CAPÍTULO NOVE
No dia seguinte era sábado, dia de feira em Itaíba e Isidoro não poderia perdê-la. O apurado não era lá essas coisas, mas o pouco era muito para quem dependia daquela barraca.
Nesta sexta-feira à noite, como sempre faziam todas as sextas, iriam se ocupar de separar a mercadoria que seria colocada à venda na feira de Itaíba no dia seguinte. Até Nicodemos participava da seleção dos produtos.
Chegavam da roça, guardavam as ferramentas de trabalho no canto da sala, enquanto as batatas, as macaxeiras, abóboras e as frutas de época colhidas naquele dia eram colocadas amontoadas na sala e corriam para o riacho. Isidoro e os meninos iam primeiro. Entravam no riacho de calça arregaçada até o joelho, lavavam o rosto e a cabeça, depois uma ensaboada breve nos sovacos e voltavam correndo para a mesa onde já se encontrava servida a ceia.
Maria só ia para o banho depois, com Idalina. Era um banho mais asseado. Ficavam apenas de calcinha, sentadas no leito do córrego, sobre os seixos, sentindo a água deslizar sob as suas nádegas. Depois se deitavam no meio do regato de águas mornas, e ensaboando-se, terminavam o banho. Os meninos tinham deixado o sabão e uma bucha à beira do riacho sobre uma pedra.
Depois de fartos do jantar — feijão com farinha, preá, rolinha, tiú assado e café fumegante —, corriam para a sala, onde se erguia, desordenado, o monte de mercadorias que seguiria no dia seguinte para Itaíba. Sentavam-se ao redor da pilha de frutas e raízes e davam início ao ritual da triagem. As boas, reluzindo ainda o frescor da colheita, eram separadas com cuidado; as outras, já murchas ou manchadas, eram lançadas contra a parede, de onde mais tarde seriam varridas ao quintal, destino certo de apodrecimento e esquecimento.
Quando durante o trabalho seletivo acontecia de o pequeno Nicodemos jogar uma batata bichada no monte das sadias, levava um grito de seu pai e se recolhia amuado ao canto da parede, com cara de choro. Quando acabava o dengo, ele voltava para ajudar. Depois de muitas repreensões, Nicodemos desistia e passava a dedurar seus irmãos quando estes cometiam o mesmo erro seu. De Severino ele ficava distante, era grandalhão e de vez em quando lhe dava uns cascudos. Então só restava a sua irmã.
— Pai, Maria jogou uma batata bichada daquele lado! — E apontava para a pilha das mercadorias que seriam levadas para a feira.
Isidoro apenas olhava para Maria, sem interromper o que estava fazendo e flagrava-a dando um tapa no ombro do pequeno Nicodemos, e grunhindo:
— Que menino mais chato.
Sentada e encostada à parede, Idalina puxava Nicodemos pelo cós do calção e também o repreendia:
— Nicó, senta aqui ao meu lado!
Depois de concluída a seleção do que iriam levar para a feira de Itaíba, eles corriam para a cozinha e faziam mais uma refeição antes de irem deitar-se.
Aconteceu que naquela madrugada de sábado, Isidoro não acordou bem, passou muito tempo acocorado detrás de uma moita, do outro lado do riacho. Estava com diarreia e não iria aguentar passar o dia na feira. Com as mãos sobre a barriga e demonstrando muita dor nesse lugar, decidiu que Severino e Maria iriam juntos novamente para a feira.
Severino olhou para Maria e percebeu um brilho nos seus olhos, mas se conteve e apenas falou para o seu pai que os dois iriam dar conta da empreitada. Maria estava vibrando por dentro de contentamento, mesmo não sabendo a causa da indisposição de seu pai. O que queria neste momento era chegar logo à Itaíba.
No caminho para a feira os dois não se falaram.
Era o jumento na frente com Maria montada e Severino logo atrás, cabisbaixo, traçando mentalmente como iria tomar conta da barraca e de sua irmã. Seguiram de estrada afora, recebendo na cara os primeiros raios de sol de um sábado que nascia radiante.
Entraram em Itaíba, e a cada passo dado ouviam mais nitidamente a mesma algazarra de todo sábado, o mesmo barulho no açougue e no mercado de farinha. Chegando à praça da prefeitura, a mesma confusão de feirantes montando as suas barracas.
