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A senhora de setenta e dois anos caminhava com a mesma firmeza que sempre tivera, a mesma energia forte e decidida, só as pernas que não queriam mais obedecer a sua determinação.Â
Vinha carregada de sacolas, nem se deu ao trabalho de dar bom dia. Atirou as bolsas de uma das mãos no peito de Alexandre, escutando um gemido do qual não sabia o motivo. Desajeitado, tentou alcançar as sacolas restantes com a mão direita e quase deixou que caÃssem. Lydia teve que auxiliá-lo.Â
Deixou tudo sobre a mesa da cozinha, seguido da amiga que já vestiu o avental e colocou água para ferver. Sentou-se, apreciando o espetáculo dos movimentos rápidos. Impressionante mesmo para quem já estava acostumado.Â
Ela colocou duas canecas fumegantes na mesa, a azul e a branca. Alexandre esperou qualquer indagação, qualquer pergunta, em vez disso recebeu um olhar irritado.Â
—Não funciono direito antes de tomar café. Nossa, você está horrÃvel, que fizeram contigo? Â
Quem olhasse de fora veria uma vovó e alguém que tinha idade para ser seu neto. A diferença entre eles era de mais de quarenta anos, Alexandre era o mais velho. Â
—Eu não dormi direito. Você está ótima.Â
—ExercÃcio, dieta e o fato de eu não ter feito a merda de me casar novamente depois que enviuvei. Ficou sabendo?Â
Ele balançou a cabeça. Â
—Eu ia te ver quando resolvesse as coisas aqui.Â
—Eu sei. Não dava para esperar mais, você vai passar os próximos dias bastante ocupado tentando retomar a vida, achei melhor vir logo. Senti sua falta, idiota!Â
—Qual dos dois?Â
—Eu desconfiei na hora que a vizinha ligou dizendo que a porta estava aberta e o alarme não tocou. Depois Diego me ligou. Aliás, cadê o Bentinho? Vai dizer que fugiu de novo?Â
—Eu tranquei a porta, Lydia. Não tinha como sair nem se quisesse... ele não vai fugir mais, vai ficar bem. Eu estou aqui agora!Â
—Queria ter essa fé que você tem... Espero que esteja certo. Posso dar uma olhada nele?Â
—Dormindo no meu quarto, se quiser vai lá.Â
Lydia se levantou e foi apressada. Alexandre ficou onde estava. Ela sumiu através da porta e ressurgiu pouco depois. O rosto intrigado.Â
—Cobriu o espelho?Â
Ele apenas balançou a cabeça fracamente.Â
—Por quê?Â
—Porque deve ser pecado em todas as religiões do mundo querer matar a própria mãe, então é melhor eu não olhar na cara dela por algum tempo, só até esquecer. Vai levar o que? Uns duzentos anos? Já passa.Â
Lydia riu alto, depois se controlou para não acordar Bento.Â
—Acho que você vai precisar daquela caixinha horrorosa, não é? Â
—Ficou com você?Â
—De jeito nenhum! Eu que não ia levar aquela coisa para dentro da minha casa. Está aqui, no fundo falso do seu armário.Â
—Por que você não abriu e usou o dinheiro de lá para manter a casa?Â
—Porque consigo me virar muito bem sozinha e o que usei aqui nunca me fez falta. E se pensar em falar de me pagar eu nunca mais falo com você.Â
—Eu não faria uma coisa dessas.Â
Se havia alguém no mundo que conhecia Alexandre bem, eram André e Lydia. Com a morte de seu melhor amigo, Lydia era a única pessoa além dos filhos por quem ele morreria.Â
Tinham se conhecido quando ela tinha quinze anos, André tinha dezesseis. Eles moravam no mesmo orfanato em que Alexandre tinha sido interno quando chegou ao mundo comum. O orfanato mantido pela igreja de padre Lucio.Â
Era voluntário lá na época. Passava quase o dia todo da maioria dos dias no lugar. Trabalhava desde a cozinha até o colégio. Tinha seus meios de ganhar dinheiro, sua casa e sua vida fora dos muros do orfanato, apenas não conseguia se desligar. A projeção de lugar onde guardava as memórias era o orfanato e não a casa de pedras brancas onde dormia quando estava no lugar onde nasceu. Talvez porque o orfanato foi o primeiro lugar onde se sentiu em casa.Â
 Na maioria das vezes ficava na parte administrativa e atuava como uma espécie de conselheiro para as crianças. Usava seus talentos para ajudá-las a fazer boas escolhas de futuro, Lydia era uma dessas crianças.Â
Era mais esperta que a maioria. Â
Enquanto esperava por uma visita a sala do conselheiro decidiu brincar um pouco com os porta-retratos sobre o armário baixo na lateral da mesa entulhada de papeis. Duas chamaram sua atenção e Lydia as reorganizou lado a lado. Quase a mesma foto, o Padre e o conselheiro em uma festa de Natal.Â
