Bento ficou algum tempo andando atrás do pai, trocando o peso entre um pé e outro, mãos agitadas, todo agitado. Alexandre sabia o que aquilo significava, escolheu não falar a respeito por enquanto. Arrumou a cozinha, colocou água para ferver e preparou café para os dois. Caneca azul e caneca vermelha sobre a mesa, como sempre tinha sido.Â
—Você tinha onde ficar hoje? Digo, se eu não tivesse aparecido.Â
O rapaz o encarou com os olhos azuis enormes por algum tempo, pesando o que deveria dizer. Com uma sacudida de ombros e desviando o olhar, Bentinho respondeu;Â
—Tem um amigo, à s vezes fico com ele...na casa dele. Ainda não tinha resolvido se ia para lá hoje ou se ia para outro lugar, mas prefiro ficar aqui com o senhor.Â
O amigo não era um amigo, era alguém que trocava hospedagem e outras coisas por favores que o filho não queria pensar a respeito se queria ou não prestar. Alexandre passou a mão sobre os lábios. As coisas seriam mais fáceis se não soubesse disso, se pudesse evitar. O filho nunca mais iria precisar fazer coisas que não queria para pagar por abrigo, pelo menos isso podia garantir.Â
—Eu também prefiro você aqui, pode ficar aqui sempre que quiser, ou até arrumar um lugar em que queira ficar. Quem tem cuidado das contas da casa? Você sabe?Â
—A minha tia, ela quem mantém a água e a luz ligada e tudo arrumado. Ela também não deixou o Diego vender essa casa, disse que se o senhor não fosse declarado morto a gente não podia vender, como a gente nunca teve coragem, a casa ficou vazia.Â
—Por que você não veio ficar aqui?Â
—Eu fiquei um tempo... daàos outros disseram que eu não podia mais ficar, porque... desculpa. Eu vendi umas coisas do senhor, por isso não posso mais ficar aqui, eu ia recuperar quando desse, ainda não deu. Eu sempre passo na loja para ver se as coisas ainda estão lá, eu vou pegar de volta...Â
O coração doÃa como se falasse ainda com a criança que tinha sido. A cabeça de seu caçula não estava no lugar certo. Quis consertar as coisas.Â
—Não precisa! As coisas que você vendeu, são só coisas. O espelho seria diferente, esse eu teria que pegar de volta, o resto são só coisas mesmo. Deixa para lá.Â
O filho bebeu tudo de uma vez e se serviu de mais. Tremia um pouco menos agora, e a agitação inicial diminuÃra um pouco.Â
Passou algum tempo encarando o pai por cima da caneca vermelha.Â
Perguntou antes de tomar o primeiro gole da caneca fumegante. Se Bento queria saber de coisas, agora tinha permissão para perguntar se quisesse.Â
—É que... esse lugar onde a vovó vive, por que o senhor saiu?Â
—Eu acho que não queria ter uma vida engessada ao que esperavam de mim, pautada nas coisas que eu sabia fazer e nas coisas que eu devia fazer, queria...queria tentar escolher meu próprio caminho, coisa de quem lê demais e acha que a vida não é só o que está vendo. Por isso eu quis sair. E você me conhece, se eu ponho uma ideia na cabeça, não consigo pensar em mais nada.Â
—É que o senhor disse que o padre que te ajudou te reconheceu...Â
—Verdade. Não fosse isso sei lá como teria sido, mais difÃcil com certeza.Â
—Mas como ele te reconheceu se o senhor tinha acabado de fugir?Â
—Ah, ficou com isso na cabeça desde aquela hora, né? —Bento sorriu e balançou a cabeça para cima e para baixo. —Muitos padres são aliados do lugar de onde venho. Hoje em dia bem menos, eles têm a função de espalhar as histórias sobre nós e de guiar os desesperados até nossas portas. O padre Lucio era um desses. Não teria como um aliado não reconhecer o herdeiro. Dei sorte.Â
—Essa coisa de herdeiro, quer dizer que o senhor é rico?Â
Alexandre riu e sentiu o abdome doer, tratou de respirar fundo e se conter.Â
—Quase isso, sua avó cumpre o papel de Senhora de Al Dahin, uma espécie de rainha que também é considerada uma deusa, nem tenta entender, eu nasci lá e não entendo direito até hoje. Eu sou filho dela e sou seu herdeiro.Â
—E a gente é herdeiro também? Somos seus filhos...Â
—Não... As coisas não funcionam assim de onde venho. Não é só de quem você é filho, sabe? Tem que saber fazer coisas para poder estar na linha de sucessão de Al Dahin. Tem que saber abrir as portas para cuidar das pessoas. Não é tão legal quanto parece.Â
—Bentinho, vai ter tempo para você saber tudo o que desejar, para fazer todas as perguntas que quiser, agora eu queria falar um pouco de você. Meu filho, o que você está fazendo com a sua vida?Â
