CAPÍTULO OITO
Verão de 1980, madrugada de sábado.
Isidoro encheu os caçuás, colocou-os no lombo do jumento e acordando Severino e Maria, mandou-os para a feira de Itaíba. Nesse dia ele não iria junto, também não explicou o motivo a eles. Talvez quisesse testá-los, ou quem sabe, nessa madrugada estivesse indisposto para ir àquela feira. Os dois seguiram de madrugada para Itaíba. Maria montada no jumento e Severino seguindo atrás, olhar amarrado ao chão que passava sob seus pés.
Ao chegarem à cidade cumpriram o ritual de todos os sábados.
Depois começaram a vender num ritmo acanhado as mercadorias trazidas para a feira. Lá pelas tantas, Maria deixa Severino sozinho na banca e sai pela rua, até se perder de vista. Nessa época ela já completara catorze anos, era uma morena formosa, olhos negros e cabelos lisos, uma boca carnuda, coxas generosas e um olhar penetrante. Era faceira e fogosa, e, nessa tarde, trazia os cabelos soltos e uma flor na cabeça. Caminhava pela calçada para algum lugar, chupando um picolé e rebolando a cada passada, para desespero daquele magote de macho que parava babando-se ao vê-la passar. Ela nem ligava para aqueles assédios. Simplesmente continuava caminhando determinada para um lugar ao fim da rua, um lugar onde não havia mais feira.
Enquanto isso, Severino ficara sozinho na banquinha, vendendo seus produtos, pesando, passando troco e ainda por cima preocupado com a sua irmã que desaparecera. Seu pai pedira para ele tomar conta dela, pois Maria ainda era uma adolescente e precisava de proteção e cuidados. O pior de tudo era que o coitado não podia sair a sua procura. Ele não podia deixar tudo para trás e sair pela feira procurando-a. Sozinho naquela banca, ele estava preso e se corroendo por dentro, só pensando besteiras. Tinha vontade de deixar tudo para trás e sair pelo meio do povo à procura daquela leviana. Seu pai havia confiado a banca aos dois. O problema de Severino não era apenas o fato de ficar sozinho na banca vendendo as mercadorias, já estava sentindo medo de perdê-la.
Havia momentos na feira no qual uma barraca ficava sem vender nada por um grande espaço de tempo. O povo chegava, olhava o produto exposto, apalpava, revirava, perguntava o preço e passava adiante para fazer a mesma coisa em outra barraca. O feirante já conhecia esse comportamento do freguês. Nessa hora Severino ficava matutando, pensando no que aconteceria se naquele momento ele abandonasse a barraca e saísse rua afora a procura de Maria.
De repente na sua cabeça pensamentos obscenos se infiltravam e mostrava-lhe a irmã agarrada aos beijos com um homem, num beco. Nessa hora, alguém o chamando despertava-o para a realidade. Era uma senhora que olhava com interesse as macaxeiras e depois de algum tempo decide comprar um quilo. Depois desta venda realizada, Severino sentou-se novamente no seu tamborete, olhou para o céu limpo, depois olhando para o vizinho ao lado, decidiu sair à procura de Maria. Pediu ao colega ao lado que olhasse a sua barraca e disparou de rua afora. Saiu pela feira, olhando para um lado, olhando o outro, e continuou a procurar. Por precaução, antes de sair, botou a peixeira na bainha, colocou-a na cintura e apressado dirigiu-se aos becos que ficavam no fim da feira. Passou pelo primeiro, parou na entrada do segundo, olhou até onde a vista alcançava e nada. Apenas alguns bêbados mijando no canto da parede. Seguiu em frente.
Terceiro beco, quarto, último beco e nada.
Nessa sua caçada malograda pelos becos, ele se deparou com muitos casais agarrados, mas nada de sua irmã. Aí deu meia-volta, olhou para a feira que ainda borbulhava de gente e pensou: — "Que ignorância essa minha. Quem sabe a coitadinha não saiu pela feira para olhar as bancas de roupas e miudezas, e agora está na barraca doidinha sem saber onde estou. Esqueci até de dizer ao vizinho aonde eu iria".
