No que o pai estava pensando quando decidiu guardar um milhão de coisas no fundo do armário para depois mandar que procurassem coisas urgentes?Â
Era isso o que repetia para si mesmo enquanto passava mais ou menos duas dúzias de livros velhos nas mais diferentes capas, esfarelentos e mesclados a objetos que pareciam não ter sentido. Alguns Samuel tinha visto a poucos dias.Â
Ali estava ele, quase o último da pilha. Â
Diego sentou-se no chão lendo o manuscrito do pai que não era muito claro sobre nada. Uma espécie de diário escrito à mão em que o pai tinha anotado coisas que achou importante dizer a eles ao longo da vida. O problema era que cobria uma vida bastante longa e nenhum dos dois irmãos tinha ideia do que estavam procurando.Â
Leu trechos de páginas, saltando algumas folhas, procurando algo útil no diário, percebendo Samuel inquieto a suas costas, andando de um lado para o outro, parando, lendo o diário junto com ele de cima e voltando a andar.Â
Tinha colocado Clara no mesmo taxi que trouxera Samuel, destinada a casa de sua mãe até que Diego fosse buscá-la. Ela não queria ir, queria ajudá-lo no que quer que fosse. Diego insistiu, não sabia em que estava metido e não arriscaria.Â
Do meio do diário, caiu um envelope. Papel branco com pontos amarelados, muito mais recente que as páginas manchadas e mastigadas por traças do livro.Â
Deixou o diário de lado e deu atenção ao envelope, percebendo pela visão periférica que Samu fazia uma careta, imaginando que estava perdendo tempo.Â
Abriu o envelope com cuidado. De dentro dele uma medalha de São Vitor escorregou para sua mão, quase caindo no chão.Â
Se resolveram ler isso, as coisas estão mais complicadas do que deveriam e por alguma razão achei que vocês podiam não estar seguros. Muito bem, temos que conversar um pouco.Â
Há algum tempo conversei com minha mãe a respeito da segurança de vocês. Não sei o que aconteceu por aÃ, mas vocês vão precisar passar um tempinho com ela. Vamos considerar uma aventura de férias, nada de reclamações e nem medo, vocês precisam ser ligeiros e não precisam levar nada, tudo o que precisarem vai estar lá para vocês.Â
Descubram o espelho se ele estiver coberto. Fiquem de frente para ele de um jeito que os três fiquem refletidos, se precisarem recolocá-lo façam com cuidado, esse não é o melhor momento para essa coisa quebrar.Â
A medalhinha de São Vitor dentro do envelope tinha algum significado para mim, ganhei do Padre Lucio depois do meu batismo. Era o que tÃnhamos à mão quando concordamos em criar essa passagem para vocês. Em frente ao espelho, os três devem tocar nela. Vão perceber que o espelho vai ficar estranho, confiem e passem por ele segurando a medalha ao mesmo tempo. Depois que atravessarem, entreguem a medalha para sua avó, ela vai gostar de ter uma coisa minha para guardar. Não vai dar para voltar pelo mesmo caminho que vocês usarem para ir, então sosseguem e aproveitem a estadia. Se eu ainda estiver por aqui, assim que puder vou buscar vocês.Â
Se eu não estiver...bem, não tem muito a se fazer, apenas não me esqueçam.Â
Diego leu mais uma vez, procurando alguma coisa que pudesse ter perdido, depois passou a folha de papel ao irmão que leu com uma ruga se formando na testa. Analisou a medalha de São Vitor. Achava que se lembrava dela, o pai costumava usar até pouco depois da morte de Sam, então ela sumiu e nunca tinha pensado muito sobre ela depois disso. Não parecia ter nada de especial nela. Até pouco tempo atrás também não achava que tinha algo de especial na casa ou no próprio pai então não se julgava muito bom para avaliar as coisas especiais que existiam por aÃ.Â
Samuel releu a carta e pediu para ver a medalha, tinha uma expressão séria no rosto.Â
