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Chegar em casa foi doloroso. Â
Queria ficar um pouco sozinho, distante de tudo. Pensar e se permitir o luto que Lydia merecia. Não era o momento de se isolar, devia explicações e forças para a famÃlia e tinha a sensação desagradável de que não estava conseguindo enxergar coisas que eram evidentes.Â
Enquanto se chacoalhava no banco de trás do carro velho que precisava de uma revisão e um amortecedor novo, logo depois de ter se apresentado a nora e visto que Clara não o enchia acusações pelo abandono dos filhos por pura educação, pensava que já sabia o que fazer para enxergar mais claramente.Â
Já tinha passado por perÃodos insones antes, sabia o quanto isso comprometia a clareza de seu pensamento. Costumava acontecer com certa frequência quando trabalhava demais como caçador. Â
Ser professor era satisfatório, até realizador, mas não pagava muito. Se não fosse a segunda atividade, as coisas podiam ter ficado difÃceis. O que chamava de sua segunda atividade na verdade era a primeira. Começou a ganhar dinheiro como caçador ainda no orfanato. O padre sabia e não se opunha e Alexandre não via problemas nisso.Â
A solução para as noites sem dormir veio de um livro antigo. Tinha acostumado desde que passou a ganhar o próprio dinheiro a procurar livros que viessem de seu povo e comprá-los para em seguida lê-los até decorar o conteúdo. Muitas mães mandavam livros de presente com os filhos gerados com estrangeiros para que as crias pudessem saber algo sobre sua casa e seu povo. Em geral esses livros acabavam esquecidos em prateleiras ou gavetas por anos até que um neto ou sobrinho decidisse vendê-los. Era assim que chagavam a sua casa.Â
Um desses livros era sobre plantas e misturas, um livro feito para curandeiros. Bastante útil quando uma criança tinha febre ou cólica, também eficaz quando um pai cansado não conseguia dormir a dias. O que precisava estava na página 167 e já tinha tudo em casa. O único problema era a falta de privacidade que enfrentaria com a casa cheia e o garoto adicto que não devia ver que o pai precisava de uma ajudinha quÃmica para resolver seus problemas, isso poderia dar ideias e o bichinho nojento que havia eliminado poderia surgir novamente.Â
 Aquela coisa sempre procurava uma oportunidade de voltar, por isso nunca prometia uma solução definitiva para seus clientes. A pessoa sempre precisava de algo mais pelo que viver.Â
Clara parecia nervosa e desconfortável, segurava a bolsa de ginástica pela alça com as duas mãos como se não quisesse tocar em nada. Não se sentia em casa entre a famÃlia do esposo e quem poderia culpá-la?Â
Dos dois irmãos ela só conhecia o mais novo que passou duas noites em sua casa, roubou o dinheiro da conta de luz que estava sobre a geladeira e desapareceu no meio da tarde quando Diego e ela estavam trabalhando, levando consigo a cópia das chaves que ficavam em um porta chaves para alguma emergência. Do outro só ouviu falar e conhecia de vista. Diego dizia que Samuel era desconfiado e não gostava muito de conversar com pessoas que não conhecia, olhando para ele agora, parecia um pouco arrogante também.Â
E havia o pai que os abandonara a vinte anos quando ainda eram meninos e agora voltava como se nada tivesse acontecido, exceto que ela duvidava muito que aquele fosse o pai do esposo desaparecido a tanto tempo. Devia ser um golpista, alguém que sabia da história deles e se parecia um pouco, mas nem tanto, com as fotos antigas que ela já havia visto e estava ali por algum motivo que por enquanto ela não sabia.Â
