Desde o segundo em que se viram do outro lado do espelho, Samuel foi tomado de um estranhamento sobre tudo o que via. Aquele mundo completamente diferente do dele parecia um sonho de criança. Não acreditava que era um lugar real.. Â
As casas de pedras brancas dispostas em ruas circulares em volta de uma espécie de praça enfeitada com luzes a óleo em postes esculpidos pareciam todas feitas de um único pavimento, cercadas de janelas de madeira tão branca quanto as pedras. Nas ruas, crianças pequenas brincavam. Tudo parecia em movimento constante.Â
Grupos de pessoas das mais variadas idades treinavam o uso de lanças e espadas. Todos vestiam uma espécie de bata azul bordada nos punhos e na gola que cobria até pouco acima dos joelhos com calças cinzentas e sapatos de cordão. Samuel imaginou que fossem um exército. O homem que os guiava atravessando a praça se vestia praticamente do mesmo modo, mas seus bordados eram vermelhos em vez de prateados.Â
Conforme passavam, despertavam a curiosidade de todos, fazendo com que alguns dos soldados mais jovens parassem e fossem chamados a atenção.Â
Cruzaram duas ruas antes de chegar à cabana de pedra e madeira com sua porta caiada e com inscrições marcadas em algumas pedras que Samuel não podia ler, mas lhe eram familiares já que olhara para as mesmas inscrições durante anos enquanto crescia. As que o pai tinha talhado com todo o cuidado e paciência no cimento da casinha antes da luz da varanda ser azul.Â
Enquanto esperavam que Eros abrisse a porta avistou um poço com o que parecia ser fogo cujas chamas brilhavam verdes pouco além do fim dos espirais de ruas onde as casas estavam dispostas.Â
Já tinha visto coisa parecida, muito menor, quando visitava a avó materna na fazenda onde vivia. Olhando pela janela do segundo pavimento para a imensidão negra que se formava ao redor onde não podia distinguir nada além do contorno das árvores contra o céu azul marinho sem lua. Parecia uma esfera incendiada com seu halo verde saltando e correndo. Quando contou aos avós, a vovó disse que era uma alma de morto recente procurando seu caminho para o descanso e vovô dizia que era besteira, apenas gazes do pântano e cabeça de criança com algum medo na época preferia a resposta do avô, agora já não tinha certeza.Â
A avó viu para onde olhava fascinado e quis explicar, mas Eros conseguiu abrir a porta e foi mais importante encontrar o tal livro que o pai trouxera e ver o que podiam fazer por ele. Haveria tempo depois para se instruir nos assuntos do lado de lá do espelho.Â
A cabana tinha um único cômodo, com duas camas baixas a um canto, escondidas atrás de um biombo de tecido colorido. Uma estante baixa entre elas que também servia de mesa de cabeceira compartilhada. Os colchões pareciam ser de palha. O forro de um parecia bastante gasto, do outro estava quase novo. Entre as duas camas havia um tapete feito de pele de algum animal cor de caramelo claro que Diego não sabia identificar e parecia mais velho do que ele pudesse imaginar.Â
Tudo ali tinha uma aparência gasta e decente, tudo bastante organizado, ocupando seu próprio lugar. Um castiçal que um dia devia ter sido dourado e agora só se sabia que era de metal oxidado estava mais à direita, perto da cama mais bem conservada. Â
O chefe dos protetores parecia um pouco constrangido de receber visitas de fora. De receber sua Senhora em sua casa e sem suas noviças. A última vez que ela estivera ali o garoto ainda era praticamente um bebê. Ela nunca o visitava para evitar que falassem coisas, quando ele a visitava era diferente, era sua obrigação estar junto dela, ninguém faria comentários desnecessários. Â
Eros os convidou a sentar. Só havia uma cadeira disponÃvel que ele ofereceu a Senhora. Tinha existido outra, remendada com cipós como a que persistia e parecendo uma relÃquia de famÃlia dos tempos de uma tataravó, mas tinha se quebrado a tanto tempo e nunca tinha sido reposta. O morador fixo da casa e o morador eventual nem se lembravam dela.Â
Os filhos de Alexandre ocuparam lugares na cama mais conservada e adivinharam corretamente ainda pertencer ao pai. Mais pela vela puxada para seu lado do que pela ordem do lugar de descanso.Â
Diego passou a vista pelos tÃtulos dos livros ali. A maioria eram de remédios caseiros, culinária e o que pareciam aulas de história, os mais judiados deviam ser os de seu pai. Escrito em lÃnguas que desconhecia e sujos. Pelo menos dois pareciam impressos em algo que não era papel e nem tecido e tinha uma cor amarelada e doentia.Â
Ouviu a avó dizer baixinho “por que Elohi tem essas coisas?†E sorriu ao imaginar se ela pudesse ver os livros sob o tampo falso do armário e na estante da sala. A maioria dos quais eles não tinham permissão para tocar quando eram pequenos.Â
Eros pareceu também ter ouvido, ajoelhou-se próximo a estante e retirou os volumes da prateleira mais baixa, aqueles que mais causavam maior impacto.Â
—Não são nossos! Não sei onde ele arruma essas coisas, ele sempre traz algum diferente quando vêm, esses são os que esqueceu aqui. Senhora, eu folheei alguns por curiosidade enquanto limpava, mas não entendi quase nada, não estão em nosso idioma e nem em nenhum idioma que eu conheça, tem anotações do garoto em algumas partes, nas margens ou coladas à s folhas originais, fora isso não consegui ler... Não sei se ele colocou alguma proteção, imagino que a senhora possa lê-los.Â
