Da cobertura do prédio elegante de espelhos que ficava em um dos endereços considerados mais imponentes da cidade, ela olhava pela vidraça que tomava toda uma parede e tinha consciência de que tinha um sorriso bobo no rosto. Sua vontade, depois de tanto tempo de espera, era tirar os sapatos caros, rasgar a costura da saia bem ajustada e dançar sozinha girando de pé sobre o tapete.Â
Tinha recebido a ligação mais importante de sua vida, ou era essa a sensação que tinha. Uma vida muito longa...milhares de ligações...não podia realmente afirmar.Â
Uma sensação de realização tomou conta dela, quase esquecendo da reunião marcada para dali a pouco. Comprar a casinha no bairro distante, colocar um dos seus morando no endereço pedindo que em troca apenas vivesse sua vida normalmente e em suas horas vagas assistisse ao que as câmeras de vigilância instaladas gravassem, ligando se algo interessante acontecesse. Â
O homem da casinha tinha vivido, formado sua famÃlia, envelhecido com a expectativa de cumprir a única missão que a jovem loira lhe dera. Recebeu todo suporte que precisava ao longo da vida, tinha tido um bom emprego ao qual se dedicava bastante e agora, aposentado, tinha criado uma certa obsessão em vigiar os monitores de segurança. Â
Ela o tinha visitado poucas semanas antes, tinham dito que o pobre homem caiu doente e foi ver o que podia fazer por ele. Ficou surpresa ao ver que havia mudado seu leito de convalescente para o quarto dos monitores, agora que tinha tempo não queria deixar passar nada. Tentou explicar que não era necessário, que se olhasse apenas as gravações já seria o suficiente, mas ele insistia então deixou que continuasse. Era bom saber que sempre podia contar com os seus, pessoas maravilhosas, ao menos em sua maioria.Â
E agora a ligação tinha acontecido. Â
Estava tão feliz que até pensava em desmarcar a reunião que tinha para dali a pouco, não queria que sua alegria afetasse a gravidade com que devia tratar o assunto.Â
Quase como se soubesse de sua disposição, Igor bateu na porta. Não tinha pedido para a secretária anunciá-lo, não precisava. Ela saberia quem era de qualquer forma, mas só poucas pessoas tomariam a liberdade. Igor podia, ela lhe dera. Além disso, havia encarregado o subordinado de uma tarefa importante naquela manhã antes de saber que receberia a ligação.Â
Sem tirar os olhos da cidade que corria lá embaixo mandou que Igor entrasse sem precisar dizer uma palavra.Â
O homem com uma cicatriz na sobrancelha esquerda se aproximou da janela, deu um beijo no rosto da moça, deixando escapar o pensamento de que o perfume novo era bastante sexy, arrancando dela uma careta brava fingida. Se conheciam pelo que seria toda uma vida, eram próximos suficientes para esse tipo de brincadeira.Â
Foi a vez de Igor fazer uma cara fingida de indignação.Â
—Deixei lá fora, Bruno está tomando conta dele.Â
—Ai, não! Se ele decidir agir por conta...Â
—Relaxa! Bruninho sabe por que ele está aqui.Â
—Pelo tanto que me encheu no caminho, imagino que sim. Eu não falei nada.Â
—Ele te deu trabalho?Â
—Nossa! Você tinha que ver o buraco onde esse verme tinha se metido... Lugarzinho horroroso, nojento mesmo! Já vi lugar pobre, nem é esse o ponto... Achei ele numa pensão perto de uma rodoviária de uma cidade próxima, tudo sujo... Preciso de um banho!Â
Igor era o tipo de homem que se cuida. Tinha aprendido isso com Diana quando ela o encontrou. Você se veste como quer ser visto. Ele levava o ensinamento ao pé da letra até então.Â
Ele tirou as luvas de couro que ainda usava apesar de não estar tão frio. Mexeu no bolso da jaqueta tirando o maço de cigarros num gesto automático. Depois que acendeu, sentiu os dedos finos da mão pequena com unhas esmaltadas de uma cor rosada que ele chamaria de bege tomar o cigarro de seus lábios.Â
—Tudo bem, já entendi! Não faço mais isso aqui dentro. Vai resolver logo a coisa com o verme ou vai deixar sofrendo lá?Â
Ela pensou um pouco, observando o papel queimando lentamente antes de arremessá-lo pela janela.Â
—Quer ficar enquanto converso com ele? Vai ser rapidinho...Â
Igor coçou a cabeça e fez uma careta verdadeira.Â
—Com todo respeito, princesa. Não quero! Eu o trouxe, o resto não quero nem saber...Â
—Então espera um pouco na sala de descanso, leva o Bru para almoçar se quiser, depois quero falar com vocês. Tenho coisas boas para contar e um monte lanos, quero vocês comigo hoje!Â
—E como é que eu levo o desgraçado de volta?Â
—Outra pessoa cuida disso, você tem coisas maiores para fazer.Â
Igor saiu sem dizer mais nada. Depois que conversassem, daria o resto do dia de folga tanto para ele quanto para Bruno. Eles mereciam e precisava dos dois descansados.Â
Pouco depois um homem de pele amarelada e cabelos claros entrou na sala ampla e mobiliada com móveis modernos. Era engraçado vê-lo tremer de corpo inteiro e andar com passos tÃmidos. Só os dois estavam na sala e ela era até menor e de aparência mais frágil que o motivo dele estar ali, por que temia agora?Â
Ela serviu uma taça de conhaque puro e indicou para que se sentasse no sofá cinza claro, sentando-se ao lado dele, o corpo inclinado na direção ao homem, joelhos apontando em para ele. Mais interessada e amigável impossÃvel.Â
