CAPÍTULO UM
Voltando ao dia em que Maria deixara o cabaré de dona Bia para continuar a mesma vida, só que agora em uma casa de luxo na capital. Aqueles momentos aconteciam ao mesmo tempo do que acabamos de narrar — apenas em cenários distintos.
As meninas acordaram no dia seguinte e não encontraram Maria dentro de casa, que nem sequer se despediu. Quando chegaram ao quarto dela, encontraram a cama desarrumada e nenhum sinal de Maria.
Uma das meninas, diante daquela cena, ficou pensando: — “Será que a danada resolveu ir morar amigada com o fazendeiro”?
Dona Bia, a única que não ignorava aquela história e quando procurada esclareceu o que se passou, era a mais tranquila naquela ocasião.
Depois cada uma procurou o que fazer, mas ainda inconformadas com a atitude de Maria, todas, sem exceção, sentiram-se menosprezadas. Sentiram-se assim porque durante esse curto tempo em que viveram juntas, haviam se acostumado a admirar a pequena Maria, e com a convivência do dia a dia debaixo daquele teto, tiveram tempo suficiente para amá-la. Como elas formavam uma pequena família dentro daquela casa, achavam-se no direito de compartilhar os problemas de cada uma. Dona Bia ainda tentou convencê-las com um último argumento:
— A essa altura nossa fujona já deve estar chegando a Recife. — Depois olhando para a parede à sua frente, profetizou: — Uma menina de rua que foi conquistar a capital. Eu que a descobri, modéstia à parte.
Nesse momento as meninas correram para abraçá-la.
O novo local de trabalho de Maria ficava em Boa Viagem, bairro nobre da capital. Era uma mansão escondida por trás de altos muros. Dentro daqueles muros havia piscina, sauna, salão de jogos, um bar na entrada e uma cozinha nos fundos, além dos quartos ricamente preparados para os nobres fregueses.
Essa casa era frequentada por políticos, empresários, artistas das mais diversas áreas e executivos de vários setores. As meninas que frequentavam a mansão dividiam-se entre profissionais e amadoras, sendo a maioria estudante universitária que estava ali para engordar a conta bancária e garantir uma formatura decente, enquanto a minoria frequentava a casa por profissão.
Além dos quartos, a mansão também oferecia aos clientes mais discretos, serviço de entrega a domicílio. O telefone para atender a essas chamadas ficava no bar, aos cuidados do garçom.
Após pisar dentro daquela mansão, Maria ficou confusa, acanhada pelos cantos, isolada naquele ambiente cheio de requinte. Também pudera, a coitada fora criada no mato, no meio de toda aquela gente ignorante.
Agora suas novas colegas eram diferentes, elegantes e conversavam entre elas coisas que Maria não entendia e jamais havia escutado palavras tão estranhas. Falavam até estrangeiro, com a língua enrolada. Eram palavras difíceis, que ela nunca pensou que existisse alguém no mundo que entendesse aquele palavreado.
Nos primeiros dias ela ficava sempre sozinha na extremidade do sofá, sentada e cabisbaixa, e a única coisa que conseguia dizer era um “oi”, balbuciando. Quando tentou acrescentar mais alguma palavra, foi um desastre. Pegaram no seu pé e toda vez que falava alguma coisa era motivo de chacota. Até os clientes riam de seu sotaque. Foram muitas semanas para que as pessoas naquele ambiente aceitassem seus erros fonéticos. Não se passou muito tempo para que ela conquistasse a mansão e até já estava pensando trazer as meninas da casa de dona Bia para o Recife.
Quando estivessem em Recife iriam ver que o rio Ipanema não tinha tanta água como se mostrava. Aqui sim, tinha um mar que ninguém enxergava o outro lado. Jamais haviam conseguido atravessá-lo a nado, como os meninos faziam no Ipanema. Esses devaneios eram interrompidos por alguém que acabara de sentar-se no sofá ao seu lado.
Quando Maria chegou àquela mansão trazida pelo homem que a descobriu em Águas Belas, foi colocada num apartamento pequeno bem próximo à Boa Viagem. Como o apartamento era do cafetão, Maria ficou pagando aluguel. Além de ser acomodada, ainda lhe devia as roupas e as bijuterias que foram compradas por ele. Agora teria que suar naquela mansão para pagar todos esses adiantamentos. Foi assim o seu começo na cidade grande.
Depois de várias noites, sozinha naquele cantinho do sofá, apenas dando um “oi” para alguns, e nem sempre levantando a vista para quem a cumprimentava, seu dia de estreia chegou, e chegou com vivacidade e muito promissor.
Um rapaz vistoso, com um copo de bebida na mão, sentou-se ao seu lado no sofá e foi logo puxando conversa. Daí a pouco ele já estava com o braço sobre o ombro dela e puxando-a cada vez mais para junto de si. A essa altura Maria também já estava com um copo de uísque na mão e conversando alegremente com o recém-chegado. Terminaram a noite num motel, para deslumbre de Maria que nunca havia deitado numa cama redonda e tão espaçosa e também nunca havia tomado banho deitada numa banheira espumante. Também ficou abismada com tanto espelho nas paredes e no teto.
