Diego queria ficar, esperar até que levassem o corpo da tia e depois segui-la até onde deveria confirmar sua identidade. Alexandre conseguiu com muito custo convencê-lo de que deviam ir para casa. Tinha uma sensação crescente de ameaça que poderia ser só porque havia ficado impressionado com os pedaços da cena que captou dos policiais ou podia ser real, não sabia dizer.Â
Um policial veio dizer que ligariam quando fosse o momento de reconhecerem o corpo, agora ajudavam mais se fossem para casa e descansassem. O dia seguinte não deveria ser fácil para eles. Só assim Diego aceitou que era o melhor a fazer.Â
O policial estendeu a mão e Alexandre reparou na tatuagem no pulso do homem. Uma tatuagem pequena, na forma de um pássaro em voo e que pela marca mais clara na pele, vivia oculta sob um relógio ou uma pulseira grossa. Não sabia que policiais podiam usar tatuagens, também nunca tinha ouvido dizer que não podiam, só que a existência da marca o incomodava, principalmente pelo fato de que o homem parecia se esforçar para que não fosse vista, exceto aquele dia.Â
Por algum motivo que desconhecia seu cérebro ficava voltando a imagem, tentou esquecer e seguir seu caminho.Â
Entraram no carro. Diego não deu a partida, não conseguia. Lydia estivera presente em toda sua vida, era sua madrinha. Quando a mãe tinha ido embora, foi deixado na casa da tia. Quando brigava com o pai, era para ela que ligava. Ela quem tinha entregado seu diploma de formatura. Era o mais próximo de mãe que tinha e agora não existia mais por culpa de um vagabundo qualquer que tinha entrado em sua casa e... Não conseguia nem pensar na palavra, mas não pensar não desfazia o fato. Lydia se fora.Â
Alexandre permaneceu calado ao lado do filho, entregue a seus próprios pensamentos, vendo as lagrimas correrem silenciosas e esperando que parasse de tremer. Queria abraçá-lo, acalmá-lo, mas não sabia como o filho receberia o gesto. Nesses momentos sempre se sentia um inútil.Â
Apesar de entender o peso da situação e o que ela significava, seus pensamentos teimavam em voltar para uma lista de fatos estranhos.Â
Samanta tinha sido morta em um assalto no meio da tarde, surpreendida em casa por alguém que lhe dera dois tiros na altura do coração. Tinha caÃdo numa posição estranha, com os pés juntos, cruzados, pernas estiradas e braços levantados acima dos ombros. Lydia, segundo o que viu na mente dos policiais, estava na mesma posição.Â
O policial tinha uma tatuagem escondida que hoje fizera questão de mostrar. Uma tatuagem que Alexandre sabia já ter visto antes, só que não conseguia se lembrar de quando ou onde.Â
Coincidências suficientes para um mundo onde não existiam coincidências verdadeiras, ou eram informações que seu cérebro cruzava já que a mente humana adorava padrões, ou não eram coincidências.Â
Quando Diego se acalmou e com as mãos trêmulas tentou girar a chave já no contato, Alexandre colocou a mão por cima da dele, tentando firmá-la e tentando mostrar que estava ali.Â
O filho olhou assustado, aparentemente esquecido de que tinha companhia. Não conseguia dizer nada. As palavras impedidas por um volume estranho que se formava em sua garganta. Um nó que já havia estado ali antes. Â
Ao tocá-lo Alexandre podia compartilhar a dor, entender, sentir por si mesmo e dar forma a sua dor que na maioria das vezes não sabia como demonstrar.Â
—Quando você estiver pronto para ir, por favor, passa na sua casa, pega sua esposa e algumas roupas para vocês dois e avisa ao seu funcionário para não abrir a loja até segunda ordem.Â
—Eu posso tirar dois ou três dias de luto pela tia, mas duvido que a Clara vá querer sair de casa e não dá para ficar tanto tempo com a loja fechada...Â
—Quanto a loja e a suas contas, acho que tenho o suficiente para te garantir por um ano se viver direito. Você e seus irmãos, sua famÃlia também. Não precisa se preocupar com isso. Eu acho não foi um assalto, acho que tem a ver com a gente, o único lugar seguro para vocês é a minha casa, vocês precisam ficar lá até eu ter certeza de que tudo está em ordem. Eu não posso cuidar de vocês se cada um estiver em um canto, eu não consigo. A casa já é segura.Â
Diego desviou o olhar do rosto do pai e Alexandre percebeu que o que tinha dito soava mais desesperado que racional. Â
—Pai... o senhor não lida bem com essas coisas! É como quando a Mam morreu, o senhor passou dias ruim, depois ficou paranoico, quase deixou a gente doido. Não faz isso não, por favor!Â
Ele não estava tão errado. Quando Sam tinha morrido Alexandre tinha surtado. Não deixava que nenhum dos filhos saÃsse sozinho, nem para ir à esquina comprar um refrigerante ou brincar com um coleguinha de rua, começou a ir buscar e levar na escola, não deixava que saÃssem de sua vista e por muito pouco não tinha deixado de resistir aos pedidos constantes da mãe, arrumado os três com suas coisinhas e levado para além da barreira, onde nada de ruim pudesse tocá-los.Â