A curiosidade a levou a tirar as fotos de seus suportes, uma era de um ano antes. Ela se lembrava daquela festa, tinha sido um bom fim de ano, todos os internos ganharam algum presente doado pelos voluntários, ela ainda tinha a jaqueta com bordados que pediu na cartinha ao Papai Noel. Claro que era velha demais para aquelas coisas, mas o Padre estava tão empolgado e não lhe custava nada participar da brincadeira.Â
Na foto do ano anterior o conselheiro aparecia com calças sociais, camisa de tecido de risca grande demais para ele, mesmo sendo um homem grande, óculos de aros grossos e colete de lã, apesar de calor de dezembro. O padre a seu lado estava livre da batina. usava uma calça de brim marrom e uma camisa de botões e manga curta. Seu cabelo branco rareava e estava penteado para frente, tentando esconder as grandes entradas. As mãos tinham sinais de tempo. Ela conhecia bem essa imagem, encontrava com ela nos corredores todos os dias, tanto para um quanto para outro.Â
Atrás da foto estava anotado a data em que foi tirada.Â
A outro foto mostrava o conselheiro de jeans e camiseta cinza. Um tênis no pé completava a vestimenta, os óculos horrorosos não estavam lá, parecia feliz.Â
O padre é quem estava mais diferente, cabelos marrons que cobriam toda a cabeça em uma quantidade absurda. Uma pancinha sobressalente que desapareceu com os anos, provavelmente depois do primeiro infarto, quando o idoso tinha adotado sua rotina de exercÃcios e dieta, só se permitindo exagerar no Natal e no Dia dos Pais, quando muitos ex internos voltavam e faziam uma festa.Â
Colocou as duas fotos lado a lado e percebeu que o conselheiro só havia mudado seu jeito de vestir, pouco alterando em sua aparência. Era muito mais jovem do que parecia, ela mesma nunca tinha notado o quanto era engraçado, parecia um dos garotos do último ano usando roupas de seu avô.Â
Girou a foto mais antiga. Lydia estava surpresa o quanto o padre decaÃra em tão pouco tempo. Seriam o que? Cinco anos entre uma e outra?Â
A anotação dizia que a foto de trinta e dois anos antes, tempo suficiente para o Padre mudar. Não conseguia explicar para si mesma o conselheiro ainda ser o mesmo.Â
Quando ele chegou para dar seu sermão pelo fato de Lydia estar indo mal nas aulas ela tentou esconder as fotos e acabou deixando um dos porta-retratos cair. Justo o de vidro, que se espatifou no chão em um milhão de pedacinhos.Â
Lydia se apavorou um pouco. Alexandre só se preocupou em perguntar se ela estava bem, se tinha se cortado e a começar a catar os cacos para que ninguém se machucasse. Disse que estava tudo bem e quando terminou de arrumar as coisas e se certificou que nada havia restado no chão, disse que agora que ela sabia seu segredo, os dois tinham que conversar e encostou a porta.Â
A conversa durou quase três horas. Alexandre contou quem era, contou muito sobre sua vida até então. Perguntou sobre Lydia também, dizendo que uma amizade só poderia dar certo se um soubesse tanto quanto o outro a respeito do amigo e ela sabia de coisas sobre ele, deveria oferecer informações sobre si também.Â
Ela contou sobre o pai alcoólatra. A mãe que não aguentara e havia ido embora jurando que voltaria para buscá-la, sobre ter ido morar com a avó e sobre a morte da idosa querida que lhe ofereceu duas escolhas, voltar a viver com o pai que dizia que tinha mudado ou ir para o orfanato e lá estava ela, ia fazer um ano e o pai nunca tinha ido visitá-la.Â
Alexandre podia ter apagado dela a descoberta e a parte da conversa em que ele falou, como quem edita um vÃdeo e muda o rumo da conversa. Não foi o que ele fez. Confiou que ela faria um uso justo das informações que havia conquistado.Â
Lydia passou a visitá-lo sempre que podia, perguntava tudo o que precisava saber sobre o lugar tão estranho e sobre a sua vida lá. Aos poucos se tornaram bons amigos. Na mesma época André a convidou para fugir. Poderiam construir uma vida juntos bem longe dali.Â
Foi assim que Lydia o pegou pela mão e em minutos estavam os dois na sala do conselheiro conversando a respeito da fuga. Â
Quem procura a opinião de um adulto quando quer fugir? Obvio que o conselheiro não concordaria, denunciaria tentando impedir, se ela não queria era melhor dizer logo!  Â
Alexandre disse que poderiam ir se achavam que estavam prontos para o mundo, ele mesmo não os deteria. Apenas diria que pensassem bem pois poderiam aproveitar os dois ou três anos que ainda tinham com moradia e estudos gratuitos e em que não precisavam pagar por nada para se prepararem para essa vida futura que desejavam. Â