Ficava rindo só de pensar no seu quarto lá na casa de dona Bia; naquelas paredes descascadas, nas lagartixas caçando insetos, nas garrafas cheias d’água no canto da parede e aqueles banheiros fedendo a urina. Nessa noite voltou para o seu apartamento feliz da vida e com muito dinheiro na bolsa.
Meses depois, passadas tantas noites e outros tantos finais de semana, Maria já desfilava naquele prostíbulo de luxo com desenvoltura e até já havia adotado o nome de “Mary”.
Agora, já se deitava com políticos, empresários, artistas e, em várias ocasiões, até acompanhava alguns executivos em suas viagens de negócios. Apesar de toda essa fartura, suas finanças eram divididas com o cafetão que ainda a explorava. Sua dívida com esse sujeito apenas se multiplicava. A bolha crescia, enchendo-se, para estourar no dia decidido por ele. Esse crápula tinha agora nas mãos a vida de Maria.
Naquela casa de prostituição, as meninas eram submetidas a exames regulares de saúde. Para sentarem-se nos sofás e receberem seus clientes, antes tinham que entregar à casa um comprovante de que seu organismo estava blindado de qualquer bactéria parasita. Se por acaso uma delas trouxesse um exame divergindo com as regras da casa, ficava proibida de frequentar a mansão, mesmo se depois fosse dada como recuperada do mal que a acometera. Só que algumas ludibriavam aquelas normas e traziam resultados montados, porque sempre havia um médico sem ética com a sua profissão, sujeitando-se a jogar-se no meio das pernas de uma colega da paciente. Era uma artimanha que elas usavam para ludibriar a vigilância sanitária da casa.
Quando Maria chegou àquela mansão, recebeu como primeira lição, não escolher os seus parceiros, pois todos os homens que ali frequentavam eram pessoas de certa influência na sociedade e acostumados a ficarem ao lado das mais lindas mulheres e nunca foram preteridos por nenhuma delas. Então toda principiante deveria aprender como se comportar naquela casa. Assim sendo, Maria aprendera como caminhar ali dentro e depois de algum tempo já circulava por todos os cômodos com desenvoltura e segura de seus passos. Até já falava sem acanhamento.
Mary agora era muito assediada pelos grã-finos.
A matutinha que chegara naquela casa, acanhada, encolhendo-se pelos cantos, havia voltado para Águas Belas. Agora quem sorria no luxuoso salão era Mary, endeusada pelos fregueses e invejada por uma minoria recalcada. Não era mais uma adolescente, já completara dezoito anos e estava vivendo um momento de amadurecimento. Agora transitava com desembaraço pela mansão e já falava fluentemente a língua de suas colegas e dos fregueses da casa.
Ainda morava a alguns quarteirões da mansão, em um conjunto residencial de classe média baixa. Essa comunidade era sempre visitada, nos fins de semana, pelo cafetão que imaginava agenciá-la e fazia a cobrança de seu quinhão.
O oportunista acompanhava o sucesso de Mary na mansão e não abria mão de seu aproveitamento abusivo. Ela se sujeitava àquela usura. Como estava faturando bem ultimamente, não havia porque se preocupar com a petulância daquele mau-caráter. Ganhava o suficiente para os dois. Não obstante a exploração, ela julgava até certo ponto apropriada, haja vista ele a ter descoberto lá no fim do mundo. Mesmo com todas essas rapinagens, Mary estava feliz e vivendo seus melhores dias, enfim, ganhava muito dinheiro e saía com homens interessantes, afortunados e meritórios. Seus clientes eram generosos e educados.
Os dias passavam-se apressados dentro daquela mansão, e antes que um desses terminasse, Mary atendeu um telefonema que iria levá-la a conhecer a outra face do prazer. Um lado ainda desconhecido e nunca vivenciado por ela.
O garçom que servia ao salão onde ela tomava champanhe com um cliente no sofá, aproximou-se, e discretamente disse-lhe ao ouvido:
— Mary, uma ligação para você, lá na recepção.
Inicialmente ela estranhou o recado, mas em seguida, com polidez, dirigiu-se ao seu acompanhante, deu-lhe um leve beijo na face e saiu.
— Volto já, meu amor.
O rapaz deu de ombros, tomou mais um gole de champanhe e jogando a cabeça no encosto do sofá, relaxou.
Chegando à recepção ela encontra o telefone sobre o balcão, fora do gancho, e por alguns instantes receia pegá-lo. Depois toma coragem, e olhando para os lados, coloca-o ao ouvido. A ligação ainda não havia caído.
— Alô! Alô! — Do outro lado uma voz feminina sussurra:
— Oi, Mary ao telefone?
— Sim. O que você deseja de mim?
— Desejo você, queridinha. Posso mandar um táxi apanhá-la?
