CAPÍTULO QUATRO
Após a morte do coronel Apolônio, não demorou muito tempo para que a doença de Maria se manifestasse violentamente. Primeiro surgiu-lhe uma gripe que resistia a todo tipo de comprimido e de vitaminas, acompanhada de alguns surtos de febre que se ia agravando. O seu corpo começou a desmoronar e a cada dia ficava mais debilitado. A gripe virou febre, a febre não ia embora, o catarro começou a acumular-se no peito, chegando a misturar-se com sangue e saírem juntos de vez em quando nas suas escarradas. Depois ela começou a sentir suores noturnos, ínguas e tosse seca, em seguida começaram a aparecer sapinhos na boca e diarreia prolongada. Foi desenganada na primeira visita que fizera ao Posto de Saúde.
Convicta de que o seu fim estava próximo, entregou-se totalmente à bebida, esquecendo nesses momentos o mal que aos poucos estava matando-a. Além deste, entregara-se à doença do alcoolismo. Agora não mais se satisfazia com o litro de bebida que dona Bia presenteava-lhe todos os dias, precisava intoxicar-se de álcool para conseguir dormir.
Antes de o dia amanhecer, depois de esvaziar o litro trazido para o quarto, ela saía cambaleando e tossindo até o bar, pegava outro litro e voltava apoiando-se nas paredes, para esvaziar mais um litro. Muitas vezes adormecia no chão de seu quarto sobre o litro ainda pela metade.
Durante toda a noite tossia em demasia, cuspindo sangue na bacia que já não tinha utilidade naquele quarto. Numa dessas noites, já debilitada tentou ir até o bar do cabaré; todo mundo ainda dormia e na rua o silêncio dominava. Arrastando-se pelo corredor, segurando-se nas paredes, chegou até o bar, pegou um litro de uma bebida qualquer, um copo sobre o balcão, e sem forças para voltar ao quarto, sentou-se ali mesmo e começou a beber. Depois de várias doses, caiu sobre o litro e o copo, desfalecendo no chão frio do bar.
No dia seguinte, no começo da tarde, quando as meninas acordaram, foram para o banheiro, depois fizeram o desjejum e encontraram dona Bia que acordara mais cedo, e perguntaram quase todas ao mesmo tempo, se Maria estava melhor, porque ouviram durante a noite ela tossindo sem parar.
Dona Bia não sabia o que responder, ficou confusa, e num ímpeto correu para o quarto de Maria, seguida pelas meninas. Bateu na porta, depois bateu com mais força e nenhuma resposta. Elas entreolharam-se e resolveram derrubar a porta. Recuaram até a parede em frente ao quarto, e juntas jogaram-se sobre a porta, caindo todas dentro daquele quarto.
Levantaram-se, e frustradas retornaram para o corredor, porque o quarto de Maria estava vazio. Ali mesmo no corredor elas comentaram o que poderia ter acontecido.
— Maria havia deixado o cabaré enquanto elas dormiam — pensava Dona Bia.
A matrona coçava a cabeça e olhando para o corredor não acreditava que depois de tudo que fizera por Maria, depois de acolhê-la em sua casa, ela pudesse sumir assim, sem dar ao menos uma satisfação.
Enquanto matutava sobre a situação, dona Bia atentou para um detalhe: Quando derrubaram a porta do quarto, todas as suas coisas ainda estavam lá. Roupas em cima da cama, sandálias espalhadas, e o guarda-roupa aberto com todas as suas peças penduradas nos cabides. Dona Bia não estava convencida de que Maria havia fugido. A sua convicção era de que a alcoólatra estava em algum lugar dentro daquela casa. De repente, sem que houvesse uma combinação prévia, todas se espalharam dentro da casa à procura de Maria.
Rita foi a primeira a chegar ao bar e logo na entrada deparou-se com Maria estendida no chão, inerte, com os olhos arregalados e sem vida, cravados no telhado. Um filete de sangue, já coagulado, havia escorrido pelo canto de sua boca, marcando-a com uma mancha escarlate que descia até o pescoço. Foi o que assustou Rita naquele primeiro momento.
