Quando chegaram em casa, cansados e tristes e novamente com mais perguntas do que respostas, receberam a notÃcia. Â
Diego tinha ido identificar o corpo, a polÃcia tinha dito que se quisessem poderiam sepultá-la. Dani também tinha ligado. Chegaria em algumas horas. Diego tinha tomado a liberdade de marcar o funeral para a manhã seguinte.Â
Tinha prometido conversar com a nora, mas não tinha o mÃnimo de vontade de falar com ninguém. Estava se tornando um verdadeiro quebrador de promessas e não gostava de pensar em si mesmo desta forma.Â
Reuniu o pouco de coragem e paciência que podia encontrar em si, tentou se armar de toda delicadeza e boa vontade que pudesse ter tido algum dia. Não tinha sido um dia fácil para nenhum deles e esperava que Clara estivesse relutante e até descrente.Â
Em vez disso ela pareceu acreditar em tudo o que ele contou e mostrou a ela. Foi muito mais do que contou a seus meninos por encontrar a porta aberta.Â
Clara disse que não se surpreendia, que a avó sempre dizia que pessoas como Alexandre existiam, gente capaz de fazer coisas que as pessoas comuns não podiam fazer, que não envelhecia e uma porção de outras coisas. Muita gente achava que a vovó não sabia o que falava, Clara não. Ela achava que a avó era a mulher mais sabia que conhecia. Â
A avó de Clara chamava a gente de Alexandre de gente da névoa, Clara não sabia de onde ela tinha tirado aquele nome, nem sabia que de certa forma estava certa. Talvez Clara tivesse um pouco do sangue deles. Se assim fosse, a Senhora é que gostaria de saber. Ela ainda não lhe perdoara o pecado de ter construÃdo uma famÃlia fora de Al Dahim, com crianças que tinham pouca possibilidade de continuar sua linhagem e de gerarem um novo herdeiro com as combinações certas de dons. Era lembrado disso toda vez que ia para casa. Do dever que tinha a cumprir. Deus era testemunha que estava tentando, mas a vida também não colaborava!Â
Aquela foi provavelmente a manhã mais triste que Alexandre já tinha visto.Â
Diego organizou tudo que tinha relação com o funeral de Lydia, deixando para o pai a função de buscar Dani no aeroporto. De lá iriam diretamente ao cemitério. Diego teve o cuidado de se manter em contato com Dani, de perguntar o que ela preferia. Acabou decidindo pelo simples e tradicional.Â
A noite havia sido longa demais. Seus pensamentos adquiriram o aspecto de espiral, rodando e rodando e voltando sempre ao mesmo ponto. Se não se sentisse já bastante debilitado tentaria chamar por Lydia novamente, apenas para conversar, pedir emprestado a inteligência dela apenas mais uma vez. Não podia e mesmo se pudesse, não devia. Ela tinha que descansar e seguir em frente. Ele tinha que encontrar o fim do espiral que o cercara e quando conseguisse também deveria seguir seu próprio caminho.Â
Antes do céu começar a clarear, Alexandre começou a se preparar para encontrar a afilhada. Banho e curativo na ferida teimosa. Outro curativo menos doloroso nos pontos do braço.Â
Passou pelos agasalhos de moletom e pelas calças jeans pendurados no armário, esperando que as roupas que procurava ainda existissem. Sua preferência há muitos anos eram roupas confortáveis, mas não encontraria a afilhada num momento tão difÃcil e muito menos iria ao funeral de sua melhor amiga vestido como quem vai a feira. A ocasião merecia algum decoro.Â
Encontrou a antiga camisa preta de botões e mangas compridas. Estava um pouco larga, não tinha reparado o quanto havia perdido peso nos últimos dias. O estado febril que agora era constante deixava seu estomago enjoado e andava com pouco tempo para cuidar da própria saúde.Â
Uma calça de sarja também preta. Não usaria uma gravata, isso faria Lydia rir dele e perguntar se ia ao fórum. Não tinha uma gravata desde o próprio casamento. Completou o que achava que seria a aparência solene com uma blusa de lã azul, disfarçando o quanto a camisa antes bem ajustada agora sobrava no corpo.Â