Estudar, se formar, conversar com o Padre Lucio para que pudessem ficar até o fim da faculdade e quando começassem sua vida evitariam um monte de dificuldades que vinham com a falta de preparo.Â
Depois disso os dois passaram a conversar com Alexandre sempre, demorou um tempo para que André percebesse o segredo de Alexandre. Â
Foi no ano em que Lydia faria o vestibular. Alexandre confessou que já tinha pensado em fazer algo do tipo, seguir estudando. Gostava dos livros, faziam lembrar de casa. A melhor coisa de casa era o acesso ilimitado a biblioteca, reservado aos membros do conselho e aos que estavam na linha de sucessão, mas poucas pessoas que podiam passavam tempo ali. Era para lá que ele fugia quando queria despistar treinamento a que seu guardião o submetia.Â
Dizia que aprendia melhor sozinho. Nem sempre dava certo, mas era o que repetia para si mesmo.Â
A ideia de inscrevê-lo na prova foi de Lydia, se passasse poderiam ser colegas. Por que não? Â
Alexandre não contou a ela que existiam outros impedimentos além de passar ou não na prova. Pelos documentos que carregava consigo tinha cinquenta e cinco anos, o nome da mãe estava ali como ele conhecia, o nome do pai não constava. Tinha um diploma da escola que datava de trinta e sete anos antes. Apesar de todos esses documentos serem verdadeiros pareciam falsos, ninguém acreditaria que eram reais por causa de sua aparência. Â
Aceitou porque seria divertido se testar e porque não queria decepcionar sua amiga.Â
Padre Lucio veio procurá-lo, Lydia tinha contado a novidade. Alexandre não estava tão empolgado quanto a garota, já tinha se conformado em passar o resto da vida ali, gostava da ideia. Ajudar as crianças, dar algumas aulas substitutivas quando algum dos professores tinha que se ausentar, parecia uma vida boa.Â
E tinha seu trabalho, de onde saia o dinheiro que usava para manter o apartamento pequeno ali perto e era a forma de pagar suas contas.Â
O trabalho que consistia em mexer na cabeça de pessoas. Às vezes procurando por segredos, à s vezes mudando opiniões. Já tinha trabalhado com polÃticos poderosos que precisavam controlar alguém, para pais de famÃlia desesperados cujos filhos estavam indo para o que consideravam mal caminho, com filhos que precisavam saber onde os pais guardavam os documentos e com tudo quanto é tipo de gente com todo tipo de necessidade.Â
Nunca se importava muito com as razões que levavam as pessoas a procurar seus serviços, cada um pensava que estava fazendo algo bom, quem era ele para julgar? Na verdade, para ele tanto fazia. O que tinha enraizado dentro de seu espÃrito eram as normas de conduta de casa. Proteja a Senhora, proteja a descendência, não deixe a terra secar infértil, use o que sabe para o bem de seu povo. O que passava disso era decisão particular de cada mente inquieta e nada tinha a ver com ele.Â
O padre lhe deu um cartão com um número de telefone, alguém que podia ajudar a resolver o problema que o afligia e que ele não falou a ninguém, mas o Padre sabia.Â
Um novo nome, uma nova data de nascimento e todos os papeis que precisasse.Â
Levou alguns dias para ligar. Pagou mais caro do que imaginava. Quase matou sua pequena reserva e em poucas semanas tinha um envelope pardo com uma vida nova em tamanhos diferentes de papel.Â
A comemoração fui ruidosa no dia que a lista de aprovados saiu. Ele entrou para o curso de história, Lydia escolheu letras. André já estava no segundo ano de engenharia. Os três tinham decidido morar juntos. O apartamento de Alexandre tinha um quarto extra, os dois poderiam ficar com ele, desde que respeitassem o silêncio e a porta trancada quando ele estivesse trabalhando.Â
Tinha tido alguns nomes desde então, mudava a cada tantos anos. Já tinha sido Daniel, Orlando, Matheus. Alexandre foi o nome que escolheu manter porque tinha sido o nome que dissera a Samanta quando a conheceu e o nome que os filhos conheciam. Já o mantinha a dois ciclos e não queria mudar agora.Â
Um gemido o despertou da lembrança.Â
Bento veio arrastando um cobertor com que se embrulhara, deixando apenas o rosto de fora, a manhã estava fresca, mas não era para tanto. Alexandre desconfiou que a parte ruim começaria logo. Deixou que Bento remexesse nas sacolas trazidas por Lydia, pegasse o que quisesse e que os ignorasse. Â