Por um instante Mary hesitou, não encontrava uma resposta oportuna para a ocasião. Quem quer que fosse do outro lado, aquela proposta a deixava confusa, apesar de sua curiosidade. Esperou alguns segundos, suspirou fundo, olhou de novo para os lados, e decidiu-se.
— Pode.
Depois de colocar o telefone no gancho, retornou ao sofá e sentou-se ao lado do rapaz, que ainda a esperava, alheio a tudo o que estava acontecendo. Limitava-se a beber o seu champanhe.
Mesmo ali, ao lado dele, a cabeça de Mary permanecia presa ao telefonema e ao táxi que, a qualquer momento, estacionaria diante da mansão para levá-la até a dona daquela voz.
Consciente do que estava por vir, desculpou-se polidamente do rapaz e, alegando um mal-estar repentino, seguiu para o jardim. Deitou-se numa cadeira à beira da piscina e avisou ao garçom que a chamasse assim que o táxi chegasse.
Deitada na espreguiçadeira à beira da piscina, Mary ficou olhando o céu escuro e algumas estrelas esparsas brilhando na imensidão do infinito, enquanto ela continuava pensando naquele telefonema.
— “Teria tomado à decisão acertada ao aceitar esse convite? Só o tempo iria dizer-lhe”. — E continuou pensando: — “Lá no interior, em Águas Belas ou até mesmo em Itaíba, nunca havia escutado nenhuma história de mulher que gostasse de outra mulher como amante. Naquele sertão brabo mulher só abria as pernas para um homem. Até os afeminados eram perseguidos e chacoteados naquele fim de mundo”.
Estava quase adormecendo quando o garçom chegou avisando-lhe que o táxi estava à sua espera. Mary levantou-se, pediu ao garçom que avisasse ao taxista que a esperasse enquanto iria pegar a sua bolsa.
Minutos depois estava de volta. Meteu-se no táxi e seguiram para o seu encontro com a mulher misteriosa.
Saindo da mansão, seguiram no sentido da praia, e mais adiante pegaram a Avenida Boa Viagem destino centro. Alguns quarteirões depois o táxi parou defronte a um edifício e automaticamente o portão da garagem foi sendo aberto, porque alguém lá em cima acionara o controle remoto, e o táxi mergulhou de garagem adentro. Mary desceu e foi recebida no elevador por uma senhora de cabelos loiros, aparentando mais ou menos uns quarenta e cinco anos de idade, muito sorridente, dando-lhe um abraço caloroso antes de entrarem no elevador. Depois desse abraço, aquela jovem senhora pagou a corrida e as duas subiram para o apartamento.
O taxista colocou o dinheiro no bolso, ligou o veículo e manobrando de ré para sair da garagem, deu um sorrisinho irônico e acelerou de volta para a rua.
Ainda no elevador, a loira sem nenhuma cerimônia segurou as duas mãos de Mary e num impulso, tacou-lhe um beijo na boca. Surpreendida pela ação da mulher, Mary tentou desesperadamente se desvencilhar daquele abraço, e quando conseguiu, já entendendo as suas intenções, abriu um sorrisinho e entregou-se a essa nova aventura.
O apartamento era pequeno, mas bem confortável.
Mary gostou da surpresa que a aguardava naquele apartamento. Aprendeu muitas coisas com a sua amante, e passou vários dias sem aparecer na mansão; mas ninguém se preocupou com a sua ausência, porque todo mundo naquela casa já sabia do seu paradeiro. Mary continuou encontrando-se com aquela mulher, mas não deixou de sair com os seus fregueses, apesar de estar acostumando-se com aqueles momentos íntimos que a lésbica lhe proporcionava, afinal, sentia muito prazer quando as duas estavam na cama, e o retorno financeiro recompensava. Sentia nojo às vezes, comentava sempre com as amigas, mas o prazer era mais forte e tudo passava rapidamente. Suas colegas de cabaré também trocavam com ela experiências vividas e se diziam satisfeitas e de opinião favorável àquelas escapulidas.
Para encurtar a história, esse caso um dia teve o seu fim. Foi um tanto dramático para Mary. Elas passaram um largo tempo juntas, mas foi a loira endinheirada quem começou a sentir rejeição por sua parceira. Talvez com o passar do tempo, com as escapulidas de Mary com os homens, e até por achá-la mais acabada e não trazer no corpo nenhum pedaço inexplorado, a loira resolveu trocá-la por um corpo mais novo e sem muitas marcas de boca.
Aconteceu que certo dia, Mary ao visitá-la sem avisar, porque já eram tão íntimas que não mais precisava de formalidades, ao tocar a campainha estranhou a demora de sua amante em vir atendê-la. Nesse dia insistiu tanto tocando a campainha, que a porta foi aberta e quando Mary olhou para dentro do apartamento, seus olhos caíram sobre uma loira por trás de sua amante, apenas enrolada numa toalha e assustada com aquela visita inesperada. Naquele mesmo instante, sem ao menos cumprimentá-las, Mary deu meia volta e correu para o elevador.
Depois desse dia nunca mais se encontraram.
v