— Meu Deus! Que cachaça danada foi essa...
Em seguida ajoelhou-se, sacudiu o corpo de Maria de um lado para o outro, mas não vendo nenhuma reação, aproximou-se do corpo e foi nesse momento que percebeu o sangue coagulado que havia escorrido da boca de Maria.
— Santa Maria! — assustou-se Rita, colocando as mãos na boca.
Olhou novamente para o rosto de Maria, fixou seu olhar naqueles olhos arregalados, sem vida, petrificados, e assustada, recuou. Depois colocou o ouvido sobre o nariz dela, esperando sentir a sua respiração. Esperou e nenhum sinal de vida. Em seguida, mas com muita cautela, colocou os dedos sobre os olhos da morta e fechou-os. Feito isso, afastou-se até a porta e, ao vislumbrar o corredor à sua frente, saiu correndo para dentro de casa, gritando:
— Dona Bia! Solange! Mariná! Corram aqui!
Rita ficou tão desnorteada que foi parar na porta da cozinha, sentando-se no chão e chorando copiosamente. Foi nesse estado que dona Bia, Solange, Lindalva, Índia e Mariná a encontraram, depois de muito procurarem por Maria nos quartos, nos banheiros, no quintal, e... Dona Bia tomou à dianteira e vociferou:
— Que porra é essa, menina? Tem alma do outro mundo aqui dentro?
Enquanto dona Bia esbravejava, Solange e Mariná, por trás da matrona, limpavam as remelas dos olhos. Índia e Lindalva apreensivas, mas dona Bia continuava interpelando Rita.
— Fala logo o que aconteceu, mulher! O que foi que tu viste para ficar desse jeito? Deixa de frescura e fala logo!
Rita, entre soluços, apontava para o corredor na direção do bar.
— Calma Bia, quando ela se acalmar vai falar. — Solange tentava apaziguar a situação. — E continuou: — Ela está apontando para o corredor.
Enquanto isso, Rita gaguejava tentando dizer alguma coisa:
— Maria... no bar... morta... Eu... eu vi... Está lá... — Depois se interrompeu, pois àquela altura não conseguia dizer mais nada.
Elas se voltaram para o corredor e correram em direção ao bar.
À tarde, quando o sol já se escondia preguiçosamente no horizonte, o cabaré de dona Bia encontrava-se aberto, não para sua atividade-fim, mas com um caixão roxo sobre três mesas juntas no meio do salão; dentro dele o corpo de Maria, coberto com cravos e margaridas. A vitrola de ficha tocando uma melodia triste num volume baixo e algumas pessoas conversando.
Maria morreu de madrugada, ao amanhecer de sábado, pois nesse mesmo dia houve o velório e a tarde o sepultamento. Neste sábado, depois que dona Bia e as meninas descobriram o cadáver de Maria, levaram a defunta para o seu quarto e em seguida dona Bia saiu apressada para uma funerária e providenciou a compra do caixão, enquanto as meninas providenciaram o banho e a mortalha da falecida. O médico foi chamado para realizar a necropsia com a autorização de dona Bia.
Ainda pela manhã daquele dia, as portas do cabaré foram abertas e o velório começou para visitação. Aos poucos as pessoas que passavam pelo local foram entrando, olhavam a defunta e seguiam adiante. Quem não tinha o que fazer naquele sábado, sentava-se e ficava conversando e bebendo, porque dona Bia havia liberado cachaça durante a cerimônia fúnebre. Ela estava cobrando apenas as cervejas. Quando a cidade tomou conhecimento de que estavam dando cachaça no velório, em poucos minutos o salão ficou lotado. Até quem nunca havia visitado o prostíbulo agora estava ali, com uma dose de cachaça na mão.
O velório transcorria serenamente, música tocando suavemente na radiola de ficha, muita gente bebendo pelo salão e outras conversando ou sentadas ao redor do féretro, quando no meio de toda essa fanfarra um carro preto, quatro portas, parou defronte ao cabaré e após desligar o motor, um senhor vestido a rigor desceu e abrindo a porta do carona, segurou a mão de um menino, que também estava vestido a rigor, e os dois entraram no cabaré de dona Bia. Neste momento, quem estava no caminho deles, afastou-se e toda a casa ficou observando, tomada de curiosidade.
