Confuso. DifÃcil de pensar.Â
 Alguma dor nos músculos, cabeça latejando e boca seca. Não reconheceu onde estava quando abriu os olhos. Um quarto com móveis em tons de creme, pareciam ter saÃdo diretamente da vitrine de uma loja, caros e sem nenhuma personalidade.Â
Tentou se mover e as pernas não responderam. Não estava contido, só não tinham acordado ainda. Não sabia o que o gorila tinha aplicado nele, só que era forte o bastante para derrubá-lo de verdade. Não registrou nenhum pensamento desde aquela hora.Â
Conseguiu se forçar a levantar, andando tropego, soube que a porta do quarto estaria aberta antes mesmo de alcançá-la. Quando tocou a maçaneta teve certeza.Â
A mulher estava sentada com os pés cruzados sobre o sofá, também creme. Tinha trocado o vestido azul por uma calça clara de tecido fluÃdo e uma camisa social branca. Aquela deveria ser sua roupa de ficar em casa.Â
Quando estacou apoiado no batente da porta e tentando fazer o mundo parar de girar, ela tirou os olhos do livro velho que estudava e o encarou séria. Parecia ter desistidos dos modos de adolescentes já que não tinham surtido qualquer efeito.Â
—Fiquei com medo de que não acordasse mais. Quer ajuda?Â
Alexandre tentou captar as intenções da mulher naquela frase, quem sabe passar da barreira e só agora percebia que na verdade não havia nada, nem o zumbido baixo constante desde a infância, nem os gritos sufocantes e nem mesmo um sussurro ou uma imagem de empatia. Nada! E era a primeira vez que isso acontecia ao longo de sua vida, não sabia se era um alÃvio ou se era assustador.Â
—É a droga que Bruno injetou em você, daqui a pouco passa e o barulho volta. Aproveita o momento. Vem, senta aqui. Você deve estar meio grogue ainda...Â
—E... você... me escuta?Â
—Não. Sou uma boa caçadora, mas não consegui. Eu bem que tentei... A barreira que você construiu é bem complicada. Imagino que sejam os anos de prática. Quando precisam se virar sozinhas as pessoas aprendem mais. Sério, por favor se senta aqui ou no chão ou onde você quiser... ou volta para a cama logo! Se você cair vai se machucar e ninguém aqui precisa de você ferido!Â
Alexandre pensou por um momento, como a distância entre voltar e avançar era a mesma e porque sua curiosidade tinha sido despertada decidiu que não arrancaria um pedaço seu ao sentar-se ao lado da mulher que parecia mais equilibrada agora, apesar do olhar estranho.Â
—Eu sou Diana. O nome que ganhei quando menina. Tive um monte, igual a você, mas esse é praticamente o único que interessa não é mesmo Elohi?Â
Não respondeu. A cabeça doÃa como o diabo!Â
—Eu achei que podia te convencer, o Bruno é um pouco mais prático que eu. Vai piorar antes de ficar melhor...Talvez meu amigo tenha exagerado um pouco.Â
O exagero de Bruno até que tinha sido muito bem calculado, tinha quase certeza de que o homem que provavelmente estava em algum canto da casa o queria morto e se ainda não estava era por força da vontade de Diana.Â
—Eu realmente preciso ir...Â
—É, eu sei. A porta está aberta, imagino que você já saiba e sei que não importaria muito. Quando você estiver bem, pode ir se quiser. Por enquanto podemos conversar e, se você não se importar, eu gostaria de te contar o que eu estava tentando te fazer entender na lanchonete...Â
—Claro que tem, se quiser ir embora agora, vai. Mas você não perde nada em me ouvir.Â
Alexandre concordou com a cabeça e se arrependeu no mesmo momento. Aquilo era pior que ressaca de vinho barato.Â
—Tenta inclinar a cabeça para trás. Eu vou fechar a cortina e diminuir a luz. Imagino o quanto você esteja sofrendo.Â
Se a intenção dela com o gesto era fazer com que se apaixonasse, naquele momento ficou bem próximo da adoração religiosa. Abençoada seja essa mulher sem um pingo de juÃzo que tinha feito a dor reduzir, mesmo sendo ela mesma a causadora.Â
—Comecei mal com você. Esqueci por um momento de que você não tem qualquer obrigação de saber sobre nosso destino se não estava conosco durante todo o caminho até aqui. Vamos começar do inÃcio, se quiser me interromper, por favor seja educado... não estou no meu melhor dia hoje. Tudo bem para você?Â
Alexandre soltou um suspiro e fez um joinha, tentando não mover nada além dos ombros. Estava de olhos fechados agora porque o teto branco tinha começado a ganhar espirais e tinha a sensação de que se continuasse olhando acabaria vomitando. Jesus, Essa merda de ressaca não passava logo para que pudesse encontrar Bento!Â