Naquele ano quase não foi a sua terra e se foi havia sido apenas pela força da promessa que fizera. Confiando os três aos cuidados de Lydia e André, que ele sabia que soltariam os meninos de um jeito que ele mesmo não conseguia. Quando voltou tinha iniciado o processo para tornar sua casa segura. Processo trabalhoso que levara anos para ser concluÃdo.Â
Diego agora olhava novamente para ele, esperando uma resposta.Â
—Não é sobre isso...Â
—Só responde! Você confia em mim?Â
—É claro! As vezes o senhor age de um jeito que não entendo, mas eu confio no senhor, sempre confiei...Â
—Quando Sam morreu, vocês eram muito pequenos, eu achava vocês muito pequenos, teve muita coisa que eu não dividia com vocês, agora são homens, não vou mais deixar vocês no escuro, mas por enquanto eu preciso que confiem em mim, principalmente você.Â
—Por que principalmente eu?Â
—Porque é o único que é realmente meu filho. Eu considero vocês três igual, amo vocês como se os três fossem meus, mas não são... só você é. Ter o meu sangue é importante, faz você conseguir fazer coisas que eles não podem.Â
 Lembra da arma na caixa de pedra da estante, do dia que eu te dei ela? Se alguma coisa acontecer comigo você, só você vai poder proteger seus irmãos e sua famÃlia, a barreira que fiz em casa vai ficar ativa por algum tempo, mas só se você estiver lá porque meu sangue corre em você.Â
 Vai ser tempo o bastante para que a avó de vocês abra uma porta e deixe vocês entrarem no meu mundo. Nosso acordo garante isso. Se for necessário, é claro. Lá vocês vão poder ficar ou ir para onde quiserem.Â
E, se eu estiver delirando, se nada acontecer, você volta para sua casa, com sua esposa, vive sua vida e eu reponho seu prejuÃzo. Você não perde nada. Então, você confia em mim?Â
A chave girou no contato. Os olhos de Diego se fixaram na via, o espelho foi ajeitado e não houve resposta. Alexandre não precisava de uma. Sabia que estavam indo para a casa do filho e que mais tarde teria que explicar muita coisa para a nora que não conhecia ainda e para seus rapazes. Â
Passou o dia no escritório. Após a reunião do conselho mandou que o secretário cancelasse qualquer compromisso que tivesse e que avisasse a qualquer pessoa que a procurasse que ela não queria receber ninguém, avisaria quando estivesse disponÃvel.Â
Aguardava o retorno de um de seus melhores aliados, queria saber quais seriam as notÃcias e estava curiosa pois ele havia dito que tinha um presente especial para ela.Â
Passeou pelo escritório, ajeitando as flores sempre frescas e parando próximo a janela de vez em quando.Â
Olhando pela janela, reparava agora o quanto aquela parte da cidade tinha se modificado sem que ela percebesse, apesar de ter passado quase todos os dias naquele escritório que dividiu com o pai desde que havia se tornado adulta.Â
Lembrava-se de si mesma entrando pela primeira vez através da porta-camarão que o pai havia aberto de par em par para que ela tivesse a sensação de entrar em um mundo totalmente novo. Tinha sido há tanto tempo, antes que ela decidisse seu destino, antes da doença do pai, antes dos pássaros estarem sob sua responsabilidade. Era um tempo mais simples que ela temia que nunca voltassem.Â
O pequeno escritório de consultoria do pai tinha virado o centro de uma organização multinacional. A localização não era das melhores, o pai gostava de ficar distante do centro, dizia que quem quisesse seus serviços tinha que fazer algum esforço para encontrá-lo. Claro que o dinheiro grosso que pagavam deveria ser sacrifÃcio suficiente, mas seu pai tinha seus orgulhos e ela sempre havia respeitado isso nele. O velho não era fraco.Â
Agora ela era a única dona do prédio todo, ao menos por enquanto. Logo dividiria sua herança e sua vida com o outro dono legitimo. Mantinha a sede de seu império ali mais por nostalgia pelas horas que passava ao dividir o escritório com o pai.Â
Quando havia percebido que a filha herdou parte de seus talentos, tratou de ensiná-la sua profissão. Roubar segredos e modificar pensamentos era um trabalho bastante lucrativo, o suficiente para educá-la nas melhores escolas que o dinheiro podia pagar no paÃs. Poucas mulheres em sua época tiveram tantas oportunidades, ela poderia ser o que quisesse num tempo em que mulheres se educavam para conseguir um bom marido. O que ela queria ser era uma caçadora como o pai.Â
O pai era o Deus que ela tentava agradar, a mãe uma pobre coitada que o seguiu sem se perguntar se ele queria companhia ou se poderia amá-la de volta.Â