Depois de muito sacrifício Severino conseguiu sozinho, montar a barraca. Maria sentou-se num tamborete, depois de tudo arrumado e a banca levantada, e com um pente na mão ajeitou os cabelos e ficou esperando Severino voltar do beco do urubu onde fora deixar o jumento.
Quando Severino retornou, ficou surpreso: Maria estava com a cara pintada e os cabelos penteados. Ela estava exalando um cheiro atraente naquele momento, com os olhos sombreados, os lábios vermelhos e as bochechas roseadas de ruge.
Ela não titubeou em chegar junto a seu irmão e implorar de novo para que ele ficasse só um pouquinho sozinho na barraca:
— Se você me deixar sair, eu não digo em casa que você quando está aqui comigo toma mais de uma garrafa de vinho na barraca de dona Mariquinha. Guarda segredo, que eu farei o mesmo.
Dona Mariquinha era uma senhora de mãos ligeiras e sorriso fácil, que mantinha sua barraquinha logo na entrada do beco do Urubu. Ali, entre o cheiro forte do feijão fumegando, do arroz soltinho, do macarrão bem temperado, da carne guisada e das verduras frescas, servia também cachaça e o amargo vinho de jurubeba. Aos sábados, era certo: Isidoro, Severino e Maria se reuniam para almoçar naquela mesa simples, embalados pelo sabor da comida caseira de Dona Mariquinha.
Severino olhou de um lado para o outro sem encontrar defesa; já tinha até tomado um copo de vinho quando deixou o jegue no campo, e entregou os pontos:
— Está bem. Combinado. Pode sair.
Num piscar de olhos Maria desapareceu no meio da feira, deixando Severino sozinho, boquiaberto e não acreditando como a sua irmã tomara aquela decisão tão rapidamente. Nesse momento ele observou que antes de sua irmã se juntar às pessoas na feira, primeiro passou pela segunda banca após a sua e devolveu para a filha da vendedora as maquiagens que tomara emprestado.
Do lugar em que se encontrava, ainda ouviu Maria desabafando para a menina:
— Isso lá em casa, meu pai joga tudo no mato!
Nesse sábado Severino ficou quase o dia inteiro sozinho na barraca e só foi almoçar à tarde, na tenda de dona Mariquinha, depois de ter tomado uma garrafa de vinho de jurubeba, pois estava com raiva. Pagou a conta e voltou para a sua barraca, que deixara o vizinho vigiando.
Severino percebendo que a feira já estava quase terminando, porque poucas pessoas transitavam pela rua àquela hora, pediu de novo ao vizinho para que olhasse a sua barraca e saiu à procura de Maria. Não iria perder muito tempo desta vez porque já conhecia o caminho que o levava até o pé de ipê, mas desta vez não teve êxito. Taciturno e mentalmente cansado, retornou a sua barraca, agradeceu ao vizinho e retomou as suas atividades.
Durante o resto da tarde o que faz é pesar para um freguês um quilo de macaxeira, para outro, dois quilos de batata-doce, receber o dinheiro de uma senhora, passar o troco, mas sempre olhando para a rua onde as pessoas se misturavam com as barracas enfileiradas ao longo da calçada.
De repente ele suspira aliviado.
Pela calçada Maria vem caminhando em direção à barraca. De onde Severino estava, conseguiu perceber que um bêbado se envergou para trás quando sua irmã passou e ficou olhando o seu traseiro. Nesse momento o sangue ferveu em suas veias, sua cabeça esquentou, e com certeza o rosto ficou avermelhado, mas com um suspiro profundo se acalmou, soltou a peixeira sobre o balcão e esperou Maria chegar. Ela chegou toda faceira, sorrindo e sem mais batom nos lábios, sem ruge no rosto e com os olhos abarrotados de tinta da maquiagem desfeita.
Apesar de Severino passar o dia todo impaciente e preocupado com o sumiço de sua irmã, ele a recebeu com carinho, pois ali estava ela novamente. Mesmo depois de deixá-lo sozinho, havia um pacto firmado entre eles e ainda por cima ele permitiu que ela saísse. Sem dizer uma palavra, desceu para o beco do urubu e foi buscar o jegue no campo, enquanto Maria ficou colocando nos caçuás o que não venderam naquele dia.
