Deixou-se levar sem saber direito aonde ia. Diana não lhe dizia nada. O tal Bruno, se pudesse, arrancaria sua cabeça com as próprias mãos e o outro olhava com alguma curiosidade. Â
Achava que iam para um dos pontos onde a barreira era menos densa. Lugares usados para a passagem durante a festa, quando a nevoa se tornava mais tênue e permitia a abertura de pequenos portais. Já tinha usado alguns deles quando ia alguns dias antes, numa tentativa de passar um tempo com os seus do lado de lá. Â
Quando o carro parou estavam diante de um restaurante de beira de estrada. Bruno abriu a porta para Diana. Ela estendeu a mão para Alexandre sorrindo, convidando a descer com ela. Ele fingiu não ver e abriu a porta do lado oposto, magoando a moça e deixando Bruno furioso. Â
—Não temos tempo para isso!Â
—Pode sossegar, por favor, querido? Os meninos precisam comer e usar o banheiro e eu sei que você também deve estar morrendo de fome, não vai demorar...Â
—Bento deve estar com fome, com sede... apavorado...Se não tem outro jeito, pode pedir aos seus cavalos para serem rápidos, pelo menos?Â
—Bruno, Igor... Aproveitem a parada para esticar as pernas e levem o tempo que precisarem. Nós vamos ficar ali naquele canto, por favor nos deixem a sós um pouquinho.Â
Alexandre a encarou com algum ódio. Isso tinha sido ela demonstrando que era quem tomava as decisões por ali, mesmo que para isso tivesse que sacrificar algumas horas do filho. Entendeu o recado e se calou. Como é que tinha se metido no caminho dessa doente!Â
—Por favor respeite meus meninos! Eles são seu povo tanto quanto as pessoas do lado de lá. Se não estiver disposto a ser um bom rei para todos de nós, seria melhor que você repensasse sua missão. Já que não dá para mudar o que você está destinado a fazer, tenta pelo menos fazer o melhor possÃvel para todos. Eu penso que você é diferente dos que vieram antes, não me decepcione!Â
E virou as costas sem esperar por ele. Andando com passo firme, soltando os cabelos que refletiam a luz do sol da manhã. Deixando um Alexandre surpreso do sermão que recebera e com raiva por ela se dar ao direito.Â
a pior parte é que Diana não estava errada. Já tinha pensado nisso, até tentado discutir com a mãe a respeito. Ele se considerava estrangeiro, mas nunca tinha sido tratado como tal em suas visitas. Por que os outros que tinham sido mandados para os pais ou que tinham nascido fora deveriam ser eternamente estrangeiros?Â
Encostou na lateral do carro, onde estava, esfregando os olhos que ainda estavam manchados de pontos negros por causa da droga. Â
Bruno deu a volta e mesmo caminhando tranquilamente alcançou Diana, ficando a seu lado, ela enlaçou o braço dele e olhou rapidamente para trás, desviando em seguida.Â
A porta a seu lado foi batida, o sujeito chamado Igor, como agora sabia, se recostou ao seu lado.Â
—Ela não é de todo ruim, só tem muito trabalho... muita pressão e esperou muito de você... Verdade que nasceu do lado de lá?Â
Alexandre o encarou sem responder. Não via o mesmo ódio que fluÃa de Bruno, só curiosidade mesmo. Nem importava muito se responderia.Â
—Bom saber que o lugar existe mesmo... alguns de nós nem acreditam, mas como a Diana acredita, a gente segue com isso.Â
—Eu não me importo. Â
—Então por que tanto trabalho?Â
Alexandre pensou um pouco. A droga da semana estava sendo infernal e não estaria mais próximo da morte por causa de um cigarro do que poderia estar por qualquer outro motivo. Estendeu a mão, aceitando o abençoado tubinho de papel branco.Â
—Se a gente encontrar o Bento, não conta para ele.Â
—Não conta para a Diana que eu ofereci, ela já fica brava que eu fume, imagina oferecer para o prÃncipe dela.Â