Uma moça de pouca inteligência, sem nada que a distinguisse das outras, uma coisinha sem graça, sonhadora e pouco lucida. Alguém do povo, apaixonada pelo vizinho irmão do fazedor de roupas sem juÃzo. Ela nem sabia que ele era descendente direto do povo antigo e ainda assim o amava, ele nem sabia o nome da menina que morava na casa ao lado e sempre dava um jeito de cruzar seu caminho quando saia para fazer suas entregas.Â
Esperava conhecê-lo na próxima festa, a primeira dos dois como adultos. Ele tinha outros planos, comemorados por toda gente quando alcançados, menos por ela que chorou dias sem fim, trancada no quarto, sem participar dos festejos. Então veio a notÃcia de que seu querido teria de ir embora.Â
Dos males o menor, ao menos não morreria.Â
Ela o procurou uma noite antes de que o portão fosse aberto e ele se perdesse para sempre. Entregou-se a ele naquela noite sabendo que se os Deuses a abençoassem ela também conceberia. Assim foi, e quando ele foi jogado para fora de seu local de nascimento, ela pulou atrás dele sem que qualquer um pudessem impedi-la.Â
O rapaz a aceitou, mas não a amava. Amaria com o tempo, quem conseguiria desprezar alguém que abre mão de tudo por outro alguém. Â
Quando o bebê nasceu, fazendo do rapaz um homem e um pai, ele já amava sua companheira por completo, embora nunca tenha se apaixonado de fato. Amava mais porque a filha se parecia com ela, mesmos olhos azuis, mesmo cabelo clarinho. Â
O casal abandonou seus nomes de origem, queriam se distanciar de sua gente e perder seus costumes e crenças. Adotaram nomes do mundo comum. Antônio e Alma, bons nomes. Nomes dignos como eles.Â
Dois anos depois a mãe que escolhera se chamar Alma morria. O pai nunca tinha dito como. A filha não se lembrava de nada sobre a mãe, o que sabia tinha concluÃdo dos passeios que dera na cabeça do pai e das histórias que o colar em forma de pomba que a mãe usava sempre e que há muito não deixava o pescoço da filha contava.Â
O pai a criou sozinho, sempre falando de tudo o que perdera. Tornou-se um pouco recluso e amargo depois da morte da esposa. Vivia pela criança que tinha, pela que havia perdido e pelo trabalho, sem tempo para nada além disso.Â
Quando ela percebeu que não seria suficiente, tinha entendido que só uma coisa faria com que o velho estivesse completo novamente. Recuperar tudo o que havia perdido.Â
A começar por sua terra. Não parecia justo que alguém que cumpre exatamente com seu dever tivesse que ser expulso. Menos justo ainda que crianças fossem expulsas e tivessem que praticamente se matar se quisessem voltar. O pai lhe contava as histórias e por muito tempo não tinha entendido o porquê alguém que assim como ela nascera fora ou havia sido mandado embora quando criança ia querer voltar, depois escutou as histórias incrÃveis sobre sonhos realizados, desejos atendidos e entendeu.Â
Ela era o Moisés que todas aquelas crianças estavam esperando mesmo que ainda não soubessem.Â
Começou a usar o escritório que dividia com o pai para buscar por outros como ela, a princÃpio apenas para aprendizado e tinha aprendido muito.Â
Algumas das crianças que ela chamava de Pássaros manifestavam os dons reconhecidos em sua terra. Alguns tinham facilidade em curar, outros tinham visões, quase nenhum tinha sensações ou era um caçador, mesmo que fosse em traços e absolutamente nenhum dos que encontrara era um porteiro. Ninguém poderia tomar o lugar do herdeiro a esse respeito.Â
Descobriu coisas que o pai, praticamente iletrado, não poderia dizer.Â
As crianças nascidas na terra dos pais tinham a longevidade daquele povo, os que nasciam fora, se de sangue puro como ela, também herdavam essa longevidade e espécie de imunidade contra o tempo, já os mestiços, não.Â
Ficou claro para ela. Os que mereciam sua atenção, seriam os que estariam vivos para desfrutar de seu reinado e lutar com ela por essa nova era. Os que poderiam atravessar a barreira de volta para casa, os outros seriam bem-vindos, teriam sua proteção e ajuda se precisassem, mas se não soubessem quem eram, ela não contaria, apenas garantiria que tivessem uma vida com dignidade.Â
O pai tinha ficado enlouquecido quando descobriu, mas a doença já tinha roubado sua capacidade de entender, estava certa de que as palavras duras que disse tinham vindo do tumor e não do pai que conhecia. Era uma pena que o coração de toda aquela organização não colocasse seus pés de volta a terra que amava, mas a vida tinha que seguir e ela tinha certeza de que ele apreciaria o resultado, fosse onde estivesse.Â
Seus pensamentos foram interrompidos pela batida na porta. Se Dario tinha deixado passar, só podia ser a notÃcia que esperava.Â
O perfume de folhas verdes e hortelã que a envolveu não deixava dúvidas de quem era.Â
Seu melhor homem e braço direito. Ela se virou para encará-lo, sorriu e estendeu a mão para recebê-lo.Â