Pouco depois Igor e Bruno chegaram ao estacionamento e encontraram Alexandre e Diana encostados no carro sem conversar.Â
Quando se colocaram novamente em movimento, Alexandre tentou perceber algo, qualquer coisa que fosse na mente de Diana sem se deixar notar, essa discrição era a parte mais complicada.Â
Poderia simplesmente olhar, entrar, mexer em tudo, causar uma grande bagunça e ir embora. As defesas dela não eram assim tão boas quanto ela acreditava, mas não tinha como Diana não perceber que ele estaria ali, então ela mudaria de plano e a descoberta perderia todo seu valor.Â
Incapacitá-la não era uma opção. Não poderia se concentrar nos três ao mesmo tempo, assim que fizesse algo, se ela o percebesse avisaria aos dois na frente. Não conseguiria cuidar dos dois e sem Diana na jogada nenhum dos dois teria qualquer motivo para mantê-lo vivo. E tinha Bento...Â
A outra opção seria criar alucinações em um dos dois ali na frente, de repente se fizesse tudo direito poderia forçar um deles a atirar no outro e se matar em seguida, depois podia cuidar de Diana, fazer com que esquecesse tudo o que achava que queria e seguisse com sua vida. Apesar de tudo não a queria morta, só que ela o deixasse em paz com sua gente.Â
Por algum motivo, Bruno tirou os olhos da estrada e o encarou por alguns segundos pelo espelho, voltando em seguida a olhar a via. Alexandre sorriu quando entendeu que havia uma solução bastante simples, tanto que deveria ter pensado nela antes.Â
Não precisava nem mesmo enfrentá-los, sua desvantagem era óbvia. Só rinha que se afastar o suficiente por alguns minutos.Â
Uma vez sozinho, poderia abrir uma pequena fresta mesmo sem chegar à  barreira, uma passagem direta até o lado além da barreira. Só precisaria se espremer para passar e fechá-la em seguida, eles não poderiam segui-lo e uma vez do lado de lá, poderia procurar por Bento e avisar os protetores e sua mãe para tomar todas as precauções necessárias. Em pouco tempo poderiam voltar para casa, ele e seus três garotos. Se a mente de Bento já tivesse se perdido dedicaria cada dia de sua vida para tentar recuperá-lo, mas esperava que ainda tivesse algum tempo.Â
Sabia como fazer, sabia de seus riscos, só precisava encontrar o momento certo.Â
E o momento se apresentou na próxima curva. Â
Respirou fundo. Fechou os olhos e mergulhou na mente do motorista, não precisava ir fundo nem procurar memórias, apenas deixá-lo de lado enquanto controlasse. A guinada de volante em direção ao declive que levaria a mata foi executada com firmeza pelos braços de Bruno sem que sua parte consciente entendesse o que estava acontecendo.Â
O carro mergulhou e só parou quando se chocou contra uma árvore.Â
O mundo ficou de lado. Ouviu sons de metal e vidro se estilhaçando. Bruno estava desacordado, Igor estava consciente e tentava acudir seus amigos. Alexandre conseguiu alcançar o botão que liberava o cinto. Chutando a porta com toda a força até que abrisse e correndo o melhor que podia em seguida.Â
Seu pescoço doÃa por uma queimadura de atrito contra o cinto de segurança. Tinha confiado na sorte de que sua saÃda não estaria obstruÃda. O ombro parecia deslocado e o passo um pouco tropego, não sabia se pelo terreno ou se depois acabaria descobrindo que tinha quebrado alguma coisa na metade de baixo quando a adrenalina baixasse.Â
Alexandre dizia para si mesmo enquanto avançava para dentro da mata, só mais um pouco e estaria livre. Só mais um pouco e estaria em casa, só mais um pouco e seus problemas ficariam a suas costas e ele estaria fora de alcance.Â