Diego pensou em dizer algo, que deveriam fazer o que o pai disse agora, mas deixou que o irmão fosse sem conseguir dizer nada.Â
Gastou o tempo até o irmão voltar folheando o velho diário do pai, pensou em rearranjar a bagunça que tinham feito e depois desistiu, talvez quando voltassem.Â
Samuel trazia a caixa de pedra da estante, colocando sobre a cama e indicando ao irmão, dando as costas e voltando ao armário.Â
—Ele disse para não levar nada...Â
—Ele disse que não precisava levar nada. Ele também se deu ao trabalho de criar essa coisa, leva só por desencargo de consciência.Â
Samuel ajeito a camisa e a jaqueta na região da cintura, esperou que o irmão decidisse apanhar a arma dentro da caixa de pedra. Nenhum dos dois sabia usá-la, mas confiou que o pai tinha previsto isso.Â
Os dois fizeram como a carta mandava, ambos temiam que nada acontecesse, ou que acontecesse, tudo nessa situação era estranho.Â
O reflexo no espelho ondulou levemente, como a superfÃcie de um lago num dia sem vento.Â
Diego fechou os olhos ao se aproximar do espelho, Samuel os manteve abertos, queria ver o que aconteceria. Ao atravessarem o espelho sentiram um microssegundo de frio e formigamento no corpo todo que ocorriam conforme passassem por dentro da superfÃcie de pedra polida.Â
Chegaram do outro lado quase ao mesmo tempo em que a mulher desconhecida cruzava a porta do aposento e trancasse a porta. Â
A primeira coisa que pensou quando viu a mulher parada em frente a porta escura no aposento desconhecido foi que Bento devia estar falando dela quando falou da vovó do espelho. Em seguida sentiu um peso no peito pensando que tinha duvidado e com o irmão desaparecido não sabia se poderia dizer que estar errado e pedir desculpas. Tinha sido injusto com o irmãozinho e se não fosse isso talvez ele não tivesse fugido de novo. Agora ele e o irmão estavam em meio a coisas que não entendiam, isso o deixava desconfortável.Â
A mulher diante deles era pequena e pálida. Seus olhos azuis e cabelos pretos não davam nenhum sinal de que poderia ter qualquer parentesco com o pai deles, e a idade que aparentava não era compatÃvel com o tÃtulo de avó.Â
Os irmãos se afastaram um pouco. Foi um longo instante em que a mulher os encarou e ninguém se moveu. Então ela se lançou a eles e os abraçou, com os olhos um pouco marejados.Â
Diego retribuiu. Samuel só ficou sem reação e esperou a mulher se afastasse por conta própria.Â
Os rapazes de entreolharam antes de responder. Foi Diego quem iniciou a conversa.Â
—Bento tem uns problemas... ele sumiu ontem, meu pai foi atrás dele com o Samuel, mas mandou a gente vir para cá e não voltou para casa até agora...Â
A mulher empalideceu ainda mais, fechou os olhos por um instante e se recompôs.Â
—Ele está bem? Eles...Â
—A gente não sabe, mas a luz da varanda ainda está acesa o pai dizia que se a luz apagasse vamos estar com problemas sérios.Â
—Eu sei... Bom! Se a luz ainda está acesa ele está vivo... que bom!Â
—Ele pediu para entregar isso a senhora...Â
E estendeu a medalhinha do santo pela corrente, depositando nas mãos da avó (Diego tentava se acostumar com a ideia). Ela segurou a joia com carinho e a levou para junto do coração.Â
—Ele usava isso o tempo todo, até transformar numa chave... Deve estar cheia de momentos bons... Queria poder sentir... Vocês estão bem? Sempre quis conhecer vocês, preferia que fosse de outro jeito, mesmo assim estou feliz em conhecê-los.Â
—Que estranho! O pai disse que a senhora nem considerava a gente como famÃlia...Â
Ela o encarou, parecendo machucada.Â
—Que? Se ela for que nem o pai, já sabia o que eu tinha pensado antes de falar, então é melhor falar logo, não é?Â
Liana respirou fundo. Quanta mágoa havia entre ela e o filho? Quantas palavras não ditas e quantas impressões erradas?Â
