No fim da tarde, Alexandre e Diego chegaram. Â
Haviam discutido no caminho. Diego não entendia o que o pai havia prometido fazer nem porque aceitava as condições do falsificador. Alexandre se ofendia com a desconfiança do filho. Â
O assunto tinha chegado ao fim com a imposição de Alexandre sobre o filho. Diego era um homem, poderia questioná-lo, apresentar sua opinião e até discordar de seus métodos, mesmo não entendendo do que o pai era capaz nem como funcionava seu talento, mas Alexandre jamais aceitaria que o julgassem com base em informações pela metade e muito menos que esse julgamento fosse feito tendo em vista um moralismo que não se sustentava. Â
Se você vive tempo suficiente começa a perceber que existem muitas coisas realmente erradas, se o que tinha prometido fosse colocar alguém em risco nunca aceitaria. Se prejudicasse de fato a moça colocaria o falsário em seu lugar, mas tinha se comprometido justamente porque uma vez dentro da casa de lembranças poderia ajudá-la e não conseguiria fazer o filho entender, então não se falava mais nisso.Â
Entrou em casa pedindo que qualquer um deles ligasse o rádio. As vozes de outros cresciam e a sua própria se reduzia, não conseguia pensar direito com todo aquele barulho. Quase não conversou com os meninos.Â
Além do barulho, seu coração parecia apertado, como se tivessem sentado sobre seu peito e o peso tornasse difÃcil respirar.Â
Não conseguia parar de pensar em Lydia e se não tinha ido até a casa dela foi para não ter de pedir favor ao filho depois da discussão. Â
Pediu o celular de Samuel e ficou tentando ligar repetidamente por cerca de meia hora, sempre deixando tocar até que caÃsse na caixa postal.Â
Os meninos haviam dito que Lydia era bem ativa. Sempre ocupada com coisas da creche da igreja, aulas de reforço para crianças, bailes e passeios com as amigas. Até Samuel que era quem mais via a tia e fazia questão de passar na casa dela quase toda semana para ver como estava disse que Lydia sempre inventava uma novidade para preencher suas horas vagas de professora aposentada e nunca parava quieta, por isso tentou esquecer e deixar para lá.Â
Apanhou sua caneca no gancho e encheu até a boca do café que sobrava na garrafa, estava morno e com gosto de queimado, mas serviria para ajudá-lo a ficar acordado por algum tempo a mais e fazer o serviço encomendado, só esperava ser rápido porque cada vez se sentia mais irritado e confuso.Â
Preparou uma refeição para seus rapazes como fazia quando eram meninos e se sentiu em famÃlia por algum tempo. Como tinha sentido falta desses momentos, mesmo quando estava aborrecido com algo que os pestinhas faziam, não trocaria estar com eles por nada no mundo.Â
Bem depois que Diego e Samu foram embora e depois que Bento foi dormir. Alexandre começou a se preparar para executar o trabalho a que tinha se comprometido. Fechou as cortinas da sala, afastou a mesa de centro pesada, sentindo a ferida se esgarçar e retirou o tapete pois não tinha a menor intenção de voltar a si e perceber que estava queimando com a casa.Â
Esperava que fosse rápido. Não tinha grande curiosidade pela vida da moça cuja foto estava diante da vela acesa em seu pote com água por isso não tinha muito em que mexer na sua casa de lembranças. Â
Antigamente tinha bastante interesse por entender o que levava as pessoas ao momento em que estavam agora. Era novo no mundo comum e tudo impressionava, depois entendeu que nem todo mundo merece a atenção desperdiçada. Â
A maioria das pessoas é rasa e egoÃsta. Não tinha mais a paixão pelas pessoas, mas algumas realmente valiam o tempo e apesar de ter ganhado bastante dinheiro explorando o que a mãe chamava de seu talento sombrio, não era algo de que gostava hoje em dia. Só servia para arrumar preocupação e causar desconforto, fora as dores de cabeça e confusão mental quando saia do controle, quando estava doente ou cansado.Â
