Sentado numa padaria recém-aberta, levemente consciente do cheiro de café fresco e pão assando e das vozes dos atendentes que iniciavam o dia já cansados, Alexandre encarava a mulher diante dele e se perguntava por que tinha se virado.Â
Mas pensando bem, quem não se viraria? Â
Quando ouviu a voz distante de seu caçula, de olhos fechados acabou de desencontrando do filho do meio. Deu alguns passos procurando por Samuel, sentindo olhos o seguindo e sem se dar conta de quem estava tão interessado assim nele.Â
Mais três passos e viu a mulher, a mesma do velório daquela manhã, loira num tom de dourado bonito, olhos azuis fixos nele. Destoando de toda a sujeira e cansaço com a vida que a praça exalava. Parecia uma aparição santa em seu vestido azul que Alexandre pensou ser caro, os sapatos elegantes e bem cuidados e o casaco num tom mais claro que o do vestido que parecia pouco para clima do fim da madrugada gelada.Â
Ela sorriu com algum calor quando percebeu que Alexandre tinha reparado nela, mas os olhos azuis eram gelados, ele percebeu algo que não tinha nome ainda e ela estava se esforçando bastante para esconder.Â
Alexandre desviou o olhar da mulher e procurou por Samuel novamente. Chegou a vê-lo vinte ou trinta metros à  frente, começou a caminhar apressado para alcançar o filho. Ela chamou por ele, dando alguns passos para se aproximar, os sapatos que usava não haviam sido feitos para marcha acelerada.Â
—Espera!... Eu preciso falar com você...Â
Ele a ignorou, não a conhecia e tinha mais o que fazer. Tudo nela gritava “Problemaâ€. Então ouviu algo que o fez parar e se virar. Quem não pararia ao ouvir seu nome?Â
E ali estava ele, sentado diante da mulher por um vacilo idiota que poderia ser evitado, esperando para saber o que o levou até ali, batendo os dedos na mesa porque que isso a desconcentrava. Fazia o sorriso cristalino e ensaiado estremecer um pouco. Manteve-se encarando e calado, até que ela decidisse falar.Â
Pouco depois de ouvir seu nome antigo, um sujeito imenso apareceu a seu lado e avisou que devia acompanhar a dama para conversarem em um lugar mais seguro. Alexandre não iria a canto algum, mas o gigante não esperou que anunciasse sua intenção de permanecer exatamente onde estava e declinar do convite da dama. Â
Avisou que sabiam que podia se virar muito bem e tinham se precavido. Ninguém tinha intenção ou mesmo permissão para fazer qualquer mal a ele, porém a ordem não se estendia ao rapaz do outro lado da praça. Aquela era uma região perigosa da cidade e era bastante comuns que viciados brigassem entre si.Â
Alexandre entendeu o recado. Olhou novamente para a “damaâ€, o sorriso adolescente se abrindo e fazendo os olhos brilharem. Ela estendeu a mão para ele e como não houve resposta tomou seu braço, apoiando-se nele durante a caminhada. O Golias careca se colocou as suas costas, observando de perto para que se comportasse como sua protegida merecia. Antes que entrassem na rua estreita e sumissem de vista, ainda lançou um olhar para o filho e esperou que ele ouvisse o pensamento.Â
Ele e a moça, sentados de frente um para o outro numa mesa ao canto. Suas mãos sobre a mesa, uma xÃcara de café que ela mandou trazer para ele intocada. O grandalhão tinha escolhido uma mesa um pouco afastada, de onde podia vê-los, mas não os ouvir. Â
Tentou ver o que havia na cabeça da mulher a sua frente. Nada! Havia uma barreira que poderia ser desmanchada, mas não nas condições que estava agora, exigiria tempo e concentração de que ele não podia dispor.Â
A moça estendeu a mão e a pousou sobre a dele, como uma namorada tÃmida iniciando uma aproximação. Alexandre não desviou os olhos do rosto dela. Não puxou sua mão. Esperou que ela se decidisse a falar o motivo de o ter levado ali.Â