—Não é proteção, são livros de povos desconhecidos... Lembra em qual viu a menção a localizar alguém?Â
Eros parecia envergonhado ao responder.Â
—Não, Senhora. Tem muito tempo e...Â
Não eram muito os volumes esquecidos pelo pai na casinha de chão de terra batida. Eros entregou um para cada pessoa. Diego recebeu um exemplar um pouco diferente, parecia uma agenda adolescente, continha anotações em quase todas as páginas, indicações do tipo “bom para fazer esquecer†ou “para noites insones†e até “temporário, ajuda a consertar as coisasâ€. Algumas páginas haviam se colado uma à outra e outras tinham pontos de mofo amarelo. Outras estavam marcadas com fotos dos meninos, dos amigos e da esposa de Alexandre. Pedaços de coisas coloridas pregadas à s páginas com alfinetes e outras lembranças. Â
Diego percebeu que não era um livro esquecido, era um livro de lembranças. Ficou claro que o pai o trouxera de casa e ano a ano enchera de recordações, talvez por medo de não voltar a ver as pessoas nas fotos e as coisas que as recordações remontavam. Alexandre não queria esquecer, assim como pedira em sua carta que os filhos não o esquecessem.Â
Uma página tinha um postite amarelo pregado com grampo onde se lia “Para saber como eles estão†o conteúdo da página estava desgastado, meio apagado e ilegÃvel em alguns pontos. Mesmo que estivesse nÃtido não poderia ser lido, pareciam apenas rabiscos e não palavras, ainda assim parecia o que estavam procurando, por isso se levantou e levou a página marcada para Liana que quase deu um pulo da cadeira quando percebeu o que era.Â
—Está escrito em lÃngua antiga, não sabia que ele ainda se lembrava... Eros, sei que você não gosta muito dessas coisas, mas posso procurar por ele aqui mesmo ou prefere que eu faça dos meus aposentos? Vou precisar do fogo das almas...Â
—A senhora pode dispor da minha casa como preferir. — Respirando fundo como se tomasse coragem para ser atrevido. —Um deles pode buscar a chama?Â
Eros tinha medo da chama verde desde criança, evitava sempre que podia chegar perto do lugar, ninguém sabia o porquê. Se ela ordenasse o protetor faria e ela nunca ordenaria pois o respeitava. Samuel se ofereceu para ir, só pediu que lhe explicassem como fazer. Não tinha medo, não sentia nada ruim quanto ao fogo verde, só curiosidade e a sensação de que era algo grandioso.Â
Formou as mãos em uma concha como quem retira água de uma bica.  Precisava tomar cuidado para não deixar cair e para não cair dentro do poço. Pode observar de perto o que mais tinha chamado sua atenção no lugar novo. Não foi uma tarefa difÃcil.Â
A descrença e de certo modo a ignorância de Samuel era quase uma benção que ele não sabia que o protegia. Mesmo que ele soubesse que o poço de fogo verde estava ali antes que o povo de Al Dahin chegasse e escolheram aquele lugar depois de peregrinar por todos os cantos da terra por causa do poço a que chamavam fogo das almas porque encontraram seus mortos refletidos e conscientes no trepidar daquelas chamas que não tinham calor algum e que a barreira havia sido erguida além do poço no meio da mata por que consideravam o fosso sagrado, mesmo não sabendo como tinha surgido e porque os mortos à s vezes surgiam em suas chamas para uma conversa com os vivos se houvesse alguém ouvindo, ainda assim teria ido sem problema algum e não veria ninguém. Só o plasma que não consumia nada.Â
Ao menos nada que se pudesse tocar.Â
 A primeira Senhora tinha criado a barreira da névoa formada do consumo de sua vida naquele fogo aparentemente inócuo. Pelo que diziam, o fogo não consumia ninguém, não era agressivo, mas era amigável, se alguém mergulhasse nele pela própria vontade deixaria que sua vida se trocasse em algo pelo que vivera. Para a primeira Senhora, tinha sido manter seu povo seguro.Â
 Passou as chaves para seu sucessor e seguiu sabendo que cumpriria sua missão, tinha sido a única vez, que soubessem.Â
Ninguém o impediu ou se aproximou enquanto fazia sua caminhada guiado pela luz esverdeada. Sentia todos os olhos grudados nele e se perguntava se de olhá-lo aquela gente sabia quem era ou simplesmente estavam olhando um homem totalmente estranho tocando em algo sagrado para eles como se fosse um pouco de terra do chão.Â
Liana usou suas próprias mãos um buraco na terra endurecida do chão, derramou nele a água que estava em um barril para consumo da casa ao longo da semana. Misturou a terra a água criando uma lama castanha e colocou nele o fogo das almas sabendo que não apagaria, mas tornaria a água lamacenta em um negro que lembrava o espelho no quarto de Alexandre. Colocar um objeto ligado a pessoa procurada dentro da água escurecida.Â
Depois era com ela. tinha que deixar a água ficar o mais tranquila possÃvel, sem respirar em cima ou perturbar com seus movimentos e encontrar a pessoa que buscava primeiro em sua própria mente e depois no lugar fÃsico onde estava. Â
Liana o viu e preferia não ter visto. Alexandre estava perto dali, a caminho e chegaria em breve. A roupa ensanguentada em seu corpo mostrava que não vinha por vontade própria.Â