—Por que tanto medo dela?Â
Igor o encarou com o cigarro a meio caminho da boca e o isqueiro na outra mão.Â
—Ninguém tem medo dela, pelo menos ninguém que eu conheço... A maioria de nós faria qualquer coisa por ela porque ela fez tudo pela gente, essas coisas não se esquecem e não dá para pagar esse tipo de dÃvida.Â
Alexandre não parecia entender, decidiu que merecia alguma explicação mais clara.Â
—Você veio para o lado de cá já meio grandinho né? Doze anos?Â
—Tenta imaginar crescer aqui ouvindo um conto de fadas sobre seu lugar no mundo, depois perder seus pais, seus amigos, seu amor e todo mundo que você conhece sem saber por que todo mundo vai embora e você não. Isso se você tiver ouvido as historinhas, em muitos nem chegou.Â
Isso fode com a cabeça do sujeito, muitos estavam completamente destruÃdos quando ela começou a encontrar a gente. A maioria não se encaixava, não conseguia ter um propósito de vida. Um monte bebia até cair... Fora os que tinham traços de habilidades. Esses sofriam mais que os outros. Â
Então a Di apareceu. Usou o dinheiro que tinha para comprar um monte de empresas. Ela encontrava a gente, via como ajudava. Pagava tratamento, escutava, dava emprego e mostrava que não estávamos sozinhos. Â
Eu acho que fui um dos primeiros. Tem uns cento e poucos anos já. O Trabalho na época era bem mais complicado. Eu comecei a ajudar logo no inÃcio. Sou bom nisso, apesar de não ter nenhum dos dons...Â
Eu estava rastreando pássaros já tinha muitos anos quando encontramos uma menininha. Ela não tinha mais de dez anos, cara. Diana me mandou buscar a criança mesmo que tivesse que dar um jeito na mãe para isso. Eu não sou chegado nesse tipo de trabalho, sou mais de encontrar e conversar, mas daquela vez eu faria.Â
A menina tinha dom de cura, sabe? Era bem forte... A mãe explorava a coitadinha, abriu uma espécie de igreja e cobrava para a menina curar o povo. Não sei se você tem noção, mas quando um curandeiro nasce com empatia, ele não ouve as coisas, ele puxa a doença dos outros para ele e sofre com ela até o próximo dia nascer.Â
A mulher fazia a neném trabalhar do nascer do sol até pouco antes da meia noite. As pessoas pagavam, abraçavam a garota e partiam livres. A menina ficava lá sofrendo.Â
Eu fui com um amigo, chegamos metendo o pé na porta. A mãe da bichinha achou que era assalto, sabe? Encontrei ela ainda quente. Cortou a própria garganta e eu cheguei atrasado. Eu e a Di tomamos um porre naquela noite, ela chorou por dias. Â
Queria te dizer que foi a única vez que a gente viu esse tipo de coisa acontecer, não foi. Â
Diana foi a primeira pessoa a se importar com a maioria dos pássaros que estão por aà hoje, ela à s vezes exagera. Tem essa ideia fixa de abrir passagem para o paraÃso e essa coisa com você desde que te achou e soube quem você era, mas não tem como falar que ela não cuida da gente.Â
Alexandre não dizia nada, só escutava.Â
Sabe aquela raiva que você sente de si mesmo quando concorda com alguém que odeia ou que considera idiota? Foi exatamente essa a sensação que Alexandre teve naquele momento. Â
Mais de cem anos no mundo comum e nunca tinha se preocupado em procurar os outros. Tinha tido sorte demais, mas imaginava como seria passar pela vida sabendo muito pouco sobre si mesmo e o lugar de onde vinha. Â
Quando tudo isso acabasse, teria que conversar com a mãe sobre as coisas que pensava agora, as coisas não estavam boas para todo mundo e deviam cuidar de todos e não de parte, estavam falhando nesse aspecto.Â
—Obrigado pelo cigarro.Â