Depois do serviço feito, deitou-se no sofá e tentou dormir um pouco. Já era hora de conversar com Bento, arrumar o quarto dele já que era claro que ficaria com o pai na casinha por algum tempo, e pegar o seu de volta. Era um pouco limitador ter que entrar com cuidado para não acordar o filho se precisasse de algo. Queria seu quarto de volta, com tudo o que precisava e sua cama, precisava de algum sono de qualidade.Â
Ficou deitado de costas com um dos joelhos dobrados e o braço esquerdo cobrindo os olhos, não pode dormir apesar do cansaço que sentia.Â
Começou a pensar no pai que nunca tinha conhecido exceto por imagens que viu das lembranças de sua mãe. Fosse pelos pensamentos que não queriam ir embora ou pelo café horroroso que havia tomado, mas o sono não veio. Sentiu o sol nascer ainda pensando em coisas que para ele não deviam ter tanta importância e mesmo assim tinham.Â
A quanto tempo não pensava nisso?Â
O pouco que sabia do homem que ajudou a colocá-lo no mundo vinha de lembranças que colheu por aÃ. O tio costumava chamá-lo pelo nome do pai. Um homem que nunca teve muito juÃzo pelo que diziam e depois de um acidente que havia sofrido na juventude acabou ficando um pouco atrapalhado. Um artesão que fazia roupas incrÃveis, não conseguia se lembrar de datas e fatos, falava aos mais jovens como iguais e não conseguia entender que seu irmão mais novo tinha sido banido e nunca mais voltaria.Â
Quando tinha descoberto que assim como o pai exilado tinha os dons de um caçador, começou a reunir informações. Â
Não adiantava perguntar, já tinha tentado. As poucas vezes que ficava com a mãe era repelido quando tocava no assunto, quase como se fosse portador de alguma doença contagiosa ou provocasse ondas de enjoo com sua presença.Â
Também tinha perguntado a seu professor. Eros costumava responder qualquer pergunta sobre qualquer assunto e quando não sabia dizia que procuraria a resposta e conversariam depois. Era o protetor da Senhora desde que ela havia sido escolhida e se tinha sido designado para ensiná-lo é porque esperavam que tivesse a melhor educação que o futuro Senhor pudesse ter e para isso não havia ninguém melhor.Â
Então, quando perguntou a respeito do pai enquanto se preparavam para dormir, tinha pouco mais de sete anos, ficou bastante surpreso quando a resposta recebida veio na forma de um tapa no rosto e da exigência de nunca mais ouvir falar do assunto.Â
Percebeu que dali não sairia nada, ao menos não do jeito tradicional.Â
Não foi difÃcil espiar dentro das lembranças de Eros. Até pensou que havia alguma barreira quando chegou diante da casa da mente e se viu na casa onde morava desde antes de deixar as fraldas. Só depois se deu conta de que seu professor nunca tinha vivido em outro lugar, logo, não podia ser diferente.Â
Pelo que viu, Eros e o pai haviam sido amigos enquanto cresciam. Enquanto um foi destinado ao corpo de protetores e seria preparado para cuidar da herdeira e futura Senhora, o outro era parte do povo e como não tinha nenhum dom para mostrar e nem quem intercedesse por ele, poderia aprender qualquer ofÃcio que quisesse. Passaram a se falar apenas durante as Festas.Â
Eikam, era neto da então Senhora, cresceu com um certo ressentimento por isso, em dificuldades e com um irmão praticamente inválido de quem tinha que cuidar.Â
A Senhora Aurea tinha sido abençoada com gêmeas, ambas não demonstraram qualquer dom e por isso foram criadas com uma tia no campo e quando cresceram uma se casou com um protetor e a menina que tiveram demonstrou desde cedo o dom dos porteiros que a tornava uma herdeira da casa de sua avó, a outra filha tinha se unido a um estrangeiro, um desesperado cujo único sonho era ter uma famÃlia. Tiveram dois filhos e diziam que tinham sido felizes. Â
O desesperado acabou vivendo entre eles e se afogou no lago ao tentar resgatar outro desesperado que ainda estava além da névoa. A esposa não conseguiu lidar com a perda do marido e duas noites depois mergulhava por vontade própria com pedras amarradas na cintura do vestido e foi encontrada na manhã seguinte. O lago foi purificado e os dois meninos foram entregues aos vizinhos para que cuidassem deles até que pudessem se manter sozinhos.Â