—Não sou. Sinta-se à vontade para não me dizer tudo o que pensa, não precisa. E isso não é verdade. Teu pai que entende tudo errado... e quando é comigo parece que faz força para entender da pior maneira!...Eu também não sei me explicar direito e escolho as palavras erradas...Eu sempre quis conhecer vocês.Â
Samuel se afastou um pouco apoiando o corpo na parede de pedras de diferentes tamanhos. Aquele cômodo tinha porta de madeira pesada e escura e nenhuma janela. Um banco feito das mesmas pedras da parede forrado com uma manta e o espelho, quase nada além disso. Â
Diego ainda olhava para ele como se o repreendesse.Â
—Os problemas entre seu pai e eu não deviam afetar vocês! Espero conseguir desmanchar a má impressão... Elohi é teimoso, difÃcil! É impressionante que uma pessoa capaz de escutar o que as pessoas gostariam de guardar só para si não consegue ver a diferença entre o que uma pessoa gostaria de fazer e o que ela deve fazer...Â
—Deixa, eu explico para ele depois.Â
Liana Balançou a cabeça, encarando um pouco o rapaz encostado no canto. O outro, que parecia mais compreensivo se parecia bastante com seu próprio filho. O rapaz desconfiado devia ser o que Elohi recebera como seu ao se casar com a mãe do menino. O temperamento pelo menos parecia moldado a imagem e semelhança do homem que o educara.Â
Queria ser uma caçadora também, saber o que seu garoto pensava e consertar, fazer com que entendesse.Â
Ela havia errado com o filho, não porque queria, mas porque não sabia outro modo de agir. Se arrependia de ter colocado seu dever acima do filho. Poderia ser diferente?Â
Desde que tinha aberto a caixinha trancada que a avó lhe entregou em um dia de festa, quando ainda era muito pequena, sua vida tinha sido resolvida sem que tivesse qualquer escolha.Â
Foi tirada da casa da mãe e do pai, colocada sob a guarda de um protetor que a acompanhava o tempo todo. Morava na casa das noviças, mas não dividia a habitação com elas, ficava sozinha, estudando e aprendendo como ser uma senhora, sobre seus deveres poderes. Sua vida não lhe pertencia, pertencia a seu povo que deveria ser a coisa mais importante e amada por ela.Â
A única pessoa com quem trocava algumas palavras que não fossem ordens e ensinamentos era um aprendiz de Protetor. Eros era o único com quem conversava um pouco, por isso o escolheu para seu Protetor pessoal e quando o filho havia nascido o designou para educá-lo, assim talvez ele fosse um pouco menos sozinho do que ela era ainda.Â
Deveria ter se imposto, ter cuidado da educação da criança ela mesma! Chegou a cogitar a ideia, o conselho a dissuadiu. Tinha muito o que fazer, muito o que decidir, o menino só a atrapalharia. Ela cedeu, porque era assim que as coisas eram e sempre tinham sido.Â
O menino não tinha como entender. Achava que só tinha nascido para cumprir uma obrigação. Tinha dito em uma das últimas vezes em que conversaram antes de que o deixassem ir que achava que se não houvesse a imposição de criar um herdeiro, ela preferiria que ele não existisse. Não era verdade, mas não soube dizer a ele. Depois disso ele saiu para encontrar o pai exilado, o conselho tinha dado um ano. O filho ficou desaparecido por cinquenta e quatro a anos sem nunca entrar em contato.Â
A criaturinha orgulhosa tinha preferido voltar como um estrangeiro desesperado do que simplesmente procurá-la e pedir o que precisava. Ele achava que ela se negaria ou tentaria prendê-lo, garantindo que pudesse ser encontrado para cumprir suas obrigações. Â
Liana queria que voltasse, pediu e até apelou para chantagem. Ele continuava a preferir se sentir um estrangeiro ali. Mesmo nos dias em que ela podia se portar como uma pessoa do povo, em que podia ser a mãe que queria, não conseguia, tinha deixado que uma barreira igual a que cercava seu mundo se colocasse entre os dois e não sabia como reverter. Â
