Al Dahin é um lugar bastante estranho.Â
Os antigos diziam que os primeiros tinham chegado ali após a grande migração, quando alguns do povo antigo decidiram ficar para trás, por sua afinidade com o mundo comum. Â
A Senhora, a primeira entre todos que governariam o que sobrava do povo antigo, tinha decidido pela separação de sua terra, conviver com os homens comuns era algo natural para seu povo, o grande problema é que alguns homens comuns fariam qualquer coisa para conquistar os dons do povo antigo. Inclusive ferir ou se apoderar de pessoas capturadas sozinhas na mata. Tentando dominar pela força o que os membros do povo antigo fariam de bom grado se achassem que o homem comum merecia ou precisava.Â
Os mais velhos diziam que foi uma verdadeira carnificina até que a Senhora decidisse separar sua terra do mundo comum. Uma decisão difÃcil porque não haveria retorno, uma vez separada, ficaria fora por todo o eterno.Â
Foi uma decisão tomada pelo primeiro conselho e uma tarefa feita por todos os que podiam colaborar.Â
Um trabalho exaustivo de todo um povo em conjunto.Â
Os livros diziam que foi nessa época que as castas foram separadas.Â
Os que podiam lutar, tornaram-se protetores cuja principal missão de vida era cuidar para manter viva a Senhora e sua descendência.Â
 Os que podiam ver a frente de seu tempo se tornaram visionários e criaram previsões em conjunto que traçavam o destino do povo, claro que nem todas se cumpriram, no geral eles acertavam na maioria das vezes. Â
Os que conheciam sobre plantas e tinham aptidão para cuidar das pessoas se tornaram curandeiros, que junto com os protetores eram as únicas funções que poderiam ser aprendidas se alguém se dispusesse a ensinar. Â
Aqueles que conseguiam interpretar sonhos e profecias eram chamados de leitores e conquistaram grande conhecimento tendo acesso aos escritos trazidos de além-mar de antes da névoa se tornar espessa.Â
Existiam os que podiam abrir portas para qualquer lugar e trancar portas que não seriam abertas sem que fosse de sua vontade. A Senhora possuÃa esse dom e graças a isso a separação foi possÃvel e a barreira de proteção pode ser criada. Este era o dom mais valorizado, já que permitia que a vida prosseguisse como estavam acostumados e garantia a segurança daquele povo.Â
Aqueles que não faziam nenhuma dessas coisas, o povo, vivam para a manutenção dos lares. Trabalhavam para que todos tivessem alimento, abrigo e segurança nas coisas que precisariam para sobreviver, faziam muito e dividiam o fruto de seu trabalho proporcionalmente com aqueles que não tinham tempo para esses trabalhos pois precisam executar outros. São artesões, coletores, pescadores, lavradores, as engrenagens que mantinham a máquina de Al Dahin funcionando.Â
Também existia uma última casta, malvista e que gerava certa desconfiança.Â
Os caçadores eram capazes de ver dentro da mente de qualquer outra pessoa, diziam que alguns ainda podiam modificar coisas nas partes mais secretas do pensamento de outros. Ninguém gosta de ter medo de que alguém esteja vigiando seus pensamentos, esse é o único lugar onde todo homem deveria ser livre.Â
Diziam que o esposo da Senhora tinha esse dom. Ele sempre parecia estar escutando mais do que podia e sabendo mais do que devia. Apesar disso era um homem justo, digno e ninguém tinha uma palavra para dizer contra seu caráter, um perfeito cavalheiro se querem saber.Â
Isso tinha sido há muito tempo. O esforço coletivo elevara a porção de terra que escolheram como seu lar. A energia de milhares havia sido usada nessa empreitada, muitos não resistiram ao esforço e literalmente queimaram seu fogo interior para que os filhos e vizinhos tivessem a proteção necessária. Quando a terra se elevou, os corpos caÃram no chão, vazios e ali ficaram até que se transformasse em ossos e fossem cobertos por folhas mortas e argila e esquecidos.Â