—Então tá. Eu sei que te assustei um pouco com toda aquela conversa sobre destino, juntos para sempre e tal...Acho que se alguém chegasse em mim com esse mesmo papo eu também ficaria na defensiva. Só que tem anos que eu sei disso e você está descobrindo agora, e acredite, se tivesse outro jeito, você não seria minha primeira escolha. Levei um bom tempo para aceitar e um pouco mais para te amar então acho justo se você precisar de um tempinho. A gente só não tem muito tempo por causa do seu sumiço.Â
—Diana, não é assim que as coisas funcionam...Â
—Eu sei, no entanto à s vezes as coisas funcionam como devem e isso é um dever. Destino! E você não pode ser um desses românticos que esperam que todo amor seja uma paixão avassaladora e única. Há amores que se constroem, vêm com a necessidade, o convÃvio e ligações superiores. Â
—Por que você acha que a gente tem uma ligação? Mesmo que tenha acontecido alguma coisa no passado, isso não liga pessoas eternamente. E se ligasse, você diz que foi a algum tempo, porque não me procurou antes, tipo uma pessoa normal, não uma psicopata, sabe?Â
Diana sorriu, talvez o primeiro sorriso verdadeiro que dava a ele e que não foi visto por seus olhos estarem fechados.Â
—Deixa eu ver... Quando eu tentei, meu lugar estava ocupado. Quando desocupou você estava sofrendo tanto que ninguém conseguiria se aproximar de você, completamente fechado! Quando começou a se abrir, desapareceu e eu perdi minha chance novamente. Agora não posso mais esperar.Â
—Você cismou mesmo comigo...Â
—Claro. Já disse que estamos ligados desde antes de nascermos! Antes de você existir eu só ouvia falar de você. Chegava a ter ciúmes. Quando cheguei a vida adulta comecei a perceber que não existia uma competição. Nós dois somos necessários para fazer cumprir nosso destino. Quando vi você em Al Dahim tive certeza. Â
—Que destino? Por que cada pessoa que eu conheço na vida quer me atribuir um destino em vez de só me deixar viver?Â
—Não quero te impor nada, acho que você é que vai escolher fazer parte disso. O que te dizem que é seu destino?Â
—Voltar para casa, me tornar o próximo Senhor. Levar o resto dos meus dias por trás da névoa, renunciar a qualquer desejo pessoal por força das tradições, produzir herdeiros, nunca mais ver meus filhos!Â
Alexandre não sabia por que tinha respondido à pergunta. Os pensamentos a esse respeito nunca tinham sido colocados em palavras e não foi ruim ouvir sua voz expressá-los.Â
—Eu não me sentia em casa lá. Fugi achando que poderia me sentir em casa aqui. Fiquei porque encontrei motivos. Não me importaria tanto agora se não fosse minha famÃlia.Â
—Cheguei a essa conclusão um bocado de tempo antes de você existir. Tantos de nós, filhos de estrangeiros, de degredados... não encontramos lugar nesse mundo porque estamos ligados ao nosso e lá não nos aceitam... Me diz, se você pudesse ter certeza de que seus filhos poderiam ir te ver quando bem quisessem, você veria seus netos e bisnetos e os que viessem depois até o fim dos seus dias e não houvesse uma imposição de perÃodo certo ou uma tarefa praticamente impossÃvel para que eles pudessem te ver, o destino para o qual você foi preparado desde antes de nascer pareceria mais justo?Â
Mesmo com a dor de cabeça, inclinou o corpo para frente e se virou de lado para encará-la, parecia uma manipulação leve, mas para que negar que já tinha passado por sua cabeça?Â
—Eu já ficaria feliz se eles não fossem excluÃdos por não terem nenhum dom. Nunca consegui entender isso de alguém só ter valor se nasceu com determinado talento ou de alguém importante. Ninguém tem uma oportunidade de mostrar as coisas em que é bom se essa coisa não for listada num livro velho...Â
—Sim. Já percebeu? Os anciãos não conseguem e já era hora de mudar. As crianças que são mandadas para cá deveriam ter uma oportunidade de encontrar seu lugar e as que ficam lá deveriam ser valorizadas, mesmo que precisassem vir para cá para encontrar seu lugar, como você fez.Â
—É, não podemos nem pensar nisso porque há a barreira. Â
O silêncio se adensou entre eles. As coisas paravam de rodar, a dor de cabeça diminuÃa um pouco. Estava agora sentado de lado no sofá, Diana ocupava a outra extremidade e estava quase na mesma posição. O porta retrato no aparador chamou sua atenção e ele o apanhou. A moldura ele nunca tinha visto antes, mas a imagem na fotografia o fez sorrir sem querer. Tinha várias parecidas em casa. O entendimento fez o sorriso sumir aos poucos.Â
—Diana, por que tem uma foto do meu filho aqui?Â
Diana tomou a moldura delicadamente das mãos de Alexandre. Encarando a imagem do bebê por um instante antes de recolocá-la no aparador.Â
