EVANDRO NUNES
O FUNERAL DA PROSTITUTA
Para meus pais,
Massilon Nunes da Silva
Gessi Nunes Pereira
E, endireitando-se Jesus e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão àqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?
E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus:
Nem eu também te condeno: vai-te e não peques mais.
João 8, 10-11
SUMÁRIO
O FUNERAL DA PROSTITUTA
PRIMEIRA PARTE
UM LUGAR PARECIDO COM O CÉU
CAPÍTULO UM................................................................................................11
CAPÍTULO DOIS.............................................................................................15
CAPÍTULO TRÊS............................................................................................20
CAPÍTULO QUATRO......................................................................................22
CAPÍTULO CINCO..........................................................................................25
CAPÍTULO SEIS..............................................................................................31
CAPÍTULO SETE............................................................................................37
CAPÍTULO OITO.............................................................................................41
CAPÍTULO NOVE............................................................................................50
CAPÍTULO DEZ...............................................................................................58
SEGUNDA PARTE
MUITAS PORTAS SERÃO ABERTAS...
CAPÍTULO UM................................................................................................67
CAPÍTULO DOIS.............................................................................................78
CAPÍTULO TRÊS............................................................................................87
CAPÍTULO QUATRO......................................................................................94
CAPÍTULO CINCO........................................................................................100
CAPÍTULO SEIS............................................................................................105
CAPÍTULO SETE..........................................................................................108
CAPÍTULO OITO...........................................................................................120
CAPÍTULO NOVE..........................................................................................127
TERCEIRA PARTE
UMA GANGORRA EMOCIONAL
CAPÍTULO UM..............................................................................................139
CAPÍTULO DOIS...........................................................................................146
CAPÍTULO TRÊS..........................................................................................158
CAPÍTULO QUATRO....................................................................................162
CAPÍTULO CINCO........................................................................................170
CAPÍTULO SEIS............................................................................................178
EPÍLOGO.......................................................................................................182
PRIMEIRA PARTE
UM LUGAR PARECIDO COM O CÉU
CAPÍTULO UM
Depois de deixar a igreja, o cortejo fúnebre seguia lentamente pelas ruas de Águas Belas, subindo a ladeira. Nesse trajeto, alguns curiosos estavam parados ao longo da calçada, outros estavam debruçados no parapeito da janela apenas para vê-lo passar, enquanto se contava pelos dedos das mãos às pessoas que seguiam ou precediam o esquife que subia a rua em direção ao campo santo. Não era um funeral concorrido, mas aos poucos, à medida que o caixão passava pela rua, quem estava à toa ia juntando-se ao cortejo e o calçamento pouco a pouco era tomado de gente. Essas pessoas indiferentes queriam apenas fugir da monotonia daquele lugar. Era o que se lia nesses rostos que iam acompanhando a morta.
Nenhum automóvel acompanhava o funeral, apenas aqueles motoristas mais apressados buzinavam pedindo passagem.
Não chovia nesse dia, sinal de que a natureza não chorava à falecida; era uma tarde quente, sem vento, mormacenta e as folhas dos pés de algaroba ao longo da calçada nem se mexiam. O enterro continuava subindo a rua, caminho do cemitério.
Da catedral ao cemitério o caminho era curto. Subia-se a Rua Constantino Lavrador e logo à margem esquerda do rio, que estava do lado de Águas Belas, ficava o campo santo. Não havia necessidade de descanso para os carregadores — eles disfarçadamente trocavam de posição — e caminhavam a passos curtos, pois se acredita que um corpo defunto fica mais leve devido à saída da alma e a falecida estava sendo levada com folga nesta sua última viagem.
Nessa época os carros funerários eram para os ricos e dona Bia não quis arcar com essa despesa. Para ela bastava o prejuízo que a falecida deixara no seu bar e a cachaça servida de graça durante o velório.
Durante a caminhada dona Bia afastou-se das meninas e quase correndo chegou junto aos carregadores e perguntou-lhes:
— Vocês não querem descansar um pouco? Essa menina deve estar pesando...
— Não, minha senhora. Vamos devolvê-la ao pó, porque tudo vem do pó e tudo retorna ao pó. O espírito volte a Deus, que o concedeu — respondeu um dos carregadores, muito seguro de seu conhecimento bíblico.
— Tudo bem, meus queridos — respondeu dona Bia. — Depois diminuiu seus passos até acompanhar as meninas que seguiam mais lentamente.
Mais adiante, quando o enterro deixava a Rua Constantino Lavrador, avistando-se dali o cemitério, algumas beatas estavam paradas na esquina que encerrava a rua, eufóricas e satisfeitas com a morte de uma pecadora irremediável, para elas.
— Queria assistir daqui desta calçada, todo santo dia, a passagem de um enterro com uma dessas vagabundas dentro do caixão!