Nada do que Diego contava à s pressas enquanto a ajudava a fazer as malas fazia sentido, talvez ela estivesse um pouco paranoica, mas preferia isso a deixar que o marido fosse enganado mais uma vez. Já chegava quanto aquele homem bom já havia sofrido por pessoas que diziam se importar com ele.Â
Alexandre se sentou desajeitado sobre o sofá ao lado de Samuel. Posicionou o braço sobre o ferimento na lateral do corpo. Achava que a febre tinha voltado e não queria que seus meninos percebessem. Â
Mantinha os olhos em Clara e não conseguia julgá-la. Ele mesmo estranharia se entrasse para uma famÃlia assim. O erro era dele no fim das contas, deveria ter se preocupado em contar aos meninos quem era. Só achou que teria mais tempo.Â
Mal se sentou e os meninos o cercaram. Samuel continuou a seu lado, Bento veio do quarto e tomou seu lugar no chão, afastando a mesinha de centro e Diego guiou Clara até o outro sofá, fechando a janela e a cortina e ligando o rádio baixinho antes de se sentar ao lado da esposa. Alexandre agradeceu a atenção dentro da cabeça do mais velho, ele sorriu confirmando que tinha ouvido e não falou nada. Â
— Não tem um jeito melhor de dizer algo assim. Meninos, a sua tia Lydia foi morta. Disseram que foi um assalto. Eu não acredito nisso e tenho meus motivos para não acreditar... Se eu estiver certo...só vou ter certeza amanhã ou depois... vocês todos vão estar em perigo, por isso preciso que fiquem aqui em casa por uns dias. Diego e Clara ficam no quarto que era dele. Se quiserem tiramos a cama e juntamos dois colchões para vocês terem mais espaço. Vocês dois voltam ao quarto que usavam quando crianças. Desculpa Bento, preciso do meu quarto de volta. Tem coisas que eu só consigo fazer de lá.Â
—Vai falar com a vovó do espelho de novo?Â
A pergunta não foi respondida. O modo como Samuel olhou para o irmão fez com que se encolhesse um pouco.Â
—O senhor resolveu tudo e nem perguntou nada para agente. Eu tenho casa! Por que ia ficar aqui e dividir quarto? E acha mesmo justo arrastar o Diego e a mulher dele para cá e ficar no quarto de criança? O senhor está confuso, inventando coisas e envolvendo a gente nisso... Nem todo mundo é o Bentinho, pai. A gente tem uma vida e não precisa ficar seguindo as fantasias do senhor...Â
Alexandre respirou fundo. Samuel sempre foi o mais direto e era bom que alguém falasse algo que todos já tinham pensado em algum momento.Â
—Você não acredita em nada do que eu te falei até agora né? Que bom! Amanhã vou precisar dessa sua descrença, se você puder me acompanhar, é claro. Eu entendo o que você está sentindo, então vou pedir que fique aqui só essa noite. Pode dormir aqui se não quiser dividir o quarto com seu irmão. Só que hoje, ninguém vai sair dessa casa. —Levantou-se com dificuldade e caminhou até a porta, trancando em seguida e colocando a chave sobre a mesa de trabalho. —Pode tentar se quiser! Eu consigo lidar com sua raiva, com sua mágoa e até com a dúvida, não consigo lidar com você em perigo ou machucado. Não hoje!Â
Samuel estremeceu um pouco, o pai estava se segurando para não estourar. A reação dele não lhe parecia certa, mas não quis prolongar a discussão.Â
Preferiu esperar que o pai se acalmasse, durante a madrugada iria para casa, se trocaria e iria ao trabalho na manhã seguinte já que não podia parar sua vida porque o pai tinha enlouquecido.Â
Alexandre voltou a seu lugar anterior ao lado do filho. Abraçou pelos ombros e o puxou para si, sentindo a ferida vazar com o movimento, mas não se importou. Trouxe Samuel para perto o bastante para o que dissesse ficasse apenas entre os dois.Â