Encontrou Bento sentado na cozinha. Um copo de café frio na mão, banhado apenas pela luz que entrava da rua. Pelo que parecia tinha passado algumas horas ali. Parecia desconfortável.Â
Alexandre não tivera tempo de conversar com o filho mais jovem desde o dia anterior a morte de Lydia. Tinha imaginado que o garoto já estava se reabilitando e não lhe deu qualquer atenção nos últimos dias se esquecendo de que o filho ainda passava por momentos bem difÃceis. Droga! Aquela semana estava recheada de momentos difÃceis, onde olhava via momentos difÃceis. Momentos difÃceis para todo mundo por conta da casa!Â
Acendeu a luz e viu que o rosto do filho se contraiu. Não precisava ser um caçador para saber que a cabeça doÃa e a luz incomodava, isso nem era surpresa dada a situação do filho. Enxaquecas eram não só possÃveis como também eram previstas, se acontecia com quem deixa a cafeÃna ou o açúcar, imagina com quem deixa coisas mais pesadas. Colocou água para ferver e pó no filtro, depois tornou a apagar a luz. Ninguém precisava sofrer por tão pouco.Â
Tomou o copo frio do filho e o colocou na pia e depois se sentou diante do garoto.Â
Bento olhou como se não entendesse do que o pai estava falando. Encarar alguém na semiescuridão da madrugada é algo bastante peculiar.Â
—Você está aà a noite toda?Â
—Eu me deitei um pouco, daà não consegui dormir...Â
Paciência nunca havia sido uma de suas virtudes. O que tinha que ser dito podia ser dito de uma vez. Era claro que o filho queria conversar e não estava nos melhores dias para enrolações.Â
—Sei lá, só acordei...Â
—Bento, fala logo. Eu posso ver se você preferir, mas honestamente não quero. Prefiro que você fale, tá bem?Â
Bento pensou um pouco. Desviando o olhar do pai para a chama azul que brilhava no fogão.Â
—Fecha os olhos um pouco, tenho que acender a luz.Â
Passou o café e tirou uma xicara para si e outra para o filho caçula antes de fechar a garrafa. Colocou a vermelha diante de Bento e a azul diante do lugar que ocupava, tornando a apagar a luz em seguida e mandando que o filho tornasse a abrir os olhos.Â
—E então? Fala ou eu vejo?Â
—Eu não queria ir ao enterro.Â
—Você não sai de casa a dias, não ia ser bom ver a rua?Â
—Não para ir ao cemitério ver a tia acabar.Â
Alexandre respirou fundo e desviou o olhar para o fundo da caneca, mesmo que não pudesse ver direito os olhos do filho, não queria que visse que o sentimento era mútuo.Â
—Também não queria ir, mas sua tia merece e não quero deixar a Dani passar por isso sozinha. Se fosse eu a Lydia estaria lá por vocês...Â
—Eu sei. Tudo bem, eu vou então...Â
—Calma, garoto! Não quer mesmo ir?Â
Bento apenas sacudiu a cabeça de um lado a outro e Alexandre ouviu tudo que Bento não conseguia dizer. Não queria cruzar o batente da porta porque tinha medo de não poder voltar. Sentia que estava seguro ali, mas o que tinham feito com a tia o assustava. Não queria que Dani o visse como estava agora, quando ela tinha ido ele ainda estava mais ou menos saudável. Não queria ir porque sentia que as pessoas esperavam que o próximo funeral da famÃlia seria o dele e se sentia culpado pela tia mesmo sem saber por quê.Â
—Ninguém vai ficar aqui com você, vai estar sozinho. Posso confiar em você?Â
—Se o senhor quiser, pode até me trancar no quarto!Â
—Sua palavra já me basta. Não preciso trancar ninguém. Você vai ficar bem aqui sozinho? Â
—Minha palavra... eu não vou fazer nada que decepcione o senhor. Vou ficar aqui quietinho. Vendo teve ou dormindo...Â
Alexandre encarou o filho, Bento não mentia e não era justo fazer com que passasse por uma coisa que ele já havia dito que era desconfortável para ele.Â
—Tudo bem... fica então, diz para eles que eu deixei. Tenho que ir agora. Ver se arrumo um taxi ou vou de ônibus mesmo...ainda não decidi. Não esquece que todo mundo aqui te ama, entendeu?Â
Não sabia por que tinha dito aquilo, apenas tinha tido vontade e deixou que saÃsse.Â
Desceu a rua em meio aos trabalhadores que começavam a movimentação matinal em busca dos primeiros transportes para seus trabalhos, dando continuidade a suas vidas.Â