Resolveu voltar para a barraca.
Quando caminhou um curto pedaço de chão, teve um pressentimento repentino. Voltou-se para a estrada de Negras, que era um povoado de Itaíba nessa época, na divisa de Pernambuco com Alagoas, e de sua posição e da distância em que se encontrava, ele apostava que havia gente escorada ao tronco de um ipê a beira da estrada. Naquele momento ele decidiu ir até lá e verificar de perto. Saiu caminhando na direção do ipê. À medida que ele se aproximava, os vultos iam ficando mais nítidos, tomando a forma de gente. Aproximando-se, Severino viu uma pessoa tentar correr para o mato, mas foi agarrada pelo braço e puxada com força. A essa altura Severino já distinguia o que era gente e o que era árvore. Parou à frente dos dois, ajeitou a faca na cintura; o outro que segurava Maria também mexeu na cintura e os dois ficaram encarando-se. Maria aparentando nervosismo se desvencilhou de seu amásio e correu para o lado. Os dois continuaram se olhando.
Foi Maria quem intercedeu:
— Severino, deixa disso! Ele tem um revólver!
— E saia já daqui, antes que eu livre o mundo da sua presença — disse Marcelo, já com a mão na cintura.
Severino tomou uma decisão inteligente naquela hora; percebendo que estava em desvantagem, calmamente pegou a irmã pelo braço e seguiram desolados a caminho da feira. O namorado de Maria apenas ficou olhando os dois seguindo pela estrada; depois deu um chute no chão e foi pegar o seu cavalo que pastava a alguns metros do ipê. Passou pelos dois irmãos em disparada e entrou na feira, afastando as pessoas para a calçada e sumiu.
Severino ficou olhando-o até perdê-lo de vista e alguma coisa lhe dizia que conhecia aquele rosto de algum lugar. Ficou por alguns instantes matutando, matutando, matutando, tentando rememorar onde o teria visto, mas depois de muito revirar o cérebro, chegou à conclusão de que aquela cara peculiar ficava quase todas as manhãs ocupando o centro da janela de sua escola, observando a aula à espera da professorinha, que talvez fosse a sua namorada ou uma parenta.
Talvez tenha sido daquela janela o começo de tudo.
Severino na sua ingenuidade, nunca percebeu nada de estranho naquela figura estranha às aulas, nem tampouco na professora; mas quando aquele rapaz vinha à escola e se debruçava sobre o parapeito da janela, Maria se desconcentrava das aulas e fingindo estar escrevendo, dava rápidas olhadelas para a janela e voltava a baixar a cabeça para o caderno, sendo muitas vezes também retribuída com um olhar vindo da janela. Severino aos poucos ia juntando as duas pontas dessa história e chegou à conclusão de que ele estava certo. Aquele era o sujeito da janela de sua escola, não havia dúvida.
Os dois voltaram para a barraca, mas não havia mais clima para continuarem vendendo. As acusações eram mútuas, cada um se defendia do seu jeito. Teve um momento em que Maria reconhecendo o seu erro, curvou-se diante de Severino e em seguida lhe acariciando a cabeça, implorou:
— Severino, não fique com raiva não. É só guardar segredo para não complicar mais. Se você contar alguma coisa em casa, pai nunca mais vai deixar a gente vir sozinhos para a feira.
De tanta raiva contida, Severino nem sequer ouviu o que Maria estava falando. Pela primeira vez em sua vida sentira medo; nunca havia ficado frente a frente com alguém portando um revólver.
Terminada a feira, desmontaram a barraca, Severino pegou o jegue no campo, fizeram as compras na mercearia da esquina e seguiram pela estrada. Maria na frente, montada no jumento e Severino caminhando atrás, sempre olhando o chão que passava sob seus pés.
A estrada estava tomada por um silêncio só quebrado pelo ronco do motor de algum carro que passava. Nesse momento Severino estava indeciso, não sabia o que dizer em casa sobre o apurado tão minguado daquele dia; até ficou devendo na mercearia. Seu pai não iria engolir nenhuma desculpa, ele conhecia aquela feira, sabia o quanto era lucrativa.