Os dois aproximaram-se do caixão e o menino sempre segurando a mão do senhor que o acompanhava, ficaram por alguns minutos olhando a defunta. De repente o menino, soltando a mão de seu acompanhante, procurou no seu casaco alguma coisa, de modo que retira de um dos bolsos uma rosa branca, quase murcha, colocando-a sobre o busto de Maria. Depois dessa demonstração de afeto pela falecida, voltaram-se e saíram em direção ao carro. Entraram no veículo e sem proferirem uma palavra sequer, foram embora.
Pontualmente às quatro da tarde daquele mesmo dia, a cafetina autorizou a saída do féretro. O problema surgiu quando o caixão teve de ser carregado para fora. Seis pessoas seriam suficientes para carregá-lo, mas naquele salão ninguém se encontrava em condições, devido ao consumo excessivo de cachaça. No meio daqueles bêbados ainda apareceu um que teve o sacrilégio de lamentar o encerramento do velório.
— Já? Mas o coveiro ainda nem terminou de fazer a cova!
Dona Bia não deu a mínima atenção ao comentário estúpido do bêbado e continuou com os preparativos para o enterro.
Mais uma vez, sem que ninguém atinasse, a casa foi invadida por pessoas não esperadas naquele momento, só que desta vez, todo mundo conhecia os recém-chegados. Eram cinco garis, três rapazes e duas moças. Foram entrando, um após o outro, ficando ao lado do caixão, olhando para o rosto pálido de Maria.
Um deles virou-se, tomando a frente dos outros, encarou dona Bia, e indagou:
— Podemos levá-la para o cemitério?
Dona Bia também encarou o rapaz e de imediato concordou.
— Foi Deus quem mandou vocês! Maria vai ficar muito feliz sendo acompanhada na sua última viagem pelos meninos que dividiram com ela as calçadas das ruas de Águas Belas. — E voltando-se para o salão, gritou: — Só mais um voluntário!
As alças do esquife foram pegas pelos antigos meninos de rua, hoje homens e mulheres com um emprego e orgulhosos de agora trilhar por um caminho que lhes fora tão difícil nos tempos de criança.
Dona Bia foi orientando o trajeto do cortejo fúnebre. Pediu para que seguissem até a igreja catedral, frustrando os carregadores que já se dirigiam para o cemitério, do outro lado.
Deram meia-volta, colocando a cabeceira do caixão voltada para o centro da cidade, e foram vagarosamente descendo a rua, acompanhados por dona Bia, pelas meninas do cabaré e por alguns bêbados que ainda conseguiam andar e que não chegaram até a igreja, ficando pelos bares ao longo do caminho. Algumas pessoas que vadiavam pela rua, juntaram-se ao cortejo.
O enterro enfim chegou ao centro da cidade e parou defronte à igreja. Todas as portas estavam fechadas. Subiram os degraus, colocaram o caixão na calçada, bem defronte à porta principal e ficaram aguardando. As poucas pessoas que acompanharam o enterro até ali, algumas se sentaram nos degraus e outras se deitaram na calçada. Apenas dona Bia ficou andando de um lado a outro, nervosa, e inesperadamente, desabafou:
— A gente dá um duro danado, junta dinheiro, traz todo santo domingo um monte para doar à igreja, manda outro tanto para a igreja encomendar um corpo… e o que encontra? A casa do Senhor fechada e o padre escondido! — Ela falava tão alto, quase aos gritos, que chamava a atenção até de quem passava pela rua, parando para observar aquela cena. Muita gente caía na gargalhada com a situação, e por muito tempo aquele momento ficou na memória do povo.
— Vamos embora, gente. A igreja não precisa mais do nosso dinheiro!
