Passou alguns minutos observando o filho adormecido, depois começou a se preparar para a tarefa que tinha.Â
 Primeiro, cobrir o espelho.  Pensou que deveria levar aquele trambolho para o quartinho de bagunça nos fundos e deixá-lo lá esquecido, mesmo sabendo que não o faria.Â
Usou um cobertor pesado que encontrou no guarda-roupas, tinha um leve cheiro de amaciante que indicava que não tinha ficado guardado todo o tempo em que estivera fora. Assim que pudesse iria ver Lydia e tentar agradecer por tudo que aquela mulher maravilhosa fazia por ele e pelos filhos.Â
Depois, procurar a vela grande e pesada que poderia ficar acesa durante todo o mês. Alguém a transferira para uma das gavetas da escrivaninha que ficava ao lado da janela da sala. Parecia um lugar estranho para guardar uma vela, mas que bom que estava ali, longe das vistas.Â
Recuou o tapete ao pé da cama, colocou um prato para aparar a vela. Tirou a blusa ainda manchada de sangue e a camiseta estragada. Sentou-se com as pernas cruzadas, tentando ignorar as pontadas de dor no ferimento repuxado e acendeu a vela. Â
Olhou a chama tremulante por alguns minutos controlando a respiração. Tentando livrar a mente de qualquer outra coisa que não fosse seu objetivo.Â
Não precisava de nada disso na verdade. Era um ritual que inventou nas primeiras vezes que assumiu o ofÃcio de caçador, ajudava a se concentrar e tornava a viagem mais rápida, mantendo o que não lhe pertencia do lado de fora, mas podia muito bem ser feito sem toda a cerimônia. Ele gostava de rituais.Â
Projetou o queixo para frente e fechou os olhos, deixando que o silêncio o engolisse e se guiando pela respiração profunda do seu menino que dormia.Â
Quando tornou a abrir os olhos estava em frente a própria casa. Não se surpreendeu muito. Na maioria das vezes era a casa da infância, à s vezes outro prédio importante, raramente um lugar aberto. Pessoas gostam de seus lugares seguros para guardar suas coisas mais importantes.Â
As casas ao redor eram incompletas, o portãozinho e o muro baixo do quintal da frente como tinham sido trinta anos antes. Como ainda era na lembrança do filho.Â
 Não se deu ao trabalho de abrir o portão de meio corpo, passou por cima do muro baixo e entrou no quintal indo pelo caminho branco até a porta principal.Â
Parou um instante antes de entrar. Não era porque tinha motivos e pensava no bem do filho que não era uma invasão, se fosse para se arrepender mais tarde melhor parar agora que ainda não tinha visto nada demais.Â
 Não! Precisava fazer o que tinha vindo fazer. Seu garotinho precisava disso.Â
Com a mão esquerda diante do corpo, empurrou a porta que se abriu com um rangido.Â
Por dentro, a projeção da casa na mente do filho era muito parecida com o que era realmente. Alexandre sabia, pautado na experiência que tinha que se abrisse os livros velhos das prateleiras ou fuçasse nas gavetas seus conteúdos seriam diferentes dos originais, coisas que o filho guardou ao longo da vida.Â
Algumas pessoas guardam lembranças em forma de objetos, outras em forma de palavras e algumas em forma de imagem. Bento parecia ser do tipo caótico, usava os três tipos sem critério e tornava mais difÃcil encontrar o que se procura.Â
Alexandre estava decidido a não alterar nada que não fosse necessário. Não sabia exatamente o que estava procurando, quando encontrasse saberia.Â
Andou um pouco pelos corredores, começaria pela cozinha e voltaria em direção da entrada. o filho devia ter vergonha do vicio, não achava que as coisas relacionadas a isso fossem ficar na parte principal da casa, visÃvel a quem quisesse. Deveria estar mais escondida, mais bem guardada. Sua melhor aposta era a cozinha ou um dos quartos, talvez até esquecida no deposito sob um monte de coisas inúteis que Bento não conseguia jogar fora.Â
Quase todos os cômodos continham caixas de diferentes tamanhos. Bento gostava de guardar coisas em caixas e não gostava de identificá-las.Â
Os armários da cozinha estavam cheios de caixas de tamanhos e cores diferentes em vez de louça e panelas. Alexandre puxou uma cadeira e começou a remexer no conteúdo de cada caixa. O cheiro do bolo que a mãe fazia estava na mesma caixa que as fotos de festas natalinas e o gosto do café sempre muito forte e muito doce que o pai preparava de tarde quando chegava do serviço.Â
Em outra caixa o som de uma discussão mais recente com os irmãos se misturava com algo manchado e desagradável que Alexandre soube ser a repulsa pelo tal amigo que ele havia mencionado mais cedo.Â