Até aquele momento os dois caminhavam pela estrada em silêncio, só sendo quebrado quando Maria diminuiu as passadas do jegue, propositalmente, esperou que Severino ficasse caminhando ao seu lado para que pudesse explicar-lhe o que de fato ocorrera naquela tarde na feira. Quando ele finalmente chegou ao seu lado, ela tentou se justificar:
— Severino, eu sei que você está encabulado com tudo o que aconteceu hoje, mas preciso esclarecer algumas coisas.
Severino apenas a olhou pelo canto do olho e depois continuou olhando para o chão, caminhando ao lado do jumento. Maria continuava tentando puxar conversa com ele.
— Aquele menino que estava comigo não fazia nada demais quando você chegou. É meu namorado. Toda menina quando chega a essa idade precisa de um namorado. Você também precisa de uma namorada, e já está até passando da hora. Eu só quero que você finja que nada viu. Está bem assim?
Severino coçou a ponta do nariz, olhou para o mato que crescia ao lado da pista e finalmente resmungou:
— Eu não vou falar nada em casa não. Só quero pedir a você que não faça mais isso.
— Está bem, prometo.
Seguiram calados por aquela estrada escura e deserta àquela hora, apenas de vez em quando ouviam o piá de uma coruja, ou o canto agourento de uma rasga-mortalha que passava rápida no céu escuro. Os dois chegaram a casa quase à meia-noite e Isidoro os esperava sentado no mourão da porteira, olhando para a estrada que vinha de Itaíba.
Quando alcançaram a porteira, o medo de uma surra era tão grande, que fingiram não ver o pai e entraram no sítio apressados. Severino quase correndo e Maria açoitando o jegue para que ele aumentasse as passadas. Isidoro desceu do mourão e saiu caminhando atrás deles até o terreiro de casa. Como a porta da frente estava apenas encostada, os dois nem esperaram Isidoro chegar. Entraram rapidamente e foram deitar-se. Idalina e Nicodemos já estavam dormindo.
Eles entraram tão apressados que esqueceram até do jumentinho, que ficou pastando no oitão da casa, ainda com os caçuás nas costas, carregados com as compras e com o que sobrou da feira. Foi Isidoro quem arriou os caçuás e levou o jegue para o curral.
Depois entrou em casa sem capricho e cego de raiva; já na sala tirou o cinturão, dobrando-o na mão e correu para o quarto de seus filhos. Chegou à porta, olhou para as redes e percebeu que eles já estavam dormindo. Nicodemos, o caçula, dormia a sono solto que a rede nem balançava, mas Severino e Maria apenas fingiam que dormiam. Eles sabiam que no dia seguinte Isidoro acordaria mais comedido e a vida continuaria normalmente. Eram filhos de Isidoro e já estavam acostumados com a bipolaridade dele.
No dia seguinte o sol preguiçosamente ia surgindo no horizonte e banhando com seus raios ainda cálidos, aquela manhã de domingo. Isidoro acordou cedo neste dia. Acendeu o fogão de lenha, colocou água na chaleira para fazer o café, levou ao fogo, depois botou no caldeirão a batata-doce para cozinhar. Enquanto o café fervia e as batatas cozinhavam, ele pegou a espingarda soca-soca, o bisaco com a munição e dirigiu-se ao terreiro para limpá-la e carregar os cartuchos. Só o chiado de água fervendo era ouvido dentro de casa. Todo mundo ainda dormia àquela hora.
Foi Idalina quem primeiro se levantou, e ainda bocejando, limpou as remelas dos olhos, pegou uma caneca de alumínio com água, um fruto de juá que ficava guardado numa vasilha na cristaleira, sentou-se no limiar da porta da cozinha e começou a escovar os dentes. A escovação era feita esfregando o juá nos dentes (juá é uma frutinha esférica do tamanho de uma cereja, de cor amarelada, doce, com uma semente em seu interior, comestíveis, e possuem uma casca rica em saponina, usada para fazer sabão e produtos de limpeza para os dentes). Depois da limpeza bucal e de lavar o rosto com o resto da água, Idalina assumiu a cozinha e terminou de preparar o desjejum. Os meninos à medida que iam acordando também limpavam os dentes com juá, lavavam o rosto, e corriam para a mesa.