Enquanto isso, ouviu-se a porta principal da igreja gemendo e vagarosamente sendo aberta. Todos os presentes voltaram-se ao mesmo tempo para a porta, aproximaram-se, e até quem estava do outro lado da rua aproximou-se para ver o desfecho de toda aquela confusão.
A porta da igreja foi aberta e o padre apareceu vestido numa batina preta, naveta na mão, jogando incenso para os lados, e para surpresa daquela gente o sino da catedral começou a badalar uma melodia fúnebre, avisando à cidade que alguém havia falecido. Dona Bia ainda pasma com aquela reviravolta aproximou-se do padre e quase cochichando ao seu ouvido, sussurrou:
— Padre, faça a encomendação do corpo que a folha com o seu nome no meu caderno de fiados será arrancada e rasgada, e os pedaços vou mastigá-los e engolir.
O padre naquele momento ficou confuso, caminhou meio desorientado, mas em seguida autorizou o féretro adentrar a igreja. O caixão foi colocado à frente do altar, diante da imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado, que ficava no alto, detrás do púlpito.
Depois que a porta foi aberta, a igreja ficou lotada. Havia até gente esticando o pescoço na porta de entrada para alcançar o interior da igreja. Os de trás passavam a cabeça pelos ombros dos da frente. Terminada a cerimônia litúrgica, depois de haver recebido os últimos sacramentos e o caixão já estar cruzando a porta de saída, o padre chegou junto à dona Bia e também falando baixinho, disparou:
— Cadê o dinheiro que disseste que irias doar para a igreja?
— Padre, tenha muita calma — respondeu dona Bia, olhando-o de soslaio —, o senhor vai ser perdoado de sua dívida e terá na minha casa alguns dias de diversão de graça.
O padre deu meia-volta, resmungou qualquer coisa e saiu, desaparecendo por uma portinhola ao lado do altar.
A cobrança feita por dona Bia fazia sentido, pois esse sacerdote não economizava a gastar algumas horas de seu dia nas visitas à casa de dona Bia, não era para levar a palavra de Deus àquelas pecadoras, mas para jogar-se de corpo e alma no meio das pernas delas.
Essas visitas eram feitas na calada da noite, sempre depois que a agitação terminava e a rua ficava deserta. Nessa hora lá vinha o padre subindo disfarçadamente a rua, se esgueirando pelas paredes das casas, sem a batina usual, e quando chegava à porta, um assovio era entre ambos a senha, alertando dona Bia, que do bar onde estava arrumando as contas, levantava-se para abrir a porta, porque ela conhecia a senha. Ele entrava, procurava a menina disponível, o que sempre acontecia àquela hora, e trancava-se com ela até o dia amanhecer.
Muitas vezes para camuflar-se da curiosidade dos transeuntes, ele saía do cabaré travestido de mulher e com um xale na cabeça descia de rua abaixo sem falar com ninguém que o encontrasse pelo caminho, até a porta dos fundos da igreja.
Mas só que depois de toda aquela agitação na igreja, quando o caixão descia os degraus, as pessoas foram dispersando-se e quase ninguém acompanhou o féretro até o cemitério. Outras foram juntando-se durante o percurso. O séquito seguiu rua acima, em direção ao cemitério.
O curioso é que quando o caixão deixava a igreja e já dobrava a esquina, outro enterro ia chegando às imediações da praça.
— Mais um enterro! Quem será que se foi desta vez? — alguém perguntava.
— Foi o dono de uma lanchonete da rodoviária. Dizem que morreu dessa doença que está matando os afeminados. Essa tal de AIDS — respondeu um rapazinho que caminhava no sentido contrário em direção àquele cortejo que se aproximava da igreja.
Dias depois do sepultamento de Maria, dona Bia estava sentada no bar de seu cabaré, sozinha, pensativa, mordendo a ponta de seu lápis e presumindo o futuro de seu negócio com aquela doença que invadia a vida das pessoas que procuravam sexo pago e de fácil acesso. Agora não era só uma ameaça para os afeminados, estava pegando todo mundo desprevenido. O cabaré agora era pouco buscado, depois da chegada dessa moléstia, adiantando-lhe a decadência.
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