Eikam tinham pouco mais de quatro anos, segundo lembravam.Â
Quando a futura Senhora foi apresentada ao povo, pronta para o que chamavam de colheita, anunciaram que qualquer um que se sentisse apto poderia tentar, aquele que conseguisse vencer a prova, se fosse do povo poderia alcançar uma casta se assim quisesse e se estrangeiro, teria uma dadiva alcançada.Â
Essas ocasiões eram raras, só aconteciam quando a linha de sucessão findava. Se algo acontecesse com a Senhora e com sua única herdeira Al Dahin estaria perdida, isolada do resto do mundo e fadada ao esquecimento. Era quase o mesmo caso que viviam agora.Â
Os que queriam a honra de gerar um herdeiro tinham que assumir o risco, depois dos portões abertos, eram levados além da névoa. O primeiro que voltasse seria o escolhido.Â
O pai venceu a barbárie, elevaria o nome de sua famÃlia, se tornaria um protetor ou um curandeiro, poderia estudar e começaria uma nova vida assim que a Festa fosse encerrada.Â
Então um dos estrangeiros ficou inconformado. Precisava daquela vitória, contava com ela, quase havia conseguido e como o garoto tinha conseguido uma vantagem de minutos diante dele não achava que aquilo era direito. Decidiu que teria o que precisava de um jeito ou de outro. Não tinha medo de usar a força se precisasse.Â
A futura Senhora foi seu alvo escolhido. A esperança de um povo, não deixariam que morresse, prefeririam atender suas exigências.Â
Quando ia em direção da menina de olhos azuis imensos o rapaz magrelo correu em sua direção, o estrangeiro não lhe deu atenção, seu objetivo era a mocinha. Uma pedra pesada acertou sua nuca, tombo ao chão meio tonto e foi atingido novamente e novamente até que não sobrasse muita cabeça presa ao corpo.Â
Eikam foi detido pelos protetores. Pela lei do povo antigo, todo estrangeiro seria protegido de qualquer mal enquanto durasse a festa, não importasse o que fizesse. O sangue derramado de um estrangeiro dentro da barreira deveria ser punido com a morte, contudo o estrangeiro em questão ameaçava a existência do povo e a Senhora Aurea não sabia o que fazer, uma situação assim nunca tinha acontecido antes.Â
O pai de Alexandre ficou preso por seis meses até que o conselho decidisse o que fazer com ele, se por um lado havia cometido um pecado mortal, por outro cumpria com o dever de cada um do povo de era proteger a Senhora e seus herdeiros.Â
Decidiram pelo banimento. Daquele momento em diante, seu nome seria esquecido, nunca mais poderia retornar a terra em que havia nascido e seria um estrangeiro para eles.Â
Ao ouvir a sentença viu que a futura senhora estava grávida e fez a única coisa que pensou para tentar reverter a situação. Já que seria um estrangeiro, exigia seu direito de sangue e a criança deveria ser entregue a ele depois de nascer.Â
 Eros achava que Eikam esperava não ser enviado para o exilio, pois o conselho não poderia renunciar a seu herdeiro. Acabou não dando certo se fosse mesmo essa a intenção. Â
Por isso tinha pedido para encontrá-lo quando chegou a idade certa, só que nunca tinha encontrado. Não que tivesse procurado muito, um ano foi o que gastou nessa empreitada, depois se esqueceu e seguiu sua vida.Â
O sol ardia lá fora quando se convenceu de que não conseguiria dormir e se levantou, preparando café e se sentando na varanda como havia feito no dia anterior, esperando os filhos novamente. A bagunça que sua cabeça tinha virado com tantos pensamentos, sentimentos e vozes alheias já chegava a um estado desanimador. Achava que daqui a pouco começaria a perder a sanidade se isso continuasse.Â
Um sopro de pensamento passou por sua mente e quase não foi percebido por causa dos outros milhares que o sufocavam. Compreendia pessoas que se drogavam para deixar o mundo menos barulhento, estava acostumado e sabia dominar seu lado caçador e já estava pensando em tomar um porre para fazer calar.Â