O café da manhã sempre acontecia com todos à mesa. Se um dos meninos, ou mesmo Isidoro beliscasse alguma coisa que estivesse na mesa antes de todos se sentarem, Idalina repreendia o apressado com um tapa na mão. Porém antes das refeições todos tinham o hábito de orar à mesa. Afinal, naquela casa eles eram tementes a Deus, apesar de nunca terem entrado numa igreja.
“Senhor, abençoe o precioso alimento que coloca na nossa mesa, que ele nunca nos falte. Amém!” Era essa a oração de sempre.
Depois do café, como Isidoro foi o primeiro a deixar a mesa, saiu para o terreiro, e com um bisaco a tiracolo e a espingarda na mão, ficou esperando Severino e Nicodemos para a caçada daquele domingo.
Idalina e Maria ficavam arrumando a casa. Maria pegava um cesto de palha e saía para colher flores no quintal. Eram flores pequenas de ervas daninhas que pela manhã ainda estavam molhadas do orvalho da madrugada. Aquelas flores silvestres ainda lacrimejavam gotas de orvalho. Maria juntava um monte delas e voltava para casa correndo para colocá-las sobre a mesa num jarro de louça com as beiradas trincadas. Com essas flores silvestres a casa exalava um perfume adocicado misturado com cheiro de mato.
Maria ficava tão feliz ajudando Idalina a arrumar a casa, que passava esses momentos dançando e cantando. Às vezes parava na sala, segurava o cabo de vassoura pelo meio com uma mão, e sentindo-se num palco sem plateia, cantava e rebolava. Idalina na cozinha balançava a cabeça negativamente e se contendo para não zombar daquela cena, gritava para Maria acordar:
— Minha filha, vamos terminar logo com isso!
Ao ouvir a voz de sua mãe, ela voltava a si e continuava levantando poeira do chão, porque nenhum cômodo da casa era cimentado. Para varrer a casa sem levantar poeira, antes teriam que molhar o chão. De vez em quando elas ouviam o pipocar de um tiro no mato e o bater de asas dos pássaros em revoada. Era Isidoro e os meninos embrenhados no mato, caçando.
Terminada a limpeza da casa, Idalina e Maria corriam para a cozinha. Tirava-se a cinza das duas bocas do fogão de barro, colocava-se o feijão no fogo e enquanto estava cozinhando, outra panela era colocada com água para ferver; sempre colocando mais lenha para o fogo não se apagar. As duas ficavam esperando Isidoro e os meninos com as caças. Quando os três chegavam, jogavam os bisacos sobre a mesa e cada um procurava um cantinho para se esparramar e descansar.
Enquanto isso, mãe e filha iam retirando as caças dos bisacos, deixando-as cair na bacia de alumínio com um som seco de carne e metal. Em seguida, levavam-nas à beira do córrego. Ali se acocoravam, com panos na cabeça e facas na mão, mergulhadas no ofício repetido que unia suor, silêncio e costume.
Os animais abatidos estavam no bisaco misturados. Eles traziam preá, rolinha, nambu, tiú, nego tiziu que Nicodemos matava com seu estilingue, e até um calango com a cabeça esfacelada havia sido retirado do bisaco de Nicodemos, neste domingo. O bicho foi jogado no quintal, mas nem Piaba quis comê-lo, apenas o cheirou e partiu para saborear as vísceras de outras caças que eram deixadas a beira do riacho. Ele chegava para afugentar as moscas que pululavam ao redor das entranhas.
Todo domingo era assim, um verdadeiro banquete. Sempre sobrava carne para ser consumida durante a semana. As sobras eram salgadas e colocadas no arame amarrado sobre o fogão para secar.
Os meninos adoravam o domingo.
Tanto era assim que, durante a semana, deitados na rede, Nicodemos vivia perguntando aos irmãos se o amanhã já seria domingo. As conversas se estendiam noite adentro, embaladas pelo chiar das cordas nos armadores. Maria, sem conseguir adormecer, acabava reclamando, com voz de cansaço e autoridade:
— Vê se vocês dormem! Amanhã ainda é quarta-feira, e é dia de roçado!
