CAPÍTULO DEZ
Poucos meses depois de sua confissão a Severino, o corpo de Maria já revelava alguns sintomas de gravidez, como o aumento dos seios e inchaço na barriga. Foi a partir daí que sua mãe começou a suspeitar de que alguma coisa andava errada com sua filha, mas apenas Severino estava inteirado de toda a história; ele sabia a confusão em que sua irmã estava metida.
Depois daquela tarde em que soube da gestação de Maria, Severino também andava mudado dentro de casa. Até o pequeno Nicodemos muitas vezes o cutucava, acordando-o de seus devaneios. Sua maneira de interagir dentro de casa estava preocupando até os seus pais. Não havia motivo algum, aparentemente, para aquele estado de impaciência em que Severino mergulhara.
— O que será que está havendo com Severino? — perguntava Isidoro à Idalina, quando estavam aprontando-se para dormir.
— Deve ser coisa de rapaz donzelo — respondia Idalina.
— Será que devo levá-lo para um cabaré, assim como fizeram comigo?
— Nem pensar nisso — respondeu Idalina, ao mesmo tempo em que se agitava na cama. — Esse menino precisa é de uma boa conversa.
Com o passar dos dias a situação de Maria dentro de casa foi ficando mais complicada devido a outros sintomas que surgiam. Apesar de tudo, ela ainda conseguia esconder a barriga prendendo-a com as calças apertadas que usava. A coitada possuía apenas duas calças compridas que Idalina comprara na feira de Águas Belas. Enquanto usava uma, a outra estava secando no varal. Até para dormir se vestia de calça comprida, fazendo com que seus pais a olhassem com alguma desconfiança, sobretudo Idalina. Nicodemos como ainda era uma criança, não estava nem um pouco preocupado com o que sua irmã vestisse ou deixasse de vestir. Ele queria era brincar com Severino de jogar bola ou caçar calangos no mato.
Isidoro e Idalina estavam preocupados. Chegaram a pensar que aquele hábito dela de só querer usar calças compridas fosse pelo fato de dormir ao lado de seus irmãos, mormente com Severino, que estava a poucos anos da puberdade, diferente de seu irmão. Idalina como mãe e por já ter passado por três partos, sabia que o motivo de Maria estar usando calças compridas para dormir não era por causa de deitar-se no mesmo quarto com Severino. Havia alguma coisa a mais em toda essa história e ela iria descobrir.
Certo dia quando Maria chegou da escola, depois de jogar o caderno sobre a rede, sentar-se à mesa com Nicodemos, que também chegara com ela, Idalina a puxou pelo braço e levando-a para o canto da parede, perguntou-lhe:
— Por que essa barriguinha tão apertada?
Maria simplesmente encarou sua mãe, e sem dizer uma palavra, voltou para a mesa e terminou de almoçar com Nicodemos. Terminada a refeição os dois saíram correndo para o roçado, como sempre eles faziam todos os dias ao retornarem da escola.
Idalina ficou preocupada com a reação de sua filha. Ela não estava se comportando como uma pessoa insuspeita, sempre agia no sentido de confirmar de que havia alguma coisa estranha nessa sua conduta.
À noite durante a ceia Maria não se sentou à mesa com os demais, decidira ficar no seu quarto fazendo o dever de casa. Ninguém se preocupou com ela, estavam muito famintos para sentirem a falta de alguém à mesa. Com aquela batata-doce cozinhada e o preá assado acompanhado de um bule de café quente, ninguém àquela altura iria perceber a falta de alguém à mesa, apenas o pequeno Nicodemos sentiu e gritou, chamando-a:
— Maria, vem comer!
Na mesma hora Idalina atalhou irritadiça, repreendendo-o.
— Vai terminar a tua comida, menino. Quando ela quiser, ela vem!
O pequeno Nicodemos voltando-se para o seu prato, continuou comendo.
Quando todos se levantaram saciados e foram para o terreiro contar anedotas, Maria foi para a cozinha cear. Ainda conseguiu comer uma batata-doce, um pedaço de preá assado e tomar meia xícara de café. Já estava sentindo aversão aos seus pratos preferidos. Depois se recolheu ao seu quarto. Agora estava com o corpo mais cansado e a vontade de dormir a todo instante só aumentava.
Idalina não conseguia pregar os olhos. Revirava-se na cama, observando as bribas na parede, à caça de insetos, enquanto o coração lhe apertava no peito, carregado de um pressentimento sombrio. Pensava no comportamento de Maria, em cada gesto, em cada olhar, como se tentasse adivinhar um segredo escondido, até que o sono, tímido e lento, finalmente a envolvia.