Primeiro fome e sonolência extrema, logo mais enjoo febre e dores. Queria que acontecesse logo e ao mesmo tempo quase cedia a tentação de fazer o menino dormir até o fim da fase realmente ruim, só não o fazia porque tudo na vida tem um preço e cada um tem que pagar sua cota. O pai não poderia sempre acertar as contas do filho, não era assim que devia funcionar.Â
—Que deu nele?Â
Lydia perguntou mais preocupada do que indignada com a falta de educação do afilhado.Â
—Bem-vinda ao maravilhoso espetáculo da desintoxicação, vai ficar muito mais feio antes de melhorar, mas quando melhorar vai ser definitivo.Â
—Como é que você pode ter tanta certeza? A gente já passou por tudo isso antes e ele sempre volta.Â
—Não dessa vez. Nem se ele quiser...Â
—Você fez, não foi? Cuidou disso do seu jeito?Â
—Acha que eu errei?Â
Lydia se calou por um momento, os olhos fixos nos olhos escuros do outro lado da mesa.Â
—Se fosse há algum tempo ou se fosse outra pessoa, eu diria que você não tinha direito de interferir, mas esse menino está sofrendo a tempo demais. Se fosse minha filha e eu pudesse fazer o que você faz, eu teria feito sem nenhum arrependimento.Â
—E cadê a Dani?Â
—Australia, com o marido, já tem uns cinco anos...Â
—Tão longe...Â
—Eu não sou tão codependente quanto você, meu velho. Deixa a menina viver a vida dela.Â
Alexandre concordou com um aceno. Pensou em se defender, em dizer qualquer coisa, deixou para lá. Ela estava certa.Â
Levantou-se e foi até o quarto. Sabia que Bento ainda estava acordado, era um bom momento para pegar a caixa de que precisava e ver o que podia fazer para reconstruir a vida.Â
Colocou a caixa sobre a mesa, ouvindo o que Lydia pensava sem que ela precisasse dizer. Tinha anos que nenhum dos dois abria aquela coisa. Costumava ficar na prateleira do escritório. Lydia a moveu para o canto escondido do armário, pensando nas crianças, sua menina e os dois mais novos de Alexandre. Â
Uma caixa de pedra cinza, decorada com um fio de cobre ao redor e na tampa, com ferragens que faziam dela um baú e uma fechadura muito pequena, onde uma chave com arabescos perdida a quase um século seria usada para fechar. A caixa permanecia destrancada pela falta da chave. Poderia trancá-la, mas sempre tinha pensado que se algo lhe acontecesse os amigos e os filhos poderiam precisar do conteúdo então deixava como estava.Â
Espalhou o conteúdo da caixa sobre a mesa.Â
Cartões presos a números de contas internacionais escritas a mão, com suas senhas e anotações precisas de como solicitar o saque, todos os RGs que tinha tido ao longo da vida presos em um elástico ressecado, guardados por nostalgia, não serviriam para nada. Pensava que os meninos poderiam querer saber quem ele tinha sido ao longo do tempo. Havia algum dinheiro, vinte anos antes era uma quantia considerável, agora não seria suficiente para passar seis meses sem aperto. O cartão do homem que fazia seus documentos quando precisava, o diário em que anotava coisas referentes ao trabalho e a arma com cabo de madeira clara que cismou que precisava anos antes, guardada carregada sempre e na qual ele fez inscrições no cano com as runas de seu povo. Era dessa coisa que Lydia tinha horror e por isso não se arriscava a abrir a caixa.Â
Lydia pegou o cartão do falsário e examinou com curiosidade por algum tempo. Insistia em não usar os óculos mesmo que a vista agora estivesse bastante prejudicada, então teve que afastar o cartão até que quase faltasse braço.Â
—Acha que ele ainda está vivo e se estiver que ainda faz essas coisas?Â
—Espero que esteja porque eu não tenho outra pessoa a quem recorrer para isso.Â
Novo gemido vindo do quarto. Ainda devia ser cedo, no entanto estava começando. Agora teria que cuidar do filho até que o corpo estivesse livre de toda sujeira que ele passara os últimos anos colocando para dentro do organismo. Deixou que Lydia reorganizasse a caixa e guardasse em seu lugar de origem, na prateleira atrás da mesa de trabalho. Depois de terminar o serviço, pegou sua bolsa e saiu sem se despedir. Seu velho amigo estaria ocupado e ela já havia visto aquela cena, não queria assistir desta vez. Pai e filho deviam lidar com aquilo sozinhos. Voltaria no dia seguinte para ver como andavam.Â
O andar firme, a cabeça erguida. Quase não percebendo nada em seu caminho. Não se deu conta do carro que a seguia e nem da mulher na laje da casa da frente.Â