Diante da bronca, os dois se encolhiam sob o lençol e, em silêncio, deixavam a noite seguir seu curso.
— Será que depois de quarta ainda vai demorar chegar domingo? — Tentava mais uma vez Nicodemos, mas sem obter resposta, calava-se e pegava no sono.
Isidoro de sua cama já estava irritado com aquele cochicho vindo do quarto dos meninos, e perdendo o controle de si, vai até o quarto deles e apaga o candeeiro soprando-o, para que eles dormissem.
Para àquela família, o domingo era o dia mais festivo da semana, e quando este dia tão esperado chegava, eles, os machos, se embrenhavam na mata. Isidoro à frente com a espingarda soca-soca e os meninos logo atrás. Nicodemos com a sua baleadeira e Severino com uma espingarda soca-tempero. Piaba sempre se atrasava pelo caminho, pois vinha farejando as touceiras de mato e parando para mijar nas ribanceiras ao longo da vereda. Não se demorava a acompanhá-los.
Assim que Nicodemos começou a sair com eles para as caçadas, foi Severino quem o ensinou a atirar de baleadeira. Agora ele caçava sozinho ao redor dos pés de jurema os tizius, golinhas e uma vez ou outra, um beija-flor. Porém nem todo domingo o pequeno Nicodemos tinha êxito na sua caçada. Quando derrubava um beija-flor, que muitas vezes caía só de susto, ele ficava pulando e se achando um grande caçador. Acontecia que muitas vezes, enquanto ele comemorava, o passarinho se recuperava do susto, batia as asas e saía voando. Nicodemos olhava para cima, acompanhava a fuga do beija-flor e depois ficava esperneando, e jogava a baleadeira no chão. Era sempre Severino quem o acalentava, encorajando-o a continuar.
Só que na segunda-feira tudo voltava ao normal naquele pequeno sítio.
Nesse dia, antes do alvorecer, Isidoro já estava no curral dando de comer aos bichos, depois ordenhou a vaca, em seguida limpou o cercado e jogou milho no terreiro para as galinhas que já estavam ciscando ao redor da casa. Quando entrou para o desjejum, Maria e Nicodemos já estavam saindo para a escola. Severino não mais estudava, havia sido tirado da escola ao aprender soletrar e saber de cor metade da tabuada. Também já estava acordado, encaminhando-se para a sala onde o material de trabalho estava no canto da parede. Eram duas enxadas, dois facões, uma foice e duas espingardas. Isidoro sempre levava as espingardas para a roça, porque enquanto trabalhavam, elas ficavam encostadas a um pé de jurema. Às vezes Isidoro ou Severino conseguia abater no caminho um preá, um tiú ou algumas rolinhas. Era pouco, mas sempre conseguiam colocar mais carne no arame sobre o fogão.
Os dois saíam para a roça a passos largos pela vereda, com o sol ainda morno. Passavam o dia no roçado, limpando, plantando ou colhendo. Quando Maria e Nicodemos voltavam da escola, jogavam os cadernos no quarto sobre as redes, ou então no canto da sala, almoçavam e depois cada qual pegava um prato sobre a mesa, já embrulhado em um pano, com o almoço de Isidoro e Severino e corriam para a roça. A essa altura eles já esperavam famintos, sentados à sombra de um juazeiro.
Maria e Nicodemos passavam as tardes inteiras na roça. Quando não estavam lançando sementes nas covas recém-abertas, colhiam feijão e milho, ou arrancavam raízes de macaxeira, que, ao serem puxadas pela maniva, espalhavam torrões de terra para todos os lados. Havia ainda a colheita da mandioca e da batata-doce. O dever de casa só encontrava vez à noite, deitados na rede, e, muitas vezes, o sono chegava antes de concluí-lo. Na manhã seguinte, porém, o preço do descuido era certo: tia Francisca, professora do Grupo Escolar, não perdoava. Quem aparecia sem o dever pronto era posto de castigo, de joelhos sobre grãos de milho, num canto da sala.
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