Quando achou que era o suficiente, parou e começou o que precisava fazer para abrir sua pequena passagem. Um rasgo entre os mundos, começando pequeno e quase invisÃvel, depois aumentando, exigindo uma concentração absurda que o deixava cego para todo o resto, mas achava que tinha uma boa vantagem.Â
A abertura crescia, mais alguns minutos e poderia passar por ela e estaria acabado. Â
Começou a dar o primeiro passo lento em direção a abertura que já estava em um tamanho suficiente para que pudesse passar agachado, queria ter mais tempo para aumentar a passagem. Já dava para ver o poço das almas e parte do pátio eternamente ensolarado e sentir o cheiro de terra molhada e coisa verde que fazia saber que estava em casa. Mais um passo, vendo a fenda crescer só mais um pouquinho.Â
A coronhada na nuca o lançou ao solo e viu sua passagem fechar diante de seus olhos, ao mesmo tempo que era erguido do chão e colocado de pé.Â
—Porra! Eu te avisei, mano!Â
Igor tentou arrastá-lo. Alexandre se debateu enquanto Igor tentava imobilizá-lo. Acabou acertando uma cotovelada no nariz do agressor que fez o sangue fluir livre pelas duas narinas. Correu, meio sem saber a direção para onde ia. A ideia da fenda ainda em sua mente. Precisava se afastar, precisava se esconder, se concentrar.Â
Já estava ofegante. Jogou a blusa antes amarrada na cintura para um lado e correu na direção contrária, para o caso de Igor se recuperar mais rápido do que devia e já estar em seu encalço. Esperava que nenhum deles fosse especialista em caça ou coisa do tipo porque ele mesmo não tinha muita ideia do que estava fazendo além de manter as pernas em movimento.Â
Manteve-se assim a pelo menos quinze minutos quando mãos o agarraram obrigando a virar. Bruno tinha sangue na linha do cabelo e escorrendo um pouco para a testa e Diana a arma de Bruno nas mãos apontada para cabeça de Alexandre. A visão do cano fez com que parasse de lutar.Â
Deixou-se arrastar e empurrar sem resistir e sem nenhum cuidado por parte de Bruno. Igor os encontrou pouco depois, ainda tentando fazer o sangue estagnar. Â
Diana foi até ele, se esticando, tentando alcançá-lo e desistindo em seguida, fazendo com que se sentasse ao pé de uma árvore enquanto Bruno segurava Alexandre com mais força do que precisava, gritando em pensamento que queria ter uma chance de acabar com ele com as próprias mãos, esperando que Diana concluÃsse que não precisava assim tanto dele e o autorizasse a fazer seu trabalho.Â
Quando Igor parou de sangrar e se limpou como pode, chegou a vez de Diana se ocupar de Alexandre.Â
—Ai, Elohi! Que eu faço com você?Â
Igor tinha uma voz anasalada agora, parecia estar falando de dentro de um balde. Também parecia ter alguma dificuldade para respirar pelo nariz, mantendo a boca levemente aberta.Â
Diana encarava Alexandre como se realmente esperasse uma resposta que não viria. Dali em diante não diria mais nada. Havia uma eletricidade no ar, uma sensação de perigo que não precisaria ser um caçador para perceber. Ela se julgava desrespeitada, ele tinha feito merda, arriscara e não sabia quais seriam os próximos passos.Â
—Se o que você queria era atrasar a gente em muitas horas e deixar o seu filho morrer naquela névoa, parabéns, você conseguiu! O resultado vai ser o mesmo, nós vamos até o limite da barreira e você vai abrir para todos nós, não mudou nada, só vou ter que te ensinar a se comportar.Â
Desviou o olhar dos olhos de Alexandre e encarou um ponto atrás dele, um pouco acima da sua cabeça que imaginou que fosse onde o rosto de Bruno estava.Â
—Leva ele até aquela pedra, toma cuidado porque está cheio de gracinhas e já foi suficiente por hoje.Â
Igor se levantou, cambaleando um pouco até o lado de Diana.Â
—Não faço questão não, Di! Foi autodefesa, dá para entender e...Â