—Só um dos sacrifÃcios que fiz por você. Por isso digo que você vai me amar, e quando se tornar um rei para todos eu vou reinar ao seu lado. Nosso filho, querido. Esse é o nosso filho.Â
Alexandre desviou o olhar dela. Não entendia nada. Do que ela estaria falando?Â
—Eu não sei o que você pensa sobre isso, mas meu caçula foi adotado quando era bebê. Ele não é meu filho de sangue, nem seu! A mulher que colocou ele no mundo está morta e...Â
—Não mesmo! Eu te disse que tinham roubado meu lugar quando eu tornei a te procurar, grávida, achei melhor que ele ficasse com você. Vantagem dupla, você se apegava a pessoa maravilhosa que fizemos juntos e ninguém poderia usar ele contra mim. Até agora eu sempre tive que ser objetiva com as minhas coisas. Uma criança aqui me tornaria um alvo. Nem todos os pássaros sem ninho concordam com meus métodos. Muitos prefeririam uma abordagem mais agressiva onde você seria apenas uma peça obrigatória, nosso filho aqui poderia ser usado para me manipular, talvez já estivesse morto... melhor que passasse um tempo com você.Â
—Ele é filho da melhor amiga da minha esposa...Â
—Nossa, Elohi! Para alguém com seus talentos, você é um pouco lento, não é? O que teria sido de você se não fosse um caçador, ingênuo desse jeito? Â
Não foi uma explosão, parecia mais uma professora cansada de tentar explicar uma matéria que a criança não conseguia entender. Como Alexandre não disse nada, ela quis deixar tudo muito claro para encerrar o assunto.Â
—Eu plantei as memórias sobre a amiga deprimida na casa mental da sua ex esposa. Criei nela o amor e o desejo de ficar com o menino, nem precisei me aprofundar muito. Ela parecia boa gente. Por mim teria feito você amar seu filho mais que tudo, mas eu não conseguiria te obrigar a nada e não seria necessário, você gostou dele desde o inÃcio. Acho até que lá no fundo já sabia...Â
Alexandre deixou de encará-la, a tontura ainda dominava e tinha que lidar com a informação que de algum jeito sabia ser verdadeira.Â
—Não sabia... não faz diferença! Ele é meu filho, sempre foi, tanto quanto os outros...Por isso tenho que sair daqui e procurar por ele. Sabe Deus como esse garoto está...Â
—Ele está ótimo, não tem por que se preocupar!... Quer dizer, pelo menos por enquanto...Â
Alexandre achou que já conseguiria seguir seu caminho, cansado da conversa e de perder tempo, nem tinha dado atenção aquela última parte. Levantou-se. A cabeça ainda doÃa, já não era tanto e o estomago parecia mais conformado. O zumbido de sempre na cabeça estava fraco, mas existia.Â
Subiu as mangas do moletom e não viu o curativo.Â
 Os pontos tinham sido substituÃdos por uma linha esbranquiçada muito fina, quase não dava para notar.Â
Instintivamente desceu a mão para a ferida purulenta no abdômen. Não doÃa mais. Ergueu a blusa e a camiseta, encontrando uma marca que parecia mais uma aranha esmagada com mais pernas do que deveria ter.Â
—Eu não tive tempo suficiente para fazer um trabalho melhor. Você vai ter que aprender a conviver com essa marca...Â
—Caçadora e curandeira? Que mais?Â
—Mais nada. Pelo menos no que diz respeito aos dons de Al Dahin.Â
Não havia ironia no agradecimento, aquele era um problema que poderia matá-lo e que ele não poderia resolver sozinho.Â
—Não agradeça. Era o mÃnimo que eu podia fazer, já que isso aàmeio que é responsabilidade minha.Â
—Não era para você! Era para o velho protetor da Senhora. Se vamos te colocar em seu lugar precisamos que a Rainha colabore. O protetor seria uma pedra no caminho... Enfim, ninguém imaginava que você fosse bancar o herói e se jogar na frente da lâmina. Esse erro me atrasou tanto... se o enviado não estivesse morto uma hora dessas eu mesma cuidaria disso!Â
—Você é ...! Eu vou indo. Foi bom te conhecer, espero não precisar te ver nunca mais! Ah, esquece meu filho, entendeu?Â
Diana pareceu não dar muita atenção ao que ouvia, como alguém com anos de relacionamento com um sujeito impulsivo que teve que aprender a lidar com o mal gênio do companheiro, sabendo quando calar e quando falar. Em vez de responder se entreteve com uma mensagem que havia chegado em seu celular.Â
Alexandre seguiu em direção da porta com os passos mais firmes que conseguia dar. Ao encostar na maçaneta, Diana se levantou do sofá e foi até ele com o aparelho na mão.Â
—Pode ir se quiser, eu não iria...Pode ser que nunca mais veja nosso filho se sair daqui assim!Â
Diana estendeu o braço, colocando o celular diante dele reproduzindo um vÃdeo. Um Bentinho em meio a névoa. Ela não precisava dizer nada, Alexandre sabia onde o filho estava.Â