—Oi, Denis. Como você está?Â
Não devia ser o que ele esperava, embora certamente esperasse algo.Â
—Que bom. E a Laura, como está?Â
O sorriso que começou a se formar derreteu na hora. Os olhos se encheram de lágrimas.Â
—Ela já saiu do hospital? Sabe onde ela está morando ou perdeu o contato?Â
Todos conheciam as regras que na verdade se reduzia a uma única. Um pássaro jamais fere o outro, não importava o motivo, não importava seus porquês! Seria diferente se ele estivesse se defendendo e não era esse o caso.Â
—Se sangrou em outro pássaro, sangra em você. Esqueceu?Â
O homem a sua frente balbuciou alguma coisa entre uma súplica e uma justificativa, ela não se deu ao trabalho de tentar entender.Â
—Toma um pouco do seu conhaque, vai ajudar.Â
O homem obedeceu, a mão tremendo tanto que o lÃquido âmbar se derramou sobre a mesa e sobre a camisa que usava.Â
Uma faca com lâmina decorada com arabescos e cabo cravejado de pedrinhas brilhantes surgiu de uma gaveta da mesa de centro e foi colocado sobre o tampo. A mulher se levantou, jogando o cabelo dourado para trás delicadamente com uma das mãos. Procurou algo no armário de bebidas e voltou com um pano de prato felpudo e branco.Â
—Vamos tentar não fazer tanta sujeira, as meninas da limpeza não merecem o trabalho extra. E por favor toma cuidado com o tapete, eu gosto dele.Â
Ele ajeitou o pano sobre a mesa, derrubando com as mãos tremulas antes de conseguir deixá-lo da maneira que achava decente. Encarou a mulher a seu lado, esperando.Â
—O que? Não! Eu não vou fazer isso, você quem vai! Não fui eu quem a chutou até as costelas quebrarem e a fez perder o bebê. Denis, você conhece as regras, o que está esperando?Â
O homem apanhou a faca bem amolada de sobre a mesa e tentou firmar a mão sob o olhar sem expressão da jovem. Apoiando sobre a junta da segunda falange do mindinho, olhando para a moça procurando aprovação.Â
—Sabia que você bateu tão forte que o rim esquerdo dela ficou dilacerado e não deu para salvar? E o olho que você socou agora só enxerga trinta por cento do que deveria? Foram dias bem complicados para a Laura. Fora a cabeça dela que ficou um horror, talvez ela nunca mais seja a mesma, entende?Â
A faca saltou para o dedo anelar e depois para o dedo do meio, olhando sempre, procurando algum sinal de que bastava.Â
—Essa é sua mão dominante? Achava que você era destro...Â
Ele entendeu, trocou a faca de mão, colocou a mão direita sobre a mesa com os dedos bem afastados. A respiração agora era pesada como a de um asmático que fosse obrigado a correr em meio a uma crise. Três dedos marcados, se fixou nos olhos azuis da moça, reconhecendo que agora sim era suficiente. Â
Suportou bem enquanto foi o mindinho. Por usar a mão menos habilidosa precisou fazer um de cada vez, quando chegou ao dedo do meio, deixando as duas falanges sobre o pano, os gemidos começaram e ela achou que teria que ajudá-lo, coisa que ela não queria fazer. Ele tinha procurado aquela situação, que fosse homem e aguentasse.Â
Demorou mais do que ela esperava, Denis perdeu mais sangue do que devia por causa da sua própria lentidão, enfim ela tinha três pedaços de dedos sobre o pano de prato agora vermelho escuro. Recolheu em uma toalha absorvente de papel e jogou no vaso sanitário dando descarga em seguida, só para que o visitante entendesse que não devia nem sonhar com o reimplante.Â
Em seguida, pegou um pano de prato limpo e ajudou o homem machucado a improvisar um curativo apertado que diminuiria o sangramento.Â
O homem, suado como se tivesse terminado um dia de trabalho descarregando sacas de cimento em um deposito, olhou esperançoso para ela. Â
Quando aquele tipo de coisa acontecia, graças a Deus não era algo corriqueiro, a dÃvida estava paga e a pessoa podia ir embora e sua vida seguiria sem outras cobranças em relação à quela falta, ninguém nunca mais mencionaria o assunto. Mas aquele caso era diferente e merecia ser tratado a sua própria maneira.Â
—Denis, isso é suficiente pela Laura. Mas temos o bebê. Em casa isso seria motivo para pena de morte. Nunca vamos saber que dons maravilhosos essa criança teria, das coisas grandiosas que faria e só porque você decidiu beber mais que devia e surrar a sua esposa...Se eu te deixar ir agora, como se nada tivesse acontecido, livre, você acha que vai ser justo? Â
Ela riu, não pode evitar.Â
—Vá embora, procure um hospital para cuidar disso e esquece a gente. Você não é mais um de nós, não te devemos nada e não te protegemos. Adeus, Denis, boa sorte com suas coisas e não esqueça de que está por conta agora. Ah, vou te dar uns trinta minutos de proteção porque a morte do bebê deixou muita gente aqui irritada, depois você se vira, tudo bem?Â
O homem foi o mais rápido possÃvel, mas ela teve que se levantar para ajudá-lo a abrir a porta que nem estava trancada, simplesmente não pode girar a maçaneta com a mão esquerda. Assistiu enquanto pegava o elevador privativo e depois ligou para a secretária para que avisasse a todos sobre a anistia temporária. Arrumou e limpou o melhor que pode, mandou chamar a limpeza e foi ver Igor e Bruno que já esperavam há muito mais tempo do que ela gostaria.Â