—Para com isso! Já disse que não vai sair ninguém até que eu decida abrir a porta. E você detesta seu emprego, para que se esforçar e me desafiar por algo que você odeia? Você fica aqui, seguro. Amanhã a gente vai dar uma voltinha, só você e eu.Â
Samuel não respondeu, mas encarou o pai com olhos arregalados. Desde criança tinha a sensação de que à s vezes o pai sabia o que ele estava pensando, mas era só isso, coisa de pai que sabe que o filho fez alguma arte. Aquilo tinha sido um pouco assustador. Â
Alexandre se afastou pois tinha muito a fazer. Sorriu para o filho do meio, um pouco cÃnico, via que o garoto estava assustado. Ele teria que lidar com aquilo, só esperava que não começasse a acreditar de uma hora para outra. A descrença seria uma dádiva bem-vinda no dia seguinte.Â
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Ao entrar no quarto meio bagunçado para seu gosto, mesmo que o caçula tivesse se esforçado em arrumar, pensou em trancar a porta e decidiu que era melhor só encostá-la, para o caso de algo acontecer ou precisarem dele.Â
Esfregou os lábios com alguma violência. Listando na mente o que precisava fazer.Â
Encontrar o livro que permitiria saber parte das respostas que procurava. Esse não seria um problema, Lydia devia ter guardado no fundo falso do guarda-roupas, como havia feito com a caixa de pedra. Sempre podia contar com ela para proteger os garotos de suas coisas perigosas, fossem livros, ervas ou qualquer coisa que ela não gostasse. A mulher tinha uma sensibilidade incrÃvel para encontrar algo que poderia ser destrutivo. Tinha.Â
Lá estava ele. Já sabia como fazer. Já tinha feito uma vez, com Lydia e André ao seu lado e tinham prometido juntos que nunca fariam novamente. Seus bons amigos teriam que perdoar, principalmente Lydia, mas quebraria mais uma promessa.Â
O primeiro livro foi colocado sobre a cama, começou a remexer os outros em busca do que queria. Abaixo da pilha, um com uma capa bastante puÃda. Misturar algumas ervas, aquecer na temperatura certa, tudo bem medido e bem pesado. Se errasse a dose ou a ordem poderia se envenenar, acabaria dormindo para sempre já que era isso que queria.Â
Já tinha feito a receita tantas vezes que sabia cada regrinha de cor. Ainda assim sentia uma segurança estranha de fazer a coisa com o livro nas mãos.Â
Os frascos estavam logo abaixo. Seis vidrinhos redondos com plantas secas em seu interior. Vinte anos guardados, será que ainda estavam bons? Saco! Dava para ver os fiozinhos do mofo como teia de aranha no ingrediente mais raro. Â
Precisava confiar na natureza então. Separou o que precisaria para o dia seguinte na velha mochila e tentou dormir um pouco.Â
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Mal tocou na cama e sonhou.Â
Estava entre as brumas novamente, mas dessa vez tinha perdido sua direção. Não sabia para onde tinha que ir. Sabia que a floresta e o lago estavam a suas costas, um giro de 180 graus e alguns passos e estaria em segurança, mas não podia seguir esse caminho fácil. Tinha que encontrar seu coração que estava perdido. Viu o fio rubro amarrado em seu peito, seguiu atrás dele sabendo que se perdesse a trilha seu coração estaria perdido para sempre. Sentia medo, fome e um abandono que não eram seus e teve medo de que aquilo que estava além da névoa desistisse, se isso acontecesse quem estava na outra ponta estaria perdido para sempre, mesmo que pudesse encontrá-lo. Seria um dos fantasmas da névoa.Â
Acordou assustado. Levou algum tempo para entender onde estava. Por um momento acreditou que estava deitado no catre encostado na parede de pedra da casa do protetor onde vivia quando era criança e onde ainda ficava quando ia para casa.Â