Percebeu que as caixas prediziam o teor de seu conteúdo, coisas boas ficavam em caixas bonitas e bem conservadas, à s vezes até coloridas, lembranças desagradáveis eram metidas em caixas sujas e rasgadas. Isso facilitava um pouco a busca, mas não tanto quanto devia. O que procurava poderia ter sido reconhecido pela mente como algo bom. Se as sensações da primeira vez que alguém se droga fossem desagradáveis, ninguém arriscaria uma segunda.Â
Ao menos sabia que a caixa que procurava não estaria exposta e que estaria bastante gasta, muito usada ao longo de anos.Â
Terminou com a cozinha, passou ao corredor dos quartos. Três escolhas, o quarto de Diego, o quarto que Bento e Samu dividiam e seu próprio quarto. O mais logico era que as coisas importantes estivessem no quarto que Bento usou durante boa parte da vida na realidade fora da mente. Â
Era a parte mais bagunçada da projeção da casa. Com caixas e mais caixas espalhadas sobre a cama, saltando do guarda-roupa, curvando as prateleiras. Eram mais caixas dos que as que havia encontrado em toda a casa até agora.Â
Aulas de matemática do ensino fundamental guardadas com conversas com a mãe, lembranças do cachorrinho que tinham quando os meninos eram pequenos colocadas junto com a primeira namorada.Â
E uma caixa velha e amassada escondida sob a cama. A única que estava ali, todas as outras estavam à  vista. Só aquela ele tentava esconder.Â
A única fechada e remendada com fita adesiva.Â
Alexandre sorriu, tinha o pressentimento de que ali encontraria o que tinha ido buscar. Dentro só havia uma coisa. Nojenta, preta, pulsante e com um calor esquisito. A coisa emitia um barulho parecido com o de um gato no cio, coberta de espinhos e se movia dentro da caixa deixando atrás de si uma gosma fétida. A coisa rangia de fome e mesmo não vendo, sabia que a coisa tinha dentes afiados que morderiam dolorosamente se não conseguisse o que queria.Â
Tinha achado o que procurava!Â
Levou a caixa consigo de volta para a cozinha e ligou o gás, acendendo o forno em seguida. A coisa foi colocada com caixa e tudo dentro do forno e a porta foi fechada para que não pudesse escapar. Saltou da caixa e gritou alto enquanto uma fumaça pegajosa saia por espaços na lateral da porta do forno. Tentou tudo o que pode para fugir, mas quando a caixa queimou em chamas, percebeu que estava perdida e ainda mantinha o espÃrito de causar todo dano que pudesse antes de sucumbir. Â
Alexandre deixou que o monstrinho torrasse até não sobrar nada. Ficou assistindo enquanto a coisa inerte murchava e brilhava em brasa.Â
Já tinha feito coisa semelhante, era parte do trabalho. Sempre assistia queimarem, não sentia prazer ao fazê-lo, só uma missão cumprida. Dessa vez quase vibrou quando aquilo virou cinzas.Â
Agora só precisava arrumar as coisas, deixar tudo mais ou menos como tinha encontrado. Cuidar para que nada ficasse fora do lugar. Os próximos dias já seriam difÃceis para Bento, confusão mental não era algo de que precisava.Â
Enquanto dava um último giro verificando se as coisas estavam em ordem, percebeu na estante da sala uma caixa diferente das outras e guardada sozinha. Era semelhante a um baú feito de madeira, enfeitado com metais e trancado com cadeado e correntes, nem um pouco parecida com qualquer outra que tinha encontrado na casa.Â
Alexandre sabia o que era aquele baú, também tinha daqueles. Poderia abri-lo se quisesse, mas não havia necessidade. Já tinha encontrado o que procurava.Â
Deixou a casa pela mesma porta em que havia entrado. Saltou novamente sobre o muro baixo e que não servia de grande coisa quando se falava de proteção e parou diante da casa. Fechou os olhos e controlou a respiração, quando os abriu novamente estava sentado sobre o tapete em seu quarto diante de uma vela na qual se formava uma pequena poça de parafina que quase afogava a chama. O Sol já nascia lá fora.Â
Alexandre se levantou do tapete onde estava, deu uma olhada em Bento só para ter certeza de que respirava. Por enquanto dormia tranquilo, não sentia necessidade de ficar por ali pajeando o sono do filho. Quando acordasse seria outra coisa.Â
Quis andar um pouco pela casa, ver o que faltava, ver sua mesa, seus papeis. Será que ainda acharia as provas por corrigir na gaveta da escrivaninha? Â
Os livros velhos, alguns raros, outros insubstituÃveis e outros sem valor algum exceto para ele estavam espanados e ordenados, melhor do que deixara e desconfiava a quem deveria agradecer.Â
Quase como se atendesse a um chamado, quando retirou um dos livros da prateleira ouviu a maçaneta da porta da frente girar, girou novamente e na terceira vez o barulho veio acompanhado de uma voz feminina madura e um pouco rouca dizendo “Vai me deixar plantada aqui?â€Â Â
Alexandre riu. Apressou-se para abrir a porta antes que ela começasse a esmurrá-la, não queria que a velha amiga quebrasse alguns ossos.Â