Os olhos se arregalaram antes de se desviar, não estava esperando uma pergunta tão direta. Não sabia o que o pai esperava que respondesse então ficou calado, um súbito interesse pelo fundo da caneca onde seus olhos estavam grudados agora.Â
—Não perguntei para te envergonhar. Não é uma bronca nem crÃtica, só pergunta mesmo. Você está feliz com o modo como as coisas estão? Responde para o seu pai e olha para mim, por favor.Â
O olhar voltou ao rosto do pai. Uma vitória! Não queria que ele se sentisse acuado.  Entendia que não era fácilÂ
Houve uma sacudida tÃmida de cabeça e um sussurro quase inaudÃvel que Alexandre sabia que significava “acho que nãoâ€, mas não teria sido entendido por outra pessoa.Â
—Por que começou a usar essas coisas?Â
Subir e descer de ombros, ele não sabia pôr em palavras. Alexandre se inclinou um pouco, ficando mais perto do filho, tocando a mão que estava esquecida sobre a mesa enquanto a outra ainda segurava a caneca.Â
—O mundo era feio, você não sabia como reagir a ele. Teve dificuldades de se adaptar depois que eu sumi. Era criança demais, os mais velhos estavam lidando com suas próprias coisas e não conseguiram ver que você precisava de ajuda. Alguém ofereceu no último ano de escola, só porque você precisava relaxar, era um amigo, você gostava dele, quis impressionar. Aceitou para não parecer criança, mas era exatamente o que você era. Depois não conseguiu mais parar porque o mundo é menos feio e menos barulhento quando essa porcaria entra no seu sangue pelos seus pulmões. Você não é burro, sabe que isso está te matando, mas prefere o mundo quando usa.Â
Seu menino olhava assustado, perguntando sem palavras como ele sabia de tudo aquilo. Ninguém nunca tinha dito daquela maneira, aquela era a maneira resumida como ele dizia para si mesmo. Os outros diziam que ele não tinha vergonha, que tinha cabeça fraca e que não prestava.Â
Ele tinha prometido que nunca faria o que tinha garantido seu sustento nos primeiros tempos com seus filhos ou com qualquer um que amasse, mas que valia uma promessa feita tanto tempo antes se o resultado de sua omissão trouxesse sofrimento? Não lhe parecia tão errado agora, desde que Bento concordasse.Â
Tocou o rosto de Bento, o filho não recuou ao toque. Bom sinal! Deixou que o dedo descesse pela têmpora.Â
—Bento, você quer resolver esse problema? Eu posso te ajudar, mas só se você quiser se esquecer que usa essas coisas e só se realmente quiser nunca mais usar. A escolha é sua.Â
Novamente a resposta veio sem palavras. Já tinha tentado. Já tinha tentado a igreja, os remédios, até já tinha deixado que os irmãos o internassem em clÃnicas para viciados, parecia que ia resolver, mas não resolvia. De repente ele não era do tipo que conseguia parar e começar a vida novamente, de repente era muito fraco.Â
—Vai funcionar, só preciso de sua permissão, confia em mim.Â
Os olhos se fixaram nos olhos quase pretos do pai e houve um leve balançar de cabeça. Era tudo o que precisava. Levantou-se e guiou o filho menor pela mão até seu quarto. Sabia que Lydia havia mantido as coisas no lugar e muito do que precisava estava ali.Â
Bento apresentou certa resistência para cruzar o batente da porta do quarto do pai, eles não entravam ali, exceto se o pai convidasse e era sempre uma situação um pouco amedrontadora, como se mil olhos estivessem vigiando cada passo. Alexandre o encorajou e ele acabou respirando fundo e entrando.Â
—Deita ali. Faz quanto tempo que você não dorme direito? Essa vai ser uma noite de sono muito boa. Amanhã vai ser um dia bem difÃcil para você, por isso dorme, descansa. Eu vou ficar aqui com você.Â
Ele deixou os chinelos de lado. Deveria oferecer um banho para que se sentisse mais ele mesmo, tinha pressa no que precisava fazer e queria vê-lo livre o quanto antes, seu garotinho, tão inteiro quanto tinha deixado. Â
Que bom que conseguiu dormir pela manhã.Â
A noite seria árdua e o dia seguinte seria pior. Sabe Deus quando começaria a melhorar. Lidaria com uma coisa de cada vez. Seu trabalho começava quando Bentinho pegasse no sono, não que não pudesse ser feito com o filho acordado, só queria ter certeza de que estivesse seguro. Gente que dorme não se machuca na maior parte das vezes.Â
Ficou sentado na beira da cama até que a respiração do filho mudasse, viu os olhos se agitarem rápido e soube que o primeiro ciclo de sono profundo se iniciava. Era hora de trabalhar.Â