Lá fora o roxo do céu começava a desbotar. Algumas horas de sono faziam maravilhas para o cérebro. Ainda estava cansado e se sentia doente. A ferida tinha uma aparência péssima e não parecia estar melhorando. Lavou sem muita delicadeza sob o chuveiro e conseguiu tirar a crosta amarela que havia se formado. O cheiro não estava agradável mesmo sob a grossa espuma do sabão. Â
Vestiu-se com roupas limpas. Cheirava a amaciante.Â
Lydia era mesmo uma pessoa incrÃvel, quem se preocuparia em manter as velhas roupas de um desaparecido limpas? Era claro que nunca tinha desistido dele. Até fazia doer o coração de pensar em fazer o que faria, mas não poderia deixar para lá.Â
Pegou a velha mochila que já pedia aposentadoria. O livro certo se juntou a coisas que encontrou em gavetas da cômoda e em seu espaço de trabalho na sala. Â
Samuel dormia na sala. Garoto implicante! Parecia tranquilo, dava dó de acordar, mas precisava dele.Â
—Levanta! O dia vai ser longo. —Chamou baixinho para não acordar o resto da casa.Â
—Sério? São quatro da manhã...Â
—Eu sei. Precisa de um tempo para se arrumar ou consegue só escovar os dentes e lavar o rosto? Estou com um pouco de pressa!Â
—Não posso ir trabalhar, mas tenho que acordar as quatro da manhã?Â
—Ninguém falou que era feriado... Levanta!Â
Houve mais reclamações. Samuel se levantou de mal humor, vestiu-se e calçou os sapatos praticamente ainda deitado. Quase bravo por acordar tão cedo.Â
—Posso pelo menos tomar um café?Â
—Melhor não, não quero você enjoado.Â
Alexandre destrancou a porta e entregou ao filho as chaves para que tornasse a trancar, era comum naquela casa que ele nunca trancasse as portas, sempre pedisse para outro alguém, tão natural que nenhum dos filhos nunca perguntou o porquê.Â
Desceram a rua cruzando vez ou outra com algum trabalhador que seguia de cabeça baixa em direção ao ponto para apanhar o primeiro ônibus. Eles iam na direção contrária, caminhando, o destino era perto. Â
Quase não conversaram pelo caminho. Alexandre ia concentrado na tarefa que tinha, rezando baixinho como não fazia a muito tempo, pedindo perdão e encomendando a própria alma caso tudo saÃsse do controle. Samuel parecia só ter acordado de corpo, o espÃrito permaneceria na cama pelo menos até o dia clarear.Â
A casa de Lydia parecia desolada com seu jardim destruÃdo pelos sapatos de peritos descuidados e enfeitada com suas fitas amarelas que isolavam o lugar. A calçadinha branca que levava do portão verde até a porta de entrada estava encardida de terra e pegadas, algum lixo havia sido deixado no quintal. Sua dona cuidadosa mal deitara e o lar adquiria aparência de abandono. Era triste de ver.Â
Ao ver o pai abrir o portão sem dificuldades, Samuel pareceu acordar por inteiro, sempre tentando convencer o pai e olhando ao redor, certo de que Alexandre enlouquecera de vez, ninguém tinha nada que invadir a casa da tia que agora era cena de um crime e de que seriam presos, algum vizinho acabaria chamando a polÃcia. O pai seguia ignorando seus apelos com a mesma dedicação que mãe de filhos pequenos ignoravam quando davam escândalo em lugares públicos.Â
Samuel tinha a chave da porta principal, era ele quem cuidava dos remédios da tia, o pai não perguntou nada, apenas torceu a maçaneta e entrou como se fosse sua casa e pediu que Samuel a trancasse com a chave ao passar depois dele.Â
O cheiro metálico e adocicado do sangue impregnado e seco no tapete de crochê os atingiu em cheio, embrulhando o estômago.Â
A parte de dentro da casa não estava muito melhor que o lado de fora. Pegadas de terra no chão de azulejos verdes antigos, cadeiras fora de lugar, marcas de mão nas paredes e a sensação de descuido.Â