—Me faz um favor, colega? Vai lá ficar com ela e se você estiver pensando em aproveitar a parada para fugir, desiste. Você parece esperto, parece boa pessoa também, não dá um motivo para a gente ter que te machucar. Se você andar na linha que ela traçar, vamos ficar bem, Ok?Â
Não soava como ameaça. Â
Alexandre não duvidou em momento algum que fosse um aviso real. A conversa estava encerrada. Igor tornou a entrar no carro, pretexto de pegar algo que tivesse esquecido, quase gritando que não queria ter de explicar o que tinham conversado até então, não queria ser visto entrando com o convidado.Â
Caminhou devagar e sozinho até cruzar a porta e ser recebido pelo ar-condicionado do lugar. Correndo os olhos pelos pulsos de todos os funcionários que via procurando mais tatuagens de pássaros que pareciam marcar o grupo que morreria por Diana e não encontrando em ninguém.Â
Alexandre não via Diana em parte alguma do salão do lugar, devia estar no banheiro ou coisa do tipo. Escolheu a mesa mais no canto, sentando-se junto a vidraça, com as costas grudadas na parede, não ia dar chance para Bruno se aproximar dele sem ser visto novamente, uma vez bastava.Â
Diana procurou por ele, o viu no canto e foi em direção, tinha lavado o rosto e prendeu o cabelo num rabo de cavalo alto, parecendo mais jovem do que antes agora sem maquiagem. Tinha algumas sardas de sol invisÃveis antes.Â
—Quer que eu peça para você?Â
Alexandre balançou a cabeça, mantendo os olhos baixos. Rezava, não falando com Deus ou algum Santo, mas tentando fazer com que algumas de suas palavras chegassem a Bento, mesmo sabendo que não podia ser ouvido. Continuava porque a sensação de impotência total o estava matando. Devia ser assim na cabeça de quem tem filho desaparecido sem o saber morto, você fala com a pessoa como se ela pudesse te ouvir só para não a abandonar, quem sabe sua voz sirva como uma centelha que mostrasse o caminho.Â
—O enjoo talvez passe se comer algo. Já vi isso antes...Â
—Ele vai ficar bem, sem a barreira...Â
Alexandre respirou fundo. Não precisou interromper, Diana mesmo deixou a voz reduzir até a frase sumir.Â
—Imagino que você tenha buscado informações sobre nossa gente, não é?Â
Diana concordou com a cabeça. O pai não recebeu qualquer educação formal de sua gente, mal sabia escrever, a mãe lia e escrevia, mas o que sabia do lado de lá era só o pouco que julgaram contar a ela, gente do povo não precisava saber, só aceitar que as coisas eram como eram e mantê-las assim.Â
O que sabia tinha descoberto em livros velhos, em conversas com pássaros cujos pais tinham se dado ao trabalho de ensinar aos filhos o pouco que sabiam sobre o lugar de assombro que um dia tinham visitado.Â
—Sabe o motivo da barreira estar lá?Â
—Separar do mundo comum.Â
—Não é só isso. Antes da separação a gente era caçado como animais. Um monte de lendas rolava entre os locais. Prender um de nós realizava desejos. Sangue de gente do povo antigo deixava alguém invulnerável. Membros serviam de amuletos de sorte. Os gritos faziam o azar fugir. Gente do demônio que levava a vida de crianças para se manter jovem e por isso merecia morrer. Um monte de bobagens assim, mas quem acreditava nisso não se dava ao trabalho de pensar dois minutos a respeito do absurdo em que estavam acreditando.Â
A separação e a barreira vieram para que nossa gente parasse de ser perseguida e morta. A ideia de derrubá-la não vai ser boa para ninguém.Â
—O mundo mudou muito de lá para cá.Â
—Tem certeza? Tem muita gente boa, acho que a maioria é, mas humanos são animais com uma vontade de viver mais forte que a de outras espécies, e viver para a gente não é só respirar. Se você colocar o tanto de pressão necessária, todo mundo cede. Todo mundo seria capaz de fazer coisas terrÃveis se encontrar o motivo certo.Â