Isidoro não estava preocupado nem um pouco, mas Idalina a cada dia que passava ia ficando mais inquieta. De uma coisa ela não duvidava: os sintomas de sua filha indicavam uma gravidez.
Na manhã seguinte tentou conversar com Maria durante o café, mas retrocedeu, porque Nicodemos também estava à mesa. Decidiu acompanhá-los até a estrada, deixando-os na porteira. Foi durante esse percurso que Idalina tentou ficar entre os dois (o que foi fácil, porque o pirralho corria mais adiante, jogando pedras que apanhava pelo caminho nos calangos e lagartixas que estavam à beira da estrada), e segurando o braço de sua filha, interpelou-a:
— Minha filha, o que está acontecendo com você? Não esconda nada de sua mãe!
— Mãe, a senhora está machucando o meu braço! — esbravejou Maria, ao mesmo tempo em que puxava com força o braço, soltando-se.
— Você ainda não me respondeu — insistiu Idalina.
— Nada, mãe! Não tenho nada.
Nessa hora Maria foi salva por Nicodemos que chegara correndo, e puxando a irmã pelo braço, ordenou: — Vamos logo! Se a gente chegar atrasado vai de novo para o canto da parede e fica ajoelhado de costas.
Idalina nessa hora deu meia-volta e desceu a ladeira para casa, enquanto os dois seguiram para a escola, quase correndo para não chegarem atrasados.
Naquele dia, mais uma vez Maria não foi para a mesa jantar; ficou na rede, porém desta vez Idalina foi procurá-la no quarto. Maria estava deitada rabiscando alguma coisa no seu caderno de tarefas e não percebeu a chegada de sua mãe. Só quando Idalina segurou na corda que prendia a rede na parede é que ela tirou os olhos do caderno e assustando-se com a visita repentina, olhou para Idalina, mas continuou calada.
Sua mãe carinhosamente colocou a mão na cabeça de sua filha, afagando seus cabelos e depois se curvou sobre o corpo dela, abraçando-a e as duas desataram no choro. Não havia necessidade de palavras naquele momento, apenas uma troca de olhar seria suficiente para denunciá-la e Idalina conseguiu, afinal de contas era sua mãe. Quando se desvencilharam, Idalina ficou de pé ao lado da rede e enxugando as lágrimas que saíam de seus olhos, sem rodeios lhe perguntou:
— Minha filha, quem é o pai? — Ela tinha medo da resposta, medo de ouvir Maria dizer-lhe que tudo havia acontecido dentro de casa. Coisa repugnante para uma família, mas era algo corriqueiro naquele mundo.
Maria se voltou para a parede e ainda soluçando cobriu o rosto com o lençol e ficou calada, deixando sua mãe ainda mais confusa. As suspeitas de Idalina só aumentaram. Naquele momento pensou em Severino, um rapaz carente dormindo no mesmo quarto em que sua filha dormia, e sentiu certa repugnância de seu filho. Nicodemos não se discutia. E Isidoro? Tão trabalhador e dedicado à família... Não seria possível! Severino também não, ele cuidava até demais de seus irmãos. Que pensamento mais diabólico.
Enquanto isso Maria adormeceu.
Quando Idalina se virou para sair do quarto dos meninos, deparou-se com Isidoro encostado à porta, com a cara muito séria. Naquele instante ela se perguntou há quanto tempo ele estaria ali. Calmamente passou pela porta roçando no corpo dele e se dirigiu para o terreiro onde Severino e Nicodemos ainda jogavam bola. Isidoro a seguiu. Ela sentou-se na soleira da porta, ele a imitou, passaram-se alguns segundos, e quebrando o silêncio ele a advertiu:
— Quando a gente for deitar-se precisamos conversar.
Idalina apenas lhe deu um tapa na mão, afastando-a de sua perna, e continuou olhando os meninos jogando bola no terreiro.
Na manhã seguinte Maria não foi para a escola, nem tampouco o pequeno Nicodemos. Não tinha quem o levasse. Durante o dia Maria ficou em casa e não conseguiu ajudar a sua mãe nos afazeres domésticos, porque quando começava fazendo alguma coisa, logo corria para sentar-se. Estava sentindo tontura e dores nas costas. Idalina obteve bons resultados com a presença de sua filha naquele dia ao seu lado. Agora ela sabia quem era o pai da criança e sentia-se mais aliviada pelo fato de agora ter um nome; pelo menos era um nome que vivia longe de sua casa.