Alexandre se ajoelhou próximo a mancha de sangue, tocou com dois dedos sobre o sangue seco e com a mão oposta cobriu o rosto como se fizesse uma oração, em seguida levou os dedos a testa. Samuel olhava ao longe, quase colado a porta, sem muita coragem de avançar pela sala.Â
Em seguida Alexandre retirou os objetos separados de dentro da bolsa. Uma bacia de ágata, um punhal de pedra preta que Samuel nunca tinha visto antes, uma garrafa de água, fósforos, sal e um livro muito velho e estragado em vários pontos, com a capa feita de um material estranho e cujo tÃtulo já se fora com os anos de desgaste.Â
Alexandre fez sinal para que o filho se juntasse a ele. Samuel se sentou no chão com as pernas cruzadas sentindo o joelho reclamar um pouco.Â
—Você ainda não acredita em nada do que eu te falei, né?Â
—É que é tudo muito absurdo...Â
—Tudo bem. Só me promete que não vai começar a acreditar de uma hora para outra. Vou fazer uma coisa muito estupida e preciso de alguém racional por perto. Você vai servir como minha ancora, o que vai garantir que eu não seja arrastado para o lado de lá. Pode fazer isso?Â
—O que? O que o senhor vai fazer?Â
—Preciso conversar com sua tia. E eu estou morrendo de medo.Â
—Pai, não é bom brincar com essas coisas...Â
—Eu sei, pode apostar que eu sei, mas eu já fiz isso antes então acho que vai dar tudo certo. Preciso de respostas e só a Lydia pode me dar.Â
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Para o povo de Al Dahin, perturbar os mortos não era uma coisa muito bem-vista. Em todos os anos em que passou seu tempo livre na biblioteca nunca tinha encontrado um livro que fosse sobre a arte da necromancia. Seu povo não conversava com os mortos, a não ser nas noites de festa, quando aqueles que queriam podiam procurar seus entes queridos na fogueira verde eternamente acessa. Nesse caso havia um acordo entre os que eram e os que haviam deixado de ser.Â
 Ele mesmo nunca teve curiosidade de ver a fogueira até a morte de Sam. Passou a noite toda circulando o fogo, mas não a encontrou. Nunca a encontrou.Â
Havia outros povos, com outros costumes e crenças. O livro velho lhe chegou as mãos quando havia começado sua coleção, não era do povo antigo, ele tinha certeza, não sabia dizer de que povo era. Â
Uma espécie de manual ilustrado sobre como obrigar um espÃrito a vir até você, como selá-lo em um objeto, obrigá-lo a coisas que quando vivo não faria, dominá-lo.Â
Quem o usasse poderia ter apenas uma conversa ou tornar-se o mestre do espÃrito que surgisse, de qualquer modo causaria algum sofrimento. Esse sofrimento poderia ser para a alma convocada, para quem usava o livro ou dividido entre os dois. Â
Da primeira vez que foi feito, Lydia e André eram praticamente crianças. Estavam os três na faculdade e dividindo um apartamentinho perto do centro quando souberam da morte do padre Lucio. O homem já era idoso, sua partida era esperada, mas doeu nos três amigos como se o homem fosse mesmo pai deles. Â
Foi André quem teve a ideia de chamar o religioso de onde estivesse para conversar. Só queriam se despedir direito. O livro já estava por lá há algum tempo, já tinham brincado com a ideia, só não tinham motivos para seguir em frente.Â
Ideia lançada, os três amigos aceitaram. Tudo foi preparado. Trataram a coisa como um daqueles jogos de tabuleiro ouija, converse com seu anjo, essas coisas estavam bastante na moda naquele tempo.Â
