CAPÍTULO SEIS
Para
trás ficou aquela casinha solitária no meio do mato, com as suas portas
fechadas, seu terreiro e seus chiqueiros vazios. Apenas as flores silvestres
que Maria apanhava para perfumar a casa, iriam crescer. Com o passar do tempo
aquele casebre seria invadido por calangos, cobras, morcegos e corujas.
Depois
de vários dias de caminhada pela estrada, esbaforidos, com os pés inchados,
avistaram umas luzes piscando adiante e animaram-se, porque aquele brilho anunciava
que estavam chegando a uma cidade, depois de terem passado por vários povoados.
Esqueceram as dores e os calos e saíram correndo até não aguentarem mais, pois
as luzes brilhantes cada vez mais ficavam distantes. Cansados pelo esforço
despendido, caíram no acostamento, esperando o jumento que vinha logo atrás, a
passos lentos. Quando o jegue finalmente chegou, todos se levantaram e
continuaram caminhando no sentido das luzes. Chegaram à entrada da cidade, e ficaram
indecisos naquele trevo de três vias. Seguidos por Severino, escolheram uma
entrada e desceram para a cidade.
Enquanto
desciam, as pessoas olhavam indiferentes para eles, vendo-os como mais alguns mendigos
que invadiam a cidade. Continuaram descendo e chegaram ao centro de Delmiro
Gouveia.
Idalina
não sabia o endereço de seus parentes, deste modo, ficou difícil encontrá-los,
pois também não se lembrava de nenhum nome. Instalaram-se na praça e depois que
o dinheiro se acabou, foram pedir esmolas pelas ruas. Isso depois de terem
vendido o jumento. Enquanto pediam, o cãozinho Piaba morreu atropelado na
avenida e Severino certo dia saiu para procurar emprego e quando voltou à praça,
Idalina e Nicodemos haviam sumido.
Severino
passou muito tempo desaparecido, procurando emprego. Nas portas onde bateu, sempre
ouviu um "não." De tanta negativa, desistiu de procurar trabalho.
Perambulando
pelas ruas, sem voltar à praça onde deixara sua mãe e seu irmão, perdeu-se ao
acompanhar um bando de meninos de rua, que do outro lado da cidade viviam
fazendo pequenos furtos para custear mais drogas para satisfazê-los. Foram
várias semanas nessa convivência equivocada.
Quando fugiu daquele antro e
procurou o caminho da praça, já era tarde demais. No lugar em que deixara a mãe
e o irmão, encontrou apenas marcas ao redor de um banco — vestígios de um
acampamento há pouco abandonado. Sentou-se na grama e, assim como Jó, amaldiçoou
o dia em que fora concebido.
Enquanto
Severino estava sumido, Idalina e o pequeno Nicodemos passavam fome naquela
praça. Ela não suportando mais ver o seu filho dormindo sobre o piso da calçada
fria, com as mãozinhas servindo de travesseiro, encolhido em um cantinho sem um
cobertor e ao acordar com fome não ter nem água para beber, tomou uma decisão
que iria para sempre resolver aquela situação.
Segurou
o pequeno Nicodemos pela mão e saíram caminhando vagarosamente em direção ao
rio São Francisco. Era uma longa caminhada até a ponte, mas conseguiram chegar
lá. Ficaram no parapeito da ponte, olhando o rio a descer, caudaloso, para um
lugar distante e sumir-se por entre o desfiladeiro.
Naquele
mundo sobre a ponte nada mais existia para Idalina, nem tampouco para
Nicodemos. Colocando-o nos braços, subiu na balaustrada da ponte, olhou ao seu
redor e fechou os olhos. Naquele momento levou consigo toda aquela infelicidade
que invadira a sua casinha de taipa naquele distante sítio em Itaíba.
Era
uma tarde bonita, ensolarada, que acompanhava àqueles dois corpos voando de
ponte abaixo, até serem abraçados pela correnteza, engolidos pelas águas
escuras do majestoso Rio São Francisco.
Severino
encontrava-se sozinho na praça principal de Delmiro Gouveia, sentado no
meio-fio, enquanto uma procissão saía da igreja catedral. Comemorava-se a festa
de Nossa Senhora do Rosário, padroeira da cidade.