A imposição de gerar um herdeiro tinha sido uma das coisas mais traumáticas que vivera. Não queria que seu filho passasse por isso.Â
O conselho já a estava pressionando, falando sobre a necessidade de haver outro herdeiro que ela não poderia gerar. Falavam de impedir que o prÃncipe saÃsse em sua próxima visita, ao menos até deixar um substituto em seu lugar. Â
Ela é quem teria que prendê-lo, nenhum outro poderia. Elohi era um porteiro mais forte que ela, bastava lembrar a ocasião em que abrira a barreira para o desesperado. Se alguém tentasse impedi-lo de sair, provavelmente passaria por cima da pessoa como um trator, exceto se fosse ela, pois aquele que regia podia criar barreiras inquebráveis exceto por sua vontade.Â
O filho nunca perdoaria tal traição, mesmo que apenas captasse o pensamento seria suficiente para desmanchar o laço fraco que a tanto custo tinha formado.Â
Quando ele chegou, pouco antes que o portão fosse aberto para a festa, parecia feliz por vê-la. A abraçou, ocasião rara. Ficou junto dela quase o dia todo, acompanhando suas obrigações, ajudando no que podia, brincando com Eros como se fosse um segundo protetor.Â
Quando finalmente ficaram a sós, ele lhe contou sobre seus filhos. Queria que os conhecesse, já eram grandinhos, podia trazê-los numa próxima vez, se ela autorizasse.Â
Ficava feliz em falar dos meninos. Admirava o quanto eram inteligentes e boas pessoas, falava de cada um, das coisas que gostavam e de cada particularidade, demonstrando um sentimento intenso e puro que ela nunca tinha podido demonstrar pela própria cria, mesmo que secretamente se sentisse exatamente daquela maneira em relação ao filho.Â
Decidiu que não faria o que o conselho desejava, a escolha era dela, os meios de fazê-lo eram só dela e não faria de maneira nenhuma. Não roubaria da pessoa que mais amava o que era mais valioso para ele.Â
Tentou expor a situação delicada em que se encontravam, as exigências e a necessidade, os medos do conselho. Atrapalhou-se com as palavras, acabou saindo tudo errado. Â
O que disse foi que era bom que gostasse de seus filhos, mas nenhum deles serviria, que as crianças que amava não eram realmente o que precisava e que devia se apressar em lhe dar um neto que pudesse ser apresentado como um herdeiro.Â
Ele interrompeu a conversa no mesmo momento. Então continuava sendo assim? As pessoas só podiam merecer carinho se fossem úteis? Disse que era realmente otário de esperar qualquer outra coisa. Saiu, sem se despedir, batendo a porta e assustando as moças que zelavam no outro aposento.Â
Ela não o viu pelos próximos dias a não ser de longe, afastando-se toda vez que ela tentasse se aproximar. Ele só a procurou quando estava pronto para ir. Desejou saúde e avisou que voltaria no próximo ano, como era sua obrigação. Beijou seu rosto e se foi antes que houvesse resposta. Nunca mais mencionou o nome das crianças ou tocou no assunto. Também não voltou a parecer se sentir em casa nos dias que precediam a festa. Tudo arruinado de qualquer maneira e ele nunca saberia o que tinham exigido dela.Â
Liana não queria pensar se o filho estava vivo ou não, não queria sair pela porta trancada e ver ou falar com qualquer pessoa, gastando seu tempo sagrado com o que quer que fosse que demandasse a atenção da Senhora de Al Dahim. Só por esse dia queria dispor de suas horas do seu próprio jeito. Â
Passaria as próximas horas conhecendo os dois netos que estavam presentes e usaria tudo que estivesse a seu alcance para encontrar o terceiro e encontrar seu filho. Hoje a rainha estava de folga, a mãe tinha assumido o controle.Â