— Pois eu queria que o caixão passasse trazendo a velha cafetina! —E caíram na risada, depois dessa frase agourenta.
No cemitério, o coveiro acabava de preparar a cova e exausto, com o suor a escorrer pelo rosto, sentou-se sobre a terra retirada, ainda fofa e fria, largando ao seu lado a pá e a picareta e naquele momento, olhando para a imensidão do céu, falava consigo, dizendo: — “Muitas almas que agora estão ali dentro, e também aquelas que não conseguiram entrar, devem neste momento estar me agradecendo por eu ter guardado aqui neste chão - e batia com a mão aberta sobre a terra – os seus restos mortais". — Depois se virando para a pá e a picareta, continuava: —"Só quero ver quem será o desgraçado que se vai dar ao trabalho de guardar o meu, quando ele parar de se mexer e fechar estes olhos que a terra fria há de comer". — Em seguida começou a jogar punhados de terra sobre a pá que estava ao seu lado.
Enquanto isso, o funeral da prostituta cruzava o portão do cemitério, trazendo à frente e atrás do esquife, muitos curiosos, assim como um pequeno número de pessoas que se lembravam dela; mas nenhum familiar seu.
Nem pai, nem mãe, nem irmãos.... Enfim, nenhum parente.
Os muitos curiosos que acompanharam o enterro, agora estavam zanzando no cemitério, pisoteando covas e túmulos; e depois de bisbilhotarem por todos os cantos daquela necrópole cercada de muros, foram pouco a pouco se retirando, indiferentes ao sepultamento que iria acontecer em seguida.
Entrementes, o ataúde foi colocado à beira da cova, enquanto um número acanhado de pessoas ficou ali em desânimo, inicialmente em silêncio. Apenas dona Bia trazia numa das mãos um punhado de flores, aparentemente murchas.
Minutos depois a matrona se ajeitou, passou a mão sobre a testa molhada de suor e apertando as têmporas, tomou a iniciativa:
— Bem, meninas...
Neste momento as meninas do bordel, que estavam prostradas ao lado do caixão, deram-se as mãos e ficaram serenas, olhando para o rosto de dona Bia. A velha meretriz continuou:
— Que nosso bom Deus perdoe essa alma, assim como o seu Filho não condenou a mulher adúltera... São estas as minhas últimas palavras para essa mulher. Agora, enterrem-na.
O caixão foi vagarosamente descido de cova adentro, batendo de leve no fundo e aquietando-se. Apenas os carregadores e as prostitutas, além do coveiro, acompanharam o esquife descer.
O primeiro punhado de terra bateu sobre a tampa do ataúde jogado por dona Bia, sendo em seguida imitada pelas meninas de seu cabaré e também pelos carregadores. Depois o coveiro pegou a sua pá e concluiu a inumação do cadáver, enchendo todo aquele buraco de terra.
Concluído o serviço, e de novo sozinho dentro daquele cemitério, ele se encostou a sua pá e novamente resmungando consigo mesmo, desabafou: — “É de lascar esta minha vida. Abro um buraco a sete palmos de chão adentro... e depois? Volto a jogar a mesma terra no mesmo buraco”.
Após deixar a cova de Maria bem arrumadinha, com aquelas flores quase murchas sobre a terra fofa, com um crucifixo de madeira na cabeceira, sem nome, e nem sequer um epitáfio numa lápide de papelão, pegou a sua pá e a sua picareta e seguiu a passos lentos para abrir mais uma cova.
Caminhava por entre os vários túmulos silenciosos daquele cemitério, quando mais adiante parou, olhou para trás por cima do ombro, e de onde estava avistou a cova de Maria lá em cima. Tomou um leve susto no momento, mas em seguida se refez, balançou a cabeça de um lado para o outro e seguiu seu caminho, falando de novo para si mesmo: — "Besteira essa minha agora. É só mais um corpo que acabei de sepultar".
Depois riu de si para si, e foi andando para abrir mais uma cova.
Passados alguns minutos, outro enterro arrastava-se pelo cemitério, lento e pesado como o luto que pairava no ar. Era o do proprietário de uma lanchonete da rodoviária improvisada de Águas Belas — o mesmo que, na volta da pequena Maria à cidade, a saciara em troca de sexo, faminta depois de uma longa e exaustiva viagem.
Também este corpo foi lançado à cova às pressas, sem cerimônia, embora mais pessoas chorassem à beira do buraco, impotentes diante da efemeridade da vida e da crueldade da morte.
Quando o funeral terminou, a noite caía como um manto sufocante, e o sol, já afundando no horizonte, encerrava lentamente mais um dia de enterros naquele cemitério, como se cada adeus fosse apenas mais um ponto de decadência na cidade esquecida.
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