—Depois de tanto tempo, isso ainda é uma coisa que te preocupa?Â
—Acho que não, mas o que você está querendo é que eu escolha expor um povo totalmente inocente nesse sentido aos leões, que não são todos, mas valem por muitos. E você quer que eu concorde com isso, que a Senhora cuja função é cuidar daquele povo escolha fazer isso, consegue perceber que está querendo demais?Â
—Você vai concordar e a sua mãe... nós damos um jeito!Â
—Não tem jeito, Diana. Essas coisas precisam ser voluntárias, não é simplesmente aceitar, tem que ser desejadas. Esses mecanismos de defesa foram criados justamente para evitar que nosso povo fosse exposto pela maldade ou vontade de uma pessoa só.Â
—Nosso povo não está só lá!Â
—Eu sei...estava pensando nisso lá fora. Tem um monte de coisas que precisam ser consertadas no modo como fazemos as coisas, só o meio escolhido está errado...Â
Diana sorriu, baixou os olhos, pensando um pouco.Â
—Eu disse que não era difÃcil gostar de você...Â
—Não começa com isso de novo, tá! Você não me conhece o suficiente! Olhar de longe não é conhecer, é no máximo imaginar...Â
—Eu sei o que sinto, e sei que você vai sentir também, não estou esperando que você se apaixone por mim agora, só estou confiando no tempo.Â
—Deu certo para os meus pais. Quando meu pai foi exilado do lado de lá, minha mãe quis vir com ele, depois de um tempo eles se amavam mais que tudo. O tempo vai fazer você perceber que gosta de mim, mesmo com tudo...Â
Alexandre não ouviu o final do que tinha dito. Perdeu-se na parte do pai ter sido exilado. A percepção do que dizia gritou no fundo da mente, como se estivesse lá o tempo todo e ele tivesse ignorado todos os sinais e agora não pudesse mais fingir que não sabia. O que ele tinha entendido deve ter brilhado forte no rosto. Diana riu baixinho, colocando a mão diante da boca e ficando vermelha, quase se engasgando com o bocado de comida parcialmente mastigada que ela se esforçou por engolir, depois tomou um gole de água e tentou se conter, respirando fundo.Â
—Você parece bastante com ele, olhos mais escuros e um pouco mais baixo, fora isso quase me fez ter um infarto quando te vi pela primeira vez, é muito parecido...Â
Alexandre fechou os olhos, uma onda de tontura leve fez tudo parecer embaçado, não sabia se era resto da droga no organismo, a sede que sentia ou o peso da informação que havia recebido.Â
—Ah, que merda! E você realmente não vê nenhum problema nisso?Â
—Você realmente vê? Em casa, ouvi dizer que isso não seria assim tão ruim, a gente não cresceu junto, nunca nos vimos dessa forma. E mesmo que fosse assim uma coisa tão terrÃvel, meio tarde para pensar nisso, Bento já existe. Não dá para devolver.Â
—Eu vou esperar por vocês lá fora.Â
Alexandre se levantou, percebendo que Bruno se levantava também do lugar que ocupava no balcão. Dessa vez ele poderia vir se quisesse, não se importaria de quebrar o lugar todo, lutaria e pagaria um pouco do que devia à quele trasgo, mesmo que tivesse consciência de que talvez não desse conta, ao menos daria algum trabalho.Â
Diana fez que não e Bruno voltou a sentar-se e o deixou ir em paz. No estacionamento encontrou o carro, sentou-se sobre o capô. O dia começava a esquentar e o moletom vermelho usado por Bento um dia antes começava a ficar úmido de suor. Tirou e amarrou na cintura, expondo a camiseta cinza de dormir que o filho tinha usado sem critério. Â
Rezou de novo não chamando por Bento, mas pela mãe, pedindo orientação mesmo duvidando que ela pudesse ouvir.Â