Não pagaram o preço do sacrifÃcio, não sabiam o que isso significava. Viram o homem que os acolheu em diferentes épocas se contorcendo de dor e desespero. Uma das visões mais aterrorizantes com a qual passaram muito tempo tendo pesadelos. Pediram perdão e libertaram o velho amigo. Juraram nunca mais tocar no maldito livro que só não foi jogado fora porque poderia ser muito perigoso se ficasse por aà e agora Alexandre estava decidido a usar novamente.Â
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A preparação para chamar sua amiga era bastante simples.Â
Na bacia se colocava um litro de água pura.Â
O sal seria derramado dentro da água, serviria como condutor. Também seria bom que um cÃrculo de sal fosse feito em volta do portador do livro, impedindo que algo vindo das sombras invadisse o contrato.Â
E o motivo de Samuel estar ali.Â
O punhal de pedra vulcânica que Alexandre ganhou de Eros, seu professor, no dia da partida. O punhal que mantivera muito bem escondido todos esses anos e que só usava em ocasiões como essa. Â
Havia um preço a ser pago. Sangue por sangue, dor por dor, sofrimento por sofrimento.Â
Se o preço tivesse que ser dividido entre a alma convocada e seu buscador, algumas gotas de sangue seriam necessárias, um corte na palma da mão seria suficiente, mas Alexandre jamais imporia tal preço a Lydia, ele é quem deveria pagar por toda a dÃvida, já que era ele quem queria respostas.Â
Nesse caso, ele perderia um pouco de vida a cada segundo que passasse com a alma aprisionada. Â
Avisou o filho que devia manter a vela acesa e prestar atenção em seu aspecto, se percebesse que a situação estava chegando no limite, deveria arrancar sua mão de dentro da bacia sem romper o cÃrculo e levá-lo dali, de preferência ao hospital mais próximo. Não tinha a menor intenção de morrer ali sobre a mancha de sangue de Lydia. Confiava na frieza do filho para não se impressionar com o que veria e para não se esquecer de que tinha uma função ali.Â
A bacia foi preparada. O punhal foi erguido com a mão esquerda e se enterrou no pulso da mão direita, fazendo um talho na diagonal que chegava a dez centÃmetros por onde começou a escorrer um fio contÃnuo e grosso de sangue. Alexandre estremeceu e firmou o braço direito com seu esquerdo e se forçou a colocar o braço dentro da bacia, tingindo a água de vermelho vivo. O braço afundou até quase o cotovelo de forma impossÃvel na bacia rasa. Mal percebeu o corte arder por causa da água salgada, sentiu alguém segurar em sua mão e já não estava na sala destruÃda de Lydia.Â
O local, escuro e vazio que não era realmente um onde, poderia ser um quando, mas sem referência alguma era difÃcil definir.Â
A mão entrelaçada na sua era fria, pequena e um pouco áspera. O cheiro que sentia era um pouco adocicado. Lavanda, baunilha e melissa. O creme que Lydia usava desde que se tornara uma mulher adulta, nunca tinha trocado. O perfume suave e fresco de coisa limpa era quase uma assinatura. Aos poucos o contorno da amiga foi se definindo na escuridão.Â
O rosto aparecendo e se tornando solido, mesmo que translucido ainda. Bonito mesmo com o passar de anos. O cabelo solto como costumava usar na juventude, prateado em vez de acobreado, a cabeça encostada levemente em seu peito. Â
Alexandre se lembrou que por algum tempo achava que estava apaixonado por ela, nunca contou, não importava quando era só por um lado, sempre pensou que ela sabia de alguma forma. Não diria nada agora.Â
Sua mão foi apertada com firmeza, ele a segurou porque tudo dependia disso, se a soltasse a conexão estaria perdida e não teria outra chance. Â
A voz firme de professora apareceu por algumas notas, dando lugar a voz que usava com ele mesmo quando estava brava.Â
