescente, fosse atirada a um canto. Â
Bruno não precisava do objeto para representar perigo. Aproximou-se rápido de Diego, dois ou três movimentos foram mais que suficientes para tomar a arma das mãos inexperientes do filho de Alexandre. Com a arma na mão, Bruno não hesitou em apontá-la e puxar o gatilho mirando Alexandre, seguindo a lógica que se aquele sujeito estivesse morto a confusão pararia.Â
Liana gritou e tentou se lançar sobre o homem que empunhava a arma ao mesmo tempo que era levada para fora, praticamente arrastada por seu protetor. Ela continuou lutando para se libertar, dizendo que Eros deveria proteger o Senhor, e não ela. Chutando e arranhando sem se preocupar se o machucaria ou a si mesma. Só parou quando ouviu o disparo.Â
Quando Liana se soltou foi para derreter lentamente até que seus joelhos tocassem o chão. Ela teve certeza de que tudo estava acabado. A bala tinha acertado Elohi, ela estava sozinha no mundo, cheia de arrependimentos e assuntos não resolvidos com seu único filho e tendo passado as chaves para o novo Senhor, não poderia abrir a barreira. Nem mesmo pedaços, o filho era muito melhor que ela para essas coisas. Â
Estariam presos ali até que a morte chegasse para todos sem que nunca mais pudessem receber visitantes e nem ajudar os desesperados que viessem. Estava tudo acabado.Â
Pouco depois duas coisas aconteceram.Â
A mulher que havia chegado com Alexandre passou apressada por eles enquanto Eros tentava erguer Liana. Parou por um instante se virando para eles e decidindo continuar seu caminho na direção do local onde a passagem de Alexandre havia sido aberta.Â
Havia uma espécie de flor vermelha na altura de seu peito que nem Liana e nem Eros entenderam num primeiro momento.Â
Em seguida, sete sombras surgiram na barreira próximas ao poço das almas, uma delas se adiantou, chegando à parte ensolarada, pareceu se virar e fazer um gesto a seus companheiros que deram o passo seguinte, desaparecendo segundos depois que o resto de sol daquele dia incrivelmente longo os tocou. Â
A figura que ficou solitária, se demorou um pouco, depois se virou e arrastou os pés cansados em direção de onde estavam.Â
Estava sujo, suas roupas estavam em farrapos e parecia que no próximo passo cairia de cara no chão, mas Liana pode reconhecer o único neto que o filho lhe apresentou.