Ao menos era isso que os livros que lia escondido na biblioteca diziam.Â
Alexandre pensava nessas coisas enquanto se preparava para ajudar o filho caçula. De vez enquanto olhando na direção do espelho imenso feito de uma enorme placa de obsidiana negra em sua moldura prateada que estava no canto do quarto. “Melhor cobrir essa coisa antes de começar!â€.Â
Quando ainda vivia com a mãe, levou algum tempo para perceber que esperavam muito mais dele do que de outras crianças. Tinha sido treinado como um protetor e como um curandeiro, não tinha nenhuma aptidão para o primeiro, mas aprendera alguma coisa. Era bom o suficiente no segundo, não era difÃcil se estudasse o suficiente os manuais certos, nunca chegaria aos pés de um curandeiro natural, mas conseguia se virar.Â
Tinha sido testado como visionário e leitor, também tivera facilidade nessas coisas. Praticamente aprendeu a abrir todo tipo de portas e barreiras antes de aprender a caminhar sozinho. Tinha sido a parte mais natural de sua preparação. Nunca houve uma fechadura ou tranca que não se abrisse a seu toque, nunca houve uma porta que ele fechasse que não permanecesse fechada até que ele mesmo a abrisse.Â
Então começou a ouvir. Gente gritando, gente sussurrando, não havia lugar para onde fosse em que encontrasse o silêncio. Tem gente que pensa tão alto! Ele ouvia tudo o tempo todo. Agora havia aprendido a controlar melhor. Existiam dias ruins e dias piores, conseguia ignorar a maior parte do tempo. Quando criança era muito pior.Â
Essa parte de quem era tinha feito o pai ser banido, por isso tinha decidido ir embora, suportou o quanto pode e achou que enlouqueceria antes de chegar à puberdade. Sua desculpa para a mãe era ir atrás do pai, conhecê-lo, tentar entender suas razões.Â
Mentiras! A mãe não sabia, ela não conseguia espiar atrás do véu da mente dele. Ela negou, é claro, não tinha nada que aquele homem pudesse oferecer ao jovem herdeiro que um dia carregaria seu povo em suas costas. Era assim que chamavam a vocação de quem assumia o tÃtulo de Senhor daquela terra.Â
Ele insistiu até que ela o ameaçasse, não toleraria ser desafiada.Â
No conselho seguinte ele se apresentou diante dos membros mais velhos de cada casta. Trazia consigo o código do estrangeiro que tinha roubado da biblioteca durante a noite, trancas não funcionavam com ele.Â
A parte que leu para o conselho dizia a respeito dos filhos de estrangeiros. Quando os portões se abriam e os estrangeiros vinham para a Festa, uma vez ao ano, se gerassem uma criança teriam sorte naquilo que botasse seu coração. As crianças nascidas destas relações poderiam ser enviadas ao pai se este assim solicitasse antes do fim da festa ou poderiam escolher em que mundo viveriam ao completar doze anos de idade, teriam um ano para ver o mundo além da névoa. Se escolhesse o mundo comum, encontraria passagem quando quisesse pelo caminho do desespero, se pudesse percorrê-lo e seria bem-vindo nas Festas. Era isso o que ele pedia, que a lei do estrangeiro também se aplicasse a ele, filho do exilado.Â
Houve uma grande discussão. Alguns argumentavam que a lei não se aplicava. O pai não era um estrangeiro, era um nativo exilado que não devia guardar qualquer ligação com o povo, incluindo aàseu filho, único herdeiro da casa da Senhora e com habilidades de porteiro, como poderiam deixar que aquele homem o influenciasse? Outros diziam que a lei era a mesma para todos, se queria tanto ir que fosse. Quando percebesse que o mundo comum era um lugar voraz, que fizesse o caminho do desespero e voltasse com seus próprios pés, como qualquer outro filho de estrangeiro poderia. Quanto a perder um porteiro com sangue antigo, confiavam na profecia que sempre haveria um porteiro para servir ao povo no trono de Al Dahim.Â