Depois de trazer o jumento, Severino foi desmontando a barraca e carregando para o beco, onde a maioria das bancas ficava amontoada até o sábado seguinte. Antes de seguirem o caminho de casa, Severino ainda passou na barraca de dona Mariquinha, tomou um copo de vinho de jurubeba, a orelha esquentou, pagou com algumas moedas que trazia no bolso e voltou para pegar o jumento pela rédea, com Maria já acomodada no lombo e seguiram de rua abaixo.
Agora ele caminhava na frente puxando o jegue pela rédea. Passaram pela mercearia na curva da Rua Santa Cruz, fizeram as compras, depois enfrentaram a longa caminhada de volta para casa.
Pela promessa acordada entre eles, chegando a casa, ninguém poderia comentar, nem sequer pensar, nas peripécias de cada um naquele dia. Era entrar em casa, jogar o apurado sobre a mesa e correr para a rede. No dia seguinte era domingo e precisavam acordar cedo para a caçada.
Nicodemos quase não conseguia dormir no sábado, só pensando no dia seguinte. Adormecia com a baleadeira dentro de sua rede. Era sempre o primeiro, naquele quarto, a acordar na manhã de domingo; e balançando a rede de Severino, também o acordava. Maria também despertava, porque Nicodemos fazia muito barulho acordando Severino. Dormiam os três no mesmo quarto, cada um na sua rede e o candeeiro de flandres com o pavio de algodão embebido de querosene alumiava-os até a hora em que Isidoro se levantava e vinha apagá-lo.
Agora eles estavam no mato e os primeiros raios de sol começavam a clarear o domingo. Estavam caçando.
Isidoro sorrateiramente se aproxima de Severino, que nessa hora estava com a espingarda apontada para o alto de uma aroeira, e de mansinho, com uma mão toca-lhe no ombro e espera ele virar-se. Severino vira o rosto vagarosamente e depois volta para a sua posição anterior, sem dar-lhe chance de iniciar uma conversa. Na ocasião, Severino estava mirando um gavião no topo da árvore, mas com a chegada de seu pai o carcará se assustou e voou para bem longe. Severino esboçou irritação e bateu com a coronha da espingarda no chão.
— Cuidado, essa arma pode disparar — advertiu Isidoro.
Severino refeito de sua raiva momentânea tentou se justificar:
— Tinha um gavião lá em cima, estava na minha mira, mas o senhor conseguiu espantá-lo.
— Calma, meu filho — amenizou Isidoro. — Preciso conversar com você.
Severino assustou-se, ficou embaraçado com aquela atitude repentina de seu pai, mas o encarou e esperou o bombardeio. Porém seu pai só queria saber quem teria vomitado no terreiro na noite anterior. Isidoro naquele momento estava suspeitando que alguém de sua casa tivesse feito àquela sujeira. Não havia passagem de bêbados por dentro do sítio, então aquilo só poderia ter sido feito por alguém que morava com ele debaixo do mesmo teto. Nicodemos e Idalina estavam descartados, pois ele passara o dia todo de sábado dentro de casa com eles. Então, agora só havia Severino e Maria como suspeitos.
Severino apenas respondeu que não sabia quem teria vomitado no terreiro e seu pai deu o caso por encerrado, mesmo desconfiando que um dos dois fosse o responsável por aquela imundície, pois o vômito tinha um odor acre de vinho. Ele sabia de cor o cheiro de vinho de jurubeba, mas deixou passar e continuaram caçando.
O vômito deixado no terreiro naquele sábado era na verdade obra de Severino. Pois encabulado com a atitude de Maria durante todo o dia na feira, ele se excedeu no vinho e com o estômago embrulhado pela mistura de álcool e petiscos, saiu pelo caminho engulhando e segurando aquele mal-estar até chegar ao terreiro de casa. Acocorou-se ao pé da cerca e jogou para fora tudo que o incomodava na barriga. Nem o vira-lata teve coragem de chegar perto daquela sujeira. Apenas farejou à distância e correu soprando pelas narinas para deitar-se ao pé da porta da cozinha. Nem sequer olhou mais para o terreiro da frente. Ficou deitado olhando para o riacho.
O incidente daquele sábado deixou Isidoro mais vigilante, apesar de que já sabia que Severino gostava de tomar vinho, mas para chegar ao ponto de vomitar, jamais passara por sua cabeça.
— “Se ele (Severino) não conseguiria mais se controlar, como iria tomar conta da barraca e de sua irmã”? — pensava Isidoro.
