CAPÍTULO CINCO
Vamos
deixar Maria a caminho de Recife e contar o que aconteceu do outro lado do rio
Ipanema nesses dois anos enquanto ela perambulava pelas ruas de Águas Belas até
ser acolhida ao cabaré de dona Bia.
Depois
daquela madrugada que levou Maria para as ruas, as notícias sobre o seu
paradeiro chegavam aos ouvidos de Isidoro a todo instante, principalmente na
feira de Itaíba. Sempre havia alguém para fofocar que encontrara a sua filha
vagando com um bando de moleques pelas ruas de Águas Belas. Até insinuavam que
ela, apesar de estar buchuda, continuava prostituindo-se. Isidoro ouvia aquelas
invencionices e continuava o seu trabalho normalmente, sem deixar transparecer
que naquele momento sentia um aperto no peito.
Idalina
sofria mais, chegando a chorar ao ouvir aqueles comentários.
O
pequeno Nicodemos insistia em saber quando a sua irmã iria voltar, pois sempre se
queixava de que estava indo sozinho para a escola, e que os meninos de sua sala
diziam que ela agora era uma quenga.
— Mãe, o que é quenga? — perguntava Nicodemos na sua inocência.
— Nicó, vamos fazer as suas tarefas de casa! — Idalina sempre mudava de assunto quando o pequeno
Nicodemos queria saber algo a respeito de Maria.
A
rede que fora de Maria continuava enrolada no gancho de seu quarto, na parede.
Idalina ainda tinha esperanças de que ela voltasse para casa um dia. A vida
continuava passando normalmente naquele sítio, apesar dos infortúnios dos
últimos dias.
Durante
a semana continuavam trabalhando na roça; aos sábados Isidoro ia com Severino
para vender o que colhiam no roçado, na feira de Itaíba. Agora ele estava
fazendo só uma feira, pois devido aos comentários que sempre ouvia sobre a sua
filha, não iria mais para Águas Belas. Idalina também se recusava a fazer
compras naquela cidade, temia encontrá-la aos farrapos perambulando pelas ruas,
catando sobras de comida pelas calçadas.
Não
obstante, aos domingos continuavam saindo para caçar.
Agora
Idalina ficava sozinha em casa cuidando de tudo. No começo tentaram deixar Nicodemos
fazendo-lhe companhia, mas ele chorou tanto, esperneou tanto para
acompanhá-los, que Severino teve dó e pegando-o pelo braço, mandou-o buscar o seu
estilingue e partiram para mais um domingo de caçada. Idalina ficava na porta
da frente, limpando as mãos no avental, olhando-os até sumirem no mato.
Num
certo domingo, Isidoro estava com Severino embaixo de um umbuzeiro,
descansando, enquanto o pequeno Nicodemos continuava com seu estilingue
correndo atrás de calangos, e apontando a espingarda para o alto da árvore,
perguntou:
— Severino, um tiro de espingarda mata uma pessoa?
Severino
assustou-se com a pergunta e sem entender aonde o seu pai queria chegar,
respondeu-lhe:
— Mata não. Se o sujeito estiver usando um gibão de
couro, o chumbo nem atravessa.
— Mesmo acertando a cara? — continuou Isidoro.
Severino
mais uma vez ficou confuso e devolveu-lhe a pergunta: — Por que o senhor está perguntando isso?
— Nada não. Vamos continuar a nossa caçada.
Quando
estava deitado na rede para dormir, Severino não tirava de sua cabeça aquela
conversa que tivera com seu pai embaixo do umbuzeiro naquela manhã. De repente
uma luz acendeu-se no âmago de sua mente:
— "Aquelas indagações tinham a ver com Maria e com
Itaíba. Seu pai estava tramando alguma traquinagem”. Severino teimou que o
motivo daquele questionamento sobre se a espingarda era eficaz para matar
alguém, estava na cara que era porque Maria havia sido molestada e que a feira
agora passaria a ser um pretexto para a vingança que ardia no peito de seu pai.
Depois
desse ocorrido, sempre que saiam de madrugada para a feira, Severino procurava
nos caçuás se a espingarda estava escondida. Ficava aliviado quando descobria
que as duas estavam penduradas na parede da sala. Mesmo assim, ele passava o
dia na feira preocupado com o nervosismo de seu pai. Achava-o muitas vezes
ansioso e às vezes pensativo até demais; havia alguma coisa naquela feira
mexendo com os nervos dele. Até chegou a flagrar seu pai embrulhando num pedaço
de jornal velho uma peixeira de doze polegadas e colocá-la na cintura. Com esse
gesto, ele entendeu porque a espingarda nunca fora trazida para a feira. Talvez
seu pai estivesse convencido de que uma faca-peixeira fosse mais eficiente para
o que ele intencionava fazer.
Durante
a feira, Isidoro sempre saía, deixando Severino sozinho na banquinha; caminhava
um pouco pela feira, tomava uma cachaça com asa de galinha assada na barraca de
dona Mariquinha e depois voltava para ajudá-lo.
As
feiras foram passando, Isidoro a cada sábado mais nervoso, e Severino sempre
atento aos seus movimentos. Percebia-se pelo seu comportamento que a pessoa que
Isidoro queria avistar naquela feira nunca aparecia, pelo menos nos lugares onde
era procurado.