Percebeu que a maior parte deles tinha medo de sua segunda habilidade, que na verdade desejavam que ele se fosse, pois, sua presença poderia estar inibindo o nascimento de um herdeiro mais adequado. Esses pensamentos pareciam estar no primeiro plano da mente de muitos enquanto tomava a tribuna naquela assembleia. Ou era um desejo muito forte ou não faziam muita questão de ocultarem os pensamentos dele quanto a isso.Â
O conselho se reuniu a portas fechadas. Acabaram decidindo que poderia ir se quisesse desde que, como herdeiro, estivesse ciente de que se fosse necessário deveria voltar, Mesmo que fosse obrigado a isso, arrastado pelos protetores e mantido prisioneiro caso se recusasse a cumprir seu dever de governar.Â
Aceitou as condições decidido a sumir do mapa. Procuraria o pai, aprenderia com ele como viver no mundo comum e ficaria invisÃvel ao radar da mãe e do conselho.Â
Nunca alguém se enganou tanto sobre a realidade. Nunca encontrou o pai, não tinha certeza nem se ainda vivia ou se sabia de sua existência. Conseguiu ficar desapercebido com ajuda de pessoas que encontrou pelo caminho, ao menos até Diego nascer. Â
O filho mais velho nasceu com uma sÃndrome rara, morreria em pouco tempo se Alexandre não fizesse algo. Quando o médico mandou que ele e a mãe do garoto se despedissem e se conformassem ou se apegassem em Deus e pedissem por um milagre, Alexandre decidiu que era o bastante para tentar o caminho do desespero.Â
Quem chega a Al Dahim pelo caminho do desespero, se puder atravessar a névoa e não perder a esperança no meio do caminho, obtém aquilo de que precisa. O que ele precisava era de uma cura para o filho recém-nascido.Â
O filho não sabia, não tinha por que contar. Conseguiu atravessar a névoa e voltou para casa com o que precisava em um vidrinho azul que ainda guardava sem saber por qual motivo. Também voltou com um acordo com a Senhora Liana. A cura do filho estava condicionada à  sua volta para casa pelos portões principais a cada Festa. Ele estaria lá para ajudar a abrir os portões que permitiam a entrada de estrangeiros e estaria lá até o fim dos festejos para fechar os portões quando todos fossem embora. Isso o prepararia para exercer seu dever, o manteria na memória de seu povo e permitiria que o sangue fosse passado para a próxima geração, afinal, era dever dele trazer ao mundo alguém capaz de abrir os portões.Â
Sem ter como recusar, Alexandre aceitou. Diego ficou saudável a ponto de o médico acreditar que havia se enganado em seu diagnóstico. Depois de sua primeira viagem, encontrou o filho na casa da velha amiga. A mãe o deixara ali por algumas horas, já fazia mais de dez dias.Â
Sentiu-se como um lobo que acabou com a pata presa em uma armadilha de caça. Cada vez que voltava a terra natal temia não poder sair, que exigissem que ficasse e nunca voltasse para sua vida verdadeira.Â
E não tinha sido quase isso que havia acontecido?Â
O menino deitado na cama tinha trinta e dois anos agora, estava magro demais, tinha feridas nos lábios e nos dedos. As mãos eram grossas cobertas de cicatrizes de queimaduras, as roupas estavam em seu corpo já há alguns dias. Os pés estavam sujos e feridos e se parecia muito pouco com o pré-adolescente que correu atrás dele pela rua no dia em que tinha viajado, fazendo questão de acompanhá-lo até a parada de ônibus e contando como tinha sido o dia na escola. Antes que o pai entrasse no transporte havia pedido para que fossem ao parque quando voltasse, Alexandre disse que veria e deu tchau da janela do ônibus. O garoto tinha corrido atrás sacudindo as mãos até que o ônibus ganhasse velocidade e não pudesse mais acompanhar. Â
Traria o filho de volta da prisão dentro da mente primeiro, dos danos fÃsicos cuidaria depois.Â