Depois desse inconveniente Isidoro não mais iria deixar os dois irem sozinhos para a feira, seria mais precavido. Não disse nada a eles, apenas escondeu essa sua decisão.
A semana estava transcorrendo normalmente, até que na quarta-feira, no fim da tarde, quando todos estavam na roça, Maria correu e ficou embaixo do umbuzeiro, encostada ao seu tronco curto. Apenas Severino percebeu, porque Isidoro estava trabalhando com afinco na roça, enquanto Nicodemos, como sempre, estava correndo atrás dos calangos.
Severino percebendo que Maria não estava bem, e vendo-a encostada ao umbuzeiro, foi correndo ao seu encontro, para socorrer a sua irmã que já arriava sem forças ao chão. Severino se aproximou, olhou-a demoradamente e carinhosamente a inquiriu sobre a sua situação. Naquele momento ele demonstrava preocupação.
Maria virou-se devagar e encostou-se ao ombro do irmão, respirando com dificuldade. Os olhos dela corriam de um lado para o outro, para ter certeza de que o pai não estava por perto. Então, em um fio de voz quase sussurrado, confidenciou:
— Severino… eu tenho um segredo para lhe contar.
Severino ficou curioso e também colocou o braço ao redor do pescoço dela.
— Então conta. Desembucha logo!
— Você promete que fica só entre nós dois? Nem mãe deve saber dessa história.
Severino estava a cada minuto ficando mais nervoso e também preocupado. Olhou por cima do ombro para ver se seu pai continuava no mesmo lugar; ele estava no mesmo lugar e também Nicodemos continuava caçando os seus calangos, e aproveitando-se da discrição do lugar, murmurou:
— Eu prometo — e continuou —, mas diz logo que segredo é esse!
Ele já não aguentava mais esperar que Maria revelasse logo esse tal segredo. Mostrando nervosismo, segura-a pelo queixo, olha dentro de seus olhos e quase gritando, implora:
— Maria, o que está acontecendo?
Maria com os olhos molhados se afasta um pouco, olha para o alto do umbuzeiro e desabafa:
— Severino, eu acho que estou grávida.
A reação de Severino nesta hora foi fraternal. Abraçou-a e afagando seus cabelos choraram juntos. Alguns minutos se passaram com eles nessa posição. Os dois foram despertados com o pequeno Nicodemos trazendo um calango morto, segurado pela cauda, roçando-o nos pés descalços de Severino, que na hora tomou um susto e de um salto já estava com o pirralho nos braços. Nicodemos procurando o chão, só esperneava.
Maria ainda encostada ao tronco do umbuzeiro agora ensaiava um sorriso tímido, enquanto Severino colocava o pequeno Nicodemos no chão, e dando-lhe um tapa no traseiro, os três voltaram para a roça quando Isidoro já vinha com a enxada ao ombro. Ao passar por eles, não deixou de dar a sua bronca:
— Peguem o resto das coisas! Agora deram para ficarem de conversa no umbuzeiro, seus imprestáveis!
Ninguém falou nada. Passaram por ele, cada um pegou o seu material e correram para acompanhá-lo. Seguiram pela vereda, com Isidoro sempre na frente. Nicodemos por último, atanazando a vida dos calangos e das lagartixas que estavam à beira da estrada, sendo muitas vezes puxado por Maria, que não desgrudava dele.
Durante o trajeto de volta para casa Severino ia pensando na reação de seu pai quando soubesse que Maria estava buchuda. Ele estava até se sentindo culpado, pois tivera a oportunidade de cuidar de sua irmã nas muitas vezes em que foram para a feira de Itaíba, mas não fora eficaz nessa tarefa tão natural. Não mais se concentrava em nada, apenas na confusão que estava desenhando-se em derredor de si. Maria lhe contara um segredo, estava esperando um filho. Era sua irmã adolescente, sem noção nenhuma de como ser mãe e ainda por cima com o pai que eles tinham. A desgraça estava feita, Severino sabia disso. Já estava com dezenove anos e não era nem um idiota para não enxergar o que iria acontecer com eles dali em diante.
Como sempre Idalina ficava na porta olhando para o caminho que os trazia de volta para casa, e Piaba no terreiro, deitado e abocanhando as moscas que pululavam ao redor de seu focinho. Quando cansava de engolir moscas, arriava a cabeça no chão morno e dormia.
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