—Não importa! A regra é a mesma para todos. O seu nariz foi autodefesa, jogar o carro não foi! Ele sabia muito bem o que estava fazendo e naquele momento estava bem seguro. Até onde eu sei ele rompeu a paz, não nós! Por favor me empresta o que está no bolso da sua jaqueta.Â
Igor arregalou um pouco os olhos, andando atrás dela que já tinha voltado as costas para ele e se aproximava da pedra onde Alexandre era mantido por Bruno.Â
—Di, não precisa! Ele não é um de nós, nem conhece as regras, não tem necessidade disso!Â
—Querido, ele é um de nós, deveria saber disso, devia já ter entendido. Se você faz um de seus irmãos sangrar, você sangra, lembra? Agora, você vai me emprestar ou vou ter que procurar uma pedra que resolva gastando muito mais tempo e gerando muito mais sofrimento?Â
Igor respirou fundo pela boca. Remexeu no bolso interno da jaqueta e encontrou o canivete suÃço que a própria Diana lhe dera de presente alguns anos antes. Estava bem cuidado e afiado e ela sabia que estava com ele porque ia sempre em seus bolsos. Entregou já com a lâmina armada para Diana, virando o cabo para ela.Â
—Você sabe que depois não vai poder desfazer, não é?Â
Igor tinha um ar grave, cedeu a contragosto, deu alguns passos, passando por Alexandre e Bruno e se afastando um pouco. Quando passou por Alexandre o encarou por alguns segundos. Â
Alexandre ouviu o que pensava, porque era direcionado a ele e era alto o suficiente para que qualquer caçador ouvisse, Igor não se preocupava em dissimular. “Desculpa, cara! Eu tentei...â€Â
Bruno o obrigou a estender a mão esquerda sobre a pedra, mantendo imóvel por mais que ele tentasse puxá-la de volta.Â
—Essa não, Bru! Como ele vai usar a aliança assim?Â
Alexandre não podia ver o rosto de Bruno de onde estava, mas tinha certeza de que sorria. A mão direita foi estendida sobre a pedra dessa vez.Â
—Vai doer um pouco, não é vergonha gritar se quiser... Fica quieto e vai acabar logo.Â
A lâmina, pequena demais, desceu sobre a pele na base do polegar, deixando claro que nunca mais seguraria um objeto de defesa com aquela mão. O canivete de boa qualidade não tinha sido feito para aquele tipo de trabalho. Perdeu o fio logo e a insistência e falta de jeito de Diana com a coisa fez com que o corte não fosse preciso ao separar a articulação. A carne foi mais mordida e dilacerada conforme ela afundava e remexia mais e o cabo se tornava escorregadio por causa do sangue de Alexandre impedindo que a pegada fosse mais firme.Â
A dor era uma das piores que já tinha sentido, mas não gritou. Não emitiu um único som além da respiração pesada de medo e dor que não conseguiu conter. Durante todo o processo permaneceu olhando diretamente no rosto de Diana. Desejou matá-la naquele momento e calculou se teria a oportunidade qualquer hora dessas, mesmo sabendo que se aquele momento passasse jamais faria, perderia sua razão de agir.Â
Quando o polegar finalmente se desprendeu, foi a vez do dedo indicador. Tão problemático quanto seu antecessor. No meio do processo Diana suava e acabou desistindo e deixando o pobre dedo machucado e com os alguns nervos rompidos e um osso aparecendo onde sempre esteve.Â
Dando por terminado o serviço, Diana procurou algo na bolsa de mão que tinha tido o cuidado de apanhar no carro e achou lenços umedecidos com os quais se limpou. Depois apanhou uma toalha na bolsa de maquiagem e usou para improvisar um curativo que estancasse o sangue da mão ferida de Alexandre, com o cuidado e o carinho que não poderia vir de quem era a própria causa do ferimento.Â
O tempo todo Alexandre a olhava. Não haveria mais nenhuma tentativa de diálogo. Â