Era
uma noite morna e estrelada.
Foi
nessa festa da padroeira que Severino viu aquela multidão caminhando
lentamente, segurando numa das mãos velas acesas dentro de metade de uma
vasilha plástica, alumiando àquelas ruas enfeitadas com bandeirolas multicores.
O povo seguia o andor, cantando:
Maria,
ó Maria!
Nós
te damos, nosso amor!
Maria,
ó Maria!
Nós
te damos, nosso amor!
A
cidade estava em festa. No centro e nas ruas adjacentes havia muitas barracas
enfileiradas lado a lado. Vendia-se de tudo naquela festa: bolo de milho, bolo de
macaxeira, bolo de mandioca, rapadura, cocada, confeito, suco de várias cores, caldo
de cana com pão doce, cachaça pura e também envelhecida com raízes, com rabo de
calango e até com pequenos escorpiões.
O
povo espremia-se pelas ruas, subindo e descendo. Nessa festa não podia deixar
de ter um parque de diversão, montado bem na praça da catedral, com carrossel,
roda-gigante e gangorras de canoas de madeira. As barracas de jogos eram
concorridas, principalmente as roletas. Havia também as barracas com pescaria,
onde o povo tentava pescar maços de cigarros e ursos de pelúcia. Havia barraquinhas
de tiro ao alvo, com espingardas que atiravam rolhas de cortiça para derrubar brindes
a dez metros. Outro lugar também concorrido era a barraca de som. As pessoas
formavam filas imensas, com o dinheiro numa mão e um pedaço de papel na outra,
com uma dedicatória endereçada a alguém que poderia estar na festa, ou não. O locutor
da difusora, já quase rouco, lia aqueles bilhetes pagos, quase todos molhados
de suor devido ao tempo que a pessoa ficava na fila com o recado embrulhado na
mão.
— De alguém que não quer se identificar, para alguém usando
um vestido encarnado, vai esta canção!
A
difusora começava a tocar um vinil com uma melodia de amor.
Nos
becos de rua, mal iluminados, além dos casais que namoravam, algumas pessoas
tentavam a sorte no carteado e outras com jogos de dados na calçada, com as
apostas sob um tijolo.
A
festa da padroeira varava a noite.
Quando
as ruas iam se afrouxando e poucas pessoas circulavam, quando todos os brinquedos
do parque estavam parados, na calçada da igreja muita gente dormia ao relento,
umas deitadas e outras sentadas nos degraus, cochilando. A maioria ficava ali
esperando o dia clarear para não perder a primeira missa.
Dentro
da igreja também havia muita gente dormindo sobre os bancos. Era o povo dos
sítios vizinhos que vinha para a festa. Assim a cidade de Delmiro Gouveia
homenageava a sua padroeira, Nossa Senhora do Rosário.
No
dia seguinte depois da missa, a multidão descia de rua abaixo cantando e
acompanhando o andor. Severino ainda estava na calçada, dormira ali e acordara
com o barulho do povo passando. Naquele momento sentiu um aperto no peito e
lembrou-se de sua irmã.
Levantou-se,
correu e meteu-se no meio daquela multidão que cantava seguindo o andor de
Nossa Senhora do Rosário. Depois desse dia ninguém nunca mais ouviu falar de
Severino. Evaporou-se.
Comenta-se
na cidade que Severino ao tocar o andor foi puxado por Nossa Senhora e levado
para o céu. Ainda hoje os mais crentes comentam em Delmiro Gouveia que aquele
rapaz foi realmente levado por Nossa Senhora do Rosário. Dizem até que o viram num
redemoinho levantando-se ao lado do andor e subindo rodopiando junto com um
monte de papel e poeira que também subia em espiral.
Foi
subindo, cabelos levantados e agitados pelo vento, roupas esvoaçando-se no
espaço e seu corpo sumindo até penetrar na barriga do céu.
A
procissão continuava caminhando pelas ruas da cidade, com o povo cheio de amor
no peito e muita esperança de dias melhores, cantando:
Maria,
ó Maria!
Nós
te damos, nosso amor!
Maria,
ó Maria!
Nós
te damos, nosso amor!
Maria,
ó Maria!
Nós
te damos, nosso amor!
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