—Idiota! O que você fez? — A frase foi sumindo, quase um sussurro ao final, dito ao pé do ouvido. Estavam muito próximos, o fio de sangue que corria contÃnuo do corte no braço direito fazia uma espécie de laço em torno deles, mantendo-os unidos.Â
—Dói em você? Se for doloroso eu posso ir embora... tentei fazer do jeito que você não sentisse...Â
—Não dói nada! Mas não devia estar aqui.Â
—Eu sei, não deu para manter a promessa. Desculpa. Eu tinha que te ver...Â
—Não importa a promessa boba, só importa se você for longe demais e não conseguir voltar. É tão idiota que quer ficar aqui para sempre? Eu não vou ficar aqui para te fazer companhia...Â
—Sei. Você está bem? Sofreu muito?Â
—Para de perder tempo. Ale, me diz por que veio me ver desse jeito. Todo o resto você podia saber sozinho...Â
—Disseram que foi um assalto, mas o seu corpo estava igual ao da Samanta quando eu achei. Não achei você, só vi na cabeça de alguns policiais. Me conta o que aconteceu, por favor.Â
—Eu não sei direito. Quando cheguei em casa vi que as luzes não estavam acendendo. Achei que era uma queda geral, tranquei a porta e então ouvi alguém vindo da cozinha, achei que fosse o Samu, ele tem a chave de casa, sempre passa lá para entregar algumas coisas. Eu devia saber que não era, que eu não conhecia os passos. Quando me virei senti uma sensação estranha, como gelo seco parado sobre a pele e depois novamente. Não no mesmo lugar, mas bem perto. Depois... eu estava aqui, esperando minha vez de seguir. Desculpe não poder ajudar mais.Â
—Você já ajudou bastante. Não foi um assaltante que você assustou, a pessoa estava te esperando escondida. Viu quem era? Alguma marca, algo digno de ser lembrado?Â
—Já te disse, estava escuro. O cheiro de colônia pós barba ficou impregnado na casa, por isso achei que era o Samu, ele gosta dessas coisas, mas não era a que ele usa, era diferente, eu devia ter notado...Â
—Não! Você não devia precisar ser cuidadosa dentro da sua casa, devia ser seguro! Eu devia te proteger...parece que nunca estou no lugar em que devia quando as pessoas que amo precisam de mim...Â
—Nunca dependi da sua proteção. Ale, por que alguém ia querer uma professora velha morta? Para que se dar ao trabalho? Não consigo entender...Â
—Eu também não, Ly. É tudo muito estranho...Levaram uma foto minha com o André da sua casa. Tenho a sensação estranha de que a culpa é minha de você estar morta ... que isso foi para me atingir...Â
—Pode ser, você tinha dito coisa parecida quando foi a Samanta. Que acha que eles querem?Â
—Não tenho a menor ideia, só sinto isso, e acabo acreditando... acho que vou descobrir logo. Não se preocupe com isso agora.Â
—Não vou, estou ocupada preocupada com você e com quanto tempo ainda te resta se continuar aqui. Melhor você ir...Â
—Eu nunca mais vou te ver depois de hoje, deixa eu ficar só mais um pouco. A gente finge que ainda mora lá no centro, fica conversando até mais tarde. É sexta, ninguém tem que acordar cedo amanhã. Podemos ficar conversando até pegar no sono largados no sofá mesmo, que você acha?Â
—Que seria ótimo, mas se você dormir aqui, não vai conseguir mais acordar. Olha em volta, esse laço que nos cerca está cada vez com mais voltas, logo não vai sobrar muito, seu coração vai parar. Vá embora, Ale! Eu não quero saber que você está preso aqui. Eu não ia conseguir ficar em paz. Pode ir agora.Â
Alexandre a envolveu com o braço esquerdo, acariciou a cabeça repleta de fios longos e prateados que desciam a cintura. Tentou guardar na memória o rosto, os olhos verdes, Lydia como era agora e não como tinha visto na mente de outras pessoas, como sempre tinha sido. Â