Por
pura insensatez ele se atreveu a perguntar nas quitandas onde bebia as suas
cachaças, o paradeiro do filho do coronel Apolônio. Os amigos o aconselharam a esquecer
daquele imbróglio e voltar para a sua barraquinha. O menino era filho de gente afortunada
e a corda sempre arrebenta do lado do mais fraco. Ele era um pobretão, morador
de um sítio abandonado pelo dono, e que aproveitasse dessa regalia e fosse
cuidar de sua família. Entregasse aquela bronca nas mãos de Deus ou de alguém
com mais lenha para queimar.
— Bota mais duas aqui pra gente! — E tomavam de um só gole.
Às
vezes ele também encontrava alguém com a mesma opinião sua.
— Você tem é que lavar sangue com sangue — aconselhava um mais empolgado.
— Só porque é rico, pensa que pode fazer tudo — completava outro, e continuavam encostados ao balcão
lorotando e bebendo. Isidoro apenas ouvia àqueles conselhos. Depois um bêbado
numa mesa, acrescentava:
— Se fosse comigo, esse moleque já estava debaixo do
chão.
Isidoro
sabia que tudo aquilo era só zoada de bêbado. O que ele queria saber era onde
estava o filho do coronel.
Essas
opiniões e insultos eram confidenciados nos botecos de Itaíba, mas logo
chegavam às ruas, às esquinas e aos becos. Chegavam a ultrapassar os limites da
cidade, caindo nos alpendres dos casarões de algumas fazendas, e as
consequências não tardariam a chegar aos autores dessas bravatas. Apesar de
tudo isso, Isidoro continuava firme com o seu intento, mesmo sabendo que o
mundo todo já estava sabendo de suas intenções. Ele não iria desistir.
Chamava-se
Marcelo o filho do coronel Apolônio, um dos fazendeiros mais influentes de toda
aquela região. Com toda essa grandeza, seu primogênito aproveitava para ficar
mexendo com as filhas alheias, escolhendo sempre as pobres que não tinham como
se defender e eram iludidas pelo tamanho da riqueza que fazia parte de seu
mundo. A maioria das meninas pobres de Itaíba deitou-se com ele, mas quase
todas terminaram sozinhas e buchudas.
Só que esse galanteador ainda
não havia conhecido um pai que se recusasse a dar as costas para uma desgraça
jogada sob o seu teto. Foi mexendo com a filha de um homem desse quilate que
Marcelo passou a se preocupar com as próprias traquinagens.
Isidoro, a essa altura, já
sabia que o filho do coronel havia tomado conhecimento dos boatos que corriam
pelas ruas e que talvez estivesse prevenido, confiante de sua blindagem. Estava
todo santo dia na cidade com seus capangas, passando quase o dia inteiro
bebendo nos bares espalhados pelas ruas.
— Quem é esse babaca que anda
me procurando nos botecos? — perguntava ele ao dono do bar. E, virando-se para
as mesas, continuava:
— Só era o que faltava! Alguém pode me dizer quem é esse otário?
Ficava esperando uma resposta,
olhando fixo para as mesas. Mas todo mundo permanecia calado.
Ciente de que não haveria
nenhuma delação, voltou-se para o balcão, encheu um copo de cerveja, ergueu-o
numa das mãos e subiu numa cadeira — o revólver à mostra, na cintura. Então,
vangloriava-se:
— Quando esse Zé-ninguém for descoberto, vai comer o pão que o diabo amassou!
Todos no bar caíram na
gargalhada, e a farra seguia sem hora para acabar.
Esse pai, até então
desconhecido de Marcelo, não demorou a ser descoberto — e, ao mesmo tempo,
ignorado.
O garoto continuava
tranquilamente levando uma vida de boemia, sempre protegido pela posição
privilegiada de seu pai, que tinha essa patente carregada por um costume antigo
do sertão. Quem possuía muitas terras e muito gado pastando nelas, recebia essa
alcunha para o resto de sua vida. Era respeitado e também um líder político. Era
por tudo isso que Marcelo achava que aquele feirante não seria uma ameaça, era só
mais um falastrão como tantos outros que ele viu colocar os cacarecos numa
carroça e sumir no mundo, antes que seu pai tomasse alguma atitude. Aqueles que
conseguiam fugir sempre levavam junto à mudança uma filha buchuda, resultado de
suas investidas. Quem não tinha a sorte de escapar, deixava a filha órfã num
cabaré de ponta de rua de uma cidadezinha qualquer da região. Assim eram
tratados os desafortunados que deixavam as filhas no raio de alcance daquele mancebo.
Na cidade ninguém censurava as estripulias de Marcelo, era sempre visto como um
bom menino. Só que esse menino também era feito de carne e osso, e foi num
sábado que ele sentiu pela primeira vez o medo.
Da
calçada, conversando com os amigos, avistou do outro lado da rua — numa barraca de feira — um homem com os olhos arregalados atirando faíscas de
fogo em sua direção. Naquele momento ele sentiu o seu peito doer e se
perguntou:
— "Que porra é isso"? — Mas logo voltou a conversar e aquietou-se. Depois se despediu
dos amigos e pela primeira vez deixou a feira mais cedo.
A
caminho da fazenda, cavalgando pela estrada, tentava adivinhar quem seria o homem
com aquele olhar que lhe causara tanto medo. Pensou em voltar e fazer o que
sempre fizera: encarar e desafiar. Naquele dia deixou-se levar pelo cavalo.
v