Agora o problema era Isidoro, homem trabalhador, dedicado à família, que sempre sonhou em casar a sua única filha. Como ela o conhecia há bastante tempo — os dois vieram da mesma família — não iria decepcioná-lo agora. Contou tudo a ele.
Estavam no quarto deitados quando ela lhe contou o que havia acontecido com Maria.
Isidoro tranquilamente colocou as mãos cruzadas sob a nuca e ficou por alguns instantes pensando, com os olhos no teto. De vez em quando uma briba passava correndo no caibro tentando pegar um inseto, e ele continuava absorto em pensamentos. Naquele momento passava pela sua cabeça um tumulto de considerações, mas a imagem sempre congelava no moleque travesso que fizera aquela maldade à sua criança. Isidoro conhecia o pai daquele explorador de meninas desprotegidas, respeitava-o, devia-lhe um grande favor; e por que o destino agora os colocava frente a frente nesse imbróglio? A sua honra teria que ser respeitada, nem que tivesse que lavar sangue com sangue. Continuou olhando para as telhas de seu quarto. Não conseguiu pregar os olhos naquela noite.
Antes que a luz do sol começasse a se espremer pelo telhado, Isidoro acordou Idalina, ordenando-lhe que despertasse Maria, mandasse que arrumasse seus molambos e desaparecesse daquela casa, pois do resto ele saberia como resolver.
No campo, as famílias tinham por tradição expulsar de casa a filha que se perdesse, que virasse mulher da rua, e com Isidoro não seria diferente, ele não podia desrespeitar o comportamento de seus ancestrais. A honra de um homem deveria ser lavada com sangue; ninguém tinha o direito de abusar de uma adolescente e ficar impune. Isidoro fora criado nesse mundo.
Naquela época a virgindade ainda era um tabu a ser respeitado no interior do Nordeste e pagava-se um alto preço pela quebra dessa regra. Geralmente com a vida, se antes não fugisse para São Paulo.
Foi uma decisão difícil para Idalina, mas quando o sol nascia no horizonte, Maria caminhava em direção à cancela, engolindo as lágrimas. Trouxa de roupa enrolada debaixo do braço e desorientada, sem saber que caminho seguir. Ultrapassou a cancela, olhou pela última vez para a casinha de taipa, sentiu um aperto no coração; indecisa olhou para o lado de Itaíba, virou-se para Águas Belas e uma força a puxou para o lado do rio Ipanema. Chegando à cabeceira da ponte do rio, parou, segurou-se na proteção e ficou olhando a água correndo lá embaixo. Demorou-se naquela posição. Chegou a sentar-se no parapeito da ponte, com as costas viradas para a estrada e ensaiou um pulo suicida nas águas que desciam em silêncio. Talvez aquele rio a levasse para um lugar bonito, onde as pessoas pudessem ter os seus filhos e continuassem dormindo nas suas redes. Ficou oscilando entre o medo de pular e o desejo de continuar a viagem. Quando já tomava uma decisão, foi despertada por um carro que passava em direção a Itaíba e buzinou ao vê-la naquela posição. Maria se voltou e ouviu um grito de dentro do carro e uma mão que lhe acenava:
— Menina, a vida é bela!
Ela saltou de volta para o piso da ponte, acenou acanhadamente para o carro e seguiu para Águas Belas.
Na casinha de taipa todo mundo agora estava acordado tomando o café da manhã.
Isidoro e Idalina já estavam a par dos acontecimentos, mas Severino e Nicodemos nada sabiam. Com a boca cheia de batata-doce, Nicodemos pediu para sua mãe:
— Mãe, vai acordar Maria. Se a gente chegar atrasado hoje de novo, vai ter castigo no canto da parede, ajoelhado em cima do milho.
Durante o desjejum, Idalina estava com os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar durante a madrugada. Ainda com o coração apertado, lembrava-se de suas súplicas para tentar convencer o marido a abster-se daquela decisão violenta e excessiva, e convencida de sua própria incapacidade de detê-lo e suavizá-lo, além de ser demasiada submissa ao marido, fora anulada pela ignorância dele, que repetia sempre que a reputação da família não seria manchada com a chegada de um filho bastardo. Fora até ameaçada de também ser expulsa de casa se por acaso ficasse defendendo a filha devassa. Idalina pensou em Severino, e principalmente no pequeno Nicodemos, e recuou.
Severino foi o primeiro a perceber que havia alguma coisa atípica naquela casa ao sentar-se para o desjejum. Porém ficou calado, apenas olhava para a sua mãe que procurava esconder o rosto banhado em lágrimas.
A manhã estava nublada.
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