—Eu vou. Só... Lydia... Obrigado!Â
—Pelo que?Â
—Existir na minha vida. Foi uma honra te conhecer!Â
—Digo o mesmo... até outra hora, meu amigo!Â
O toque da mão fria foi aos poucos desvanecendo, o perfume de flores e ervas sumindo. A escuridão foi se tornando menos intensa até se tornar o cinzento de seus olhos fechados e a voz do filho chamando por ele. Segundos depois sentiu que era sacudido e voltou a superfÃcie como quem emerge de um mergulho numa piscina funda.Â
Sentia frio. Estava zonzo e mal ouvia a princÃpio o que Samuel dizia. Então se lembrou do corte profundo no braço direito e entendeu a urgência que percebia na voz do filho. Â
Retirou o braço da bacia cuja água agora parecia preta e deixou que Samuel envolvesse em um pano de prato que havia achado na casa. Deixou que amarrasse apertado e que o guiasse para fora, pedisse ajuda para um vizinho que saia com o carro e o levando em seguida a um pronto socorro. Deu alguma sorte ao decidir levar Samuel consigo. O garoto agiu bem.Â
Conseguiu convencer o atendente da emergência a suturar a artéria rompida e o musculo lacerado sem perguntas, sem internação e sem registrar o caso. Bom saber que não tinha perdido o velho charme.Â
 A ficha foi feita utilizando o nome antigo. Carlos, o falsificador já tinha se comprometido em dar uma morte realista a Alexandre Viera, ninguém procuraria por ele, mas sempre valia a pena se precaver.Â
Quando saiu do hospital, tinha um curativo bem-feito sobre doze pontos ao longo do antebraço, estava tonto e bastante pálido, precisava de transfusão de sangue, mas se sentia bem o bastante para voltar para casa.Â
Ao chegar em casa, pediu mais uma vez que Samuel trancasse a porta. Não tinham conversado desde que a invocação de Lydia havia começado e não se sentia muito disposto no momento, mas ao entrar em seu quarto se deu conta de que Samuel o seguia, com olhos grandes e ansioso por algumas respostas.Â
Fez sinal para o filho fechar a porta, deixou que os olhos rolassem até o espelho ao lado da cama e encarou o homem enfraquecido e de aparência adoentada do reflexo. Deus! Precisava mesmo parar um pouco e se cuidar. Faria isso assim que pudesse, no momento só queria ficar um pouco só.Â
—Que foi?Â
—Pai, que houve na casa da tia?Â
—Eu me cortei, segui instruções de um livro idiota, falei com ela. Você acha que tive alucinações por causa do sangue perdido... Ah, obrigado por me socorrer.Â
—Não sei se eu acho isso...Â
—Começou a acreditar nas merdas que eu falo?Â
—Não sei. Mas foi estranho lá, acho que eu comecei a ver coisas... de repente era por causa do medo, não sei o que estou falando.Â
Alexandre ficou um pouco curioso com o que o filho dizia, nunca tinha ficado de fora para saber como era.Â
—O que você viu? Não vou dizer que você inventou se me contar.Â
—Tá. É que...  o sol era nossa única fonte de luz e quando o senhor começou só estavam a sua e a minha sombra na parede, bem definidas e contornadas, só que depois ... não sei dizer certo, mas parece que quando eu comecei a te chamar tinha um monte de gente na sala, só tinha a gente e mesmo assim tinha um monte de sombras nas paredes e eu comecei a ouvir coisas, como se a casa estivesse cheia, tipo uma festa sabe?Â
—É possÃvel que estivesse cheia mesmo... Obrigado por cuidar de mim lá. Samuel, se estiver tudo bem, para você, eu preciso pensar um pouco... Mais tarde temos que voltar lá, larguei as minhas coisas todas espalhadas. Pode me acompanhar de novo mais tarde ou amanhã? Não precisa entrar se não quiser...Â
—Acho que posso sim, se eu puder esperar na calçada...Â
—Obrigado, filho, fecha quando sair.Â