Bento tinha as palmas das mãos em carne viva de tanto pressionar as unhas contra a pele. Sentia o gosto metálico de sangue de mastigar a parte interna dos lábios junto com um sabor amargo e estranho que ele achava que lembrava casca de limão estragado. Os lábios estavam rachados e a lÃngua se colava ao céu da boca, por mais que procurasse não havia qualquer saliva. Não podia enxergar nada de concreto em volta além de um eterno acinzentado frio para onde quer que olhasse. Tinha entrado em um pesadelo e não sabia como sair. Os dias que tinha passado na rua tinham ensinado ao menos uma coisa, se queria se manter aquecido e pensando, tinha que continuar se movendo. Se parasse só pensaria merda.Â
A vida depois que os irmãos tinham saÃdo de casa tinha se tornado um verdadeiro tormento. O impulso de sair, mesmo tendo prometido que ficaria. Um monte de pensamentos intrusivos mandando ir, arrastando seus pés até a porta, apertando o peito, parecia que seria rasgado ao meio. DoÃa como o diabo!Â
Tinha tentado ficar ocupado, a voz intrusiva gritando com ele. Trabalhou duro cuidando das coisas em casa.Â
Tinham dito em uma das clÃnicas por onde passou obrigado que os pensamentos que não são seus só podem te dominar se você der espaço para eles. Não daria!Â
Que pena que o pai tinha confiado! Que pena que a casa não estava trancada! Que pena que não estava guardado no quarto com grades. Se estivesse não poderia sair. Não trairia a confiança depositada.Â
Quando o dia findou, achava que tinha passado. Tinha vencido! Â
Então o aperto no peito cresceu de tal maneira que tinha achado que ia morrer. Não conseguiu fazer parar. Teve que sair e caminhar até seus pés ficarem machucados e as pernas pesadas. Não tinha como ter certeza, achava que tinha andado por cinco ou seis horas no fim das quais estava no meio de uma floresta onde nunca tinha estado antes ao pé de um morro bastante Ãngreme.Â
Parecia que estava bem, as pernas ardiam e o lado o corpo tinha pontadas fortes que só passavam quando apertava. As roupas estavam molhadas de suor, mas ao menos a agonia e a sensação de que o arrastavam tinha diminuÃdo. Parou olhando em volta. Não reconheceu nada. Pela lógica, se virasse de costas e caminhasse em linha reta voltaria para a estrada que tinha percorrido e uma vez de volta a zona urbana poderia perguntar por aà para voltar para casa. Â
Mal deu dois passos e o corpo reagiu como se mãos invisÃveis o agarrassem e outras o surrassem a pauladas. Chegou a cair no chão sentindo uma fisgada na altura da coxa onde o jeans se rasgou e um fio de sangue muito fino surgiu. Obrigando a rastejar até de volta ao pé do morro, ralando as mãos e a barriga.Â
Quando conseguiu se recompor, ficou de pé. As lágrimas quentes rolaram de seu rosto, nem tanto pela dor, agora estava melhor, mas pela vergonha e raiva que sentia. Não conseguia firmar sua vontade nem sobre o que não podia ver. Os irmãos estavam certos, era muito fraco!Â
Ainda com o rosto molhado e sujo, começou a subir a encosta, agarrando nas raÃzes altas e densas. Perdendo o equilÃbrio, caindo e voltando a se erguer só para tropeçar um pouco mais adiante. Movendo-se muito lentamente, Arranhando e machucando a cada momento. Até que chegou ao alto.Â
Respirou algumas vezes. Usou o celular para enviar um vÃdeo seu para um número que desconhecia sem saber por que fazia isso. O dia já tinha amanhecido e diante dele só enxergava aquele maldito nevoeiro frio que parecia chamar por seu nome. Â
Deu o passo que não queria e mergulhou no cinzento. Tremendo de frio e cansaço. O blusão de lã estava tão esfarrapado e molhado que em vez de protegê-lo fazia deixá-lo mais desconfortável. Â
Já não sabia a quanto tempo estava andando depois de entrar no nevoeiro, mas sentia que não podia parar. Não podia parar! Â
As pernas avisavam que não poderiam continuar por muito tempo. Esperava estar próximo do lugar para onde tinha que ir, porque sentia que seu tempo em breve acabaria.Â