—Desculpa! Eu estou um pouco nervosa...já faz muito tempo que espero para te encontrar...Queria ter preparado uma situação mais agradável, mas se eu não aproveitasse a oportunidade podia não ter outra.Â
Deu uma pausa, como não houve resposta, prosseguiu.Â
—Bom, eu entendo que você esteja um pouco aborrecido... esse convite não veio num bom momento, não é?Â
Alexandre sorriu, não era um sorriso de verdade, era carregado de um certo cinismo. A sobrancelha direita se ergueu.Â
—Convite sim. Você é meu convidado. O Bruno é um pouco grosseiro à s vezes e não gosta de me ver contrariada. Um pouco superprotetor..., mas eu avisei para ser educado com você.Â
Alexandre desviou o olhar do rosto dela por um momento, estavam próximos a uma vidraça, podia ver a rua e as pessoas que passavam apressadas. Voltou a encará-la.Â
—Seria educado me dizer o que eu estou fazendo aqui, não acha?Â
O sorriso murchou um pouco.Â
—Claro. Achei que você já soubesse... Estamos aqui porque fomos destinados um para o outro. Te chamei para você me conhecer um pouco melhor. Eu sei que vai ter muito tempo para isso quando nos casarmos, mas achei importante te dar a chance de saber a sorte grande que você teve. Enfim, é nosso primeiro encontro oficial!Â
—Moça, eu acho que você pegou o cara errado!Â
—Elohi, você não lembra mesmo de mim?Â
Ela baixou um pouco as pestanas, como quem se entristece, jogava com ele e a repetição do primeiro nome parecia calculada.Â
—Se der para parar de me achar assim, é favor viu, moça!Â
—É seu nome e eu gosto dele. Foi por ele que sempre te chamei e foi esse nome que você me disse quando nos conhecemos. É bom se acostumar pois é esse nome que vai usar agora.Â
—Moça, eu não te conheço! Nunca te vi até agora pouco...Â
—Viu sim, só não lembra! A gente já deveria estar junto a muito tempo. Eu te dei o que você mais precisava e sempre soube que você me ajudaria a ocupar o meu lugar. A hora chegou e você vai fazer sua parte, então se esforce para lembrar e não se preocupe, você não vai ser forçado a nada, vai querer fazer isso e vai me amar.Â
—Acho que não vai rolar, você não faz o meu tipo, desculpa!Â
—Minha aparência não te agrada?Â
—Nada contra, mas não me dou bem com gente maluca e a senhora parece dessas.Â
—Não te incomodou quando ficamos juntos, por que incomodaria agora?Â
—E ela insiste... Meu Deus!Â
—Foi numa festa do nosso povo, foi uma conexão de alma e você sabe...Â
—Tá, você pode ser mais especÃfica? Tive umas épocas bem agitadas quando ia para lá...Â
—Comigo foi especial, eu vi a sua alma e sei que você também enxergou a minha...Â
Alexandre deu um meio sorriso. Ela não estava tão errada nessa parte. Quase toda vez que tinha alguma intimidade com alguém isso acontecia. Era o momento em que ele baixava a guarda sem querer, para aproveitar tudo o que podia sem precisar ficar concentrado em se defender, muitas vezes a outra pessoa acabava vendo coisas sobre ele também, quando tirava a coleira de sua mente via o que não procurava e acabava mostrando mais do que queria. Â
—Moça, tenta entender. Não foi importante para mim. Agora se me der licença, eu tenho umas coisas importantes para fazer.Â
Alexandre começou a se levantar e foi quando algo mudou. O rosto da mulher ficou vermelho, os olhos um pouco úmidos e perdeu o controle do volume da voz.Â
—Mas você nem está me deixando te explicar...Â
O homem atrás do balcão deixou a pia onde trabalhava e se aproximou da ponta onde podia vê-los. Alexandre registrou que tinha muitas tatuagens, nos braços, pescoço e rosto e em especial uma na forma de um pássaro em voo no pulso, isolada das outras, como se merecesse destaque.Â
—Desculpe, eu tenho que ir...Â
Mal sentiu a mão enorme segurando em seu ombro. Nem notou Bruno se aproximar. Só a leve punção no pescoço, um segundo depois estava mergulhado na escuridão.Â