CAPÍTULO CINCO
Quarta-feira, junho de 1966.
O dia amanheceu com o céu fechado e não demorou muito para que uma chuva torrencial caísse sobre aquele agreste, inundando as terras que ficavam as margens do Rio Ipanema; rio que descia caudaloso dividindo os municípios de Águas Belas e Itaíba, entrando em Alagoas pelo município de Poço das Trincheiras para morrer engolido pelo grande Rio São Francisco. O sítio onde Isidoro, Idalina, o pequeno Bil e o cão Piaba moravam, ficava às margens desse rio, mas do lado de Itaíba.
Dentro daquela casinha eles esperavam calados que o tempo melhorasse, mas o tempo lá fora só piorava e o vento soprava forte cortando o matagal. O trovão entrava por debaixo da porta, estrondando na cozinha e os relâmpagos ricocheteando-se na escuridão do céu, enquanto num quarto cheio de goteiras, Idalina se contorcia com as primeiras contrações, enquanto Isidoro corria desesperado dentro de casa, nervoso, procurando um cobertor para que o pequeno Bil saísse correndo debaixo daquele temporal até a casa da parteira, que ficava a umas duas léguas de sua casa.
Não havia outra opção naquele momento. Ou Isidoro iria buscar a parteira e deixava a sua mulher com o pequeno Bil, ou ele ficava e o menino saía pelos meandros da mata à procura da parteira.
Isidoro achou mais conveniente à segunda opção.
Passou-lhe as informações precisas de como chegar à casa da parteira, que não havia nenhuma possibilidade de errar, seguindo o caminho de mato adentro, porque era uma vereda que passava roçando a porta da parteira. Lá se foi o menino, bombardeado pela chuva, enrolado num cobertor que logo ficou todo empapado, correndo ao longo da estreita vereda que serpenteava por dentro do mato, tropeçando nas poças d'água, para enfim chegar esbaforido a porta da casa procurada.
Cansado, caiu de joelhos e com as mãos jogou-se a porta da frente, gritando pela aparadeira. Recuperando o fôlego, esperou sentado no batente da porta que alguém dentro daquela casa desse um sinal de vida e viesse atendê-lo.
Minutos depois, pelas frestas da porta, ele se animou ao perceber que a luz de um candeeiro estava clareando lá dentro. Em seguida a porta de cima foi aberta e uma senhora gorda apoiou os peitos na parte de baixo e com a cara nada amistosa perguntou o que ele queria àquela hora da noite debaixo daquele temporal.
Meia hora depois aquela senhora gorda seguia em direção à casa de Isidoro, montada numa égua que saltitava pelo caminho cheio de lama e com muitas poças d'água. O menino seguia atrás, quase correndo, para não perder de vista a parteira que na sua frente açoitava a égua, ao mesmo tempo em que gritava um monte de impropérios. Na escuridão que os cobria, apenas o coaxar dos sapos e o cricri dos grilos era ouvido às margens da estrada.
A chuva não parava de descer do céu com violência.
De vez em quando a parteira brecava a égua, e sem descer de seu dorso, tirava do bornal que estava a tiracolo uma garrafa de cachaça, puxava a rolha de cortiça e colocando a garrafa na boca, dava uma golada bem forte, quase se sufocando. Depois tampava a garrafa, guardava-a no bornal, e olhando para o menino que tremia de frio à beira da estrada, esperando que a caminhada recomeçasse, balbuciava:
—Você ainda é uma criança para se esquentar com isso. Vamos em frente que durante a caminhada até a sua casa ainda vai haver muitas paradas desse tipo.
E a premonição se confirmou: depois dessa conversa, houve várias interrupções pelo caminho, até chegarem à casa de Isidoro.
Quando o dia começava a clarear, depois de uma viagem penosa, eles adentravam o terreiro da casa de Isidoro.
O menino molhado até os ossos, tremendo de bater os dentes, correu logo para dentro de casa, enquanto a parteira tentava acalmar a égua que não parava de rodopiar no terreiro, excitada pela presença do jumentinho que também ficara muito agitado, relinchando no curral.
Agora chovia manso e os passarinhos já saiam de seus ninhos para cantarem nos galhos das árvores. Lagartixas, preás e calangos também corriam cruzando a estrada, enquanto a aparadora, entre um palavrão e outro, desmontava da égua, e já no chão, tirava de seu bornal a garrafa de cachaça e dava mais uma golada; e descobrindo que esvaziara a garrafa, joga-a por cima da folhagem do pé de melancia que dormia todo orvalhado, à beira do quintal.
Ao ouvir aquela movimentação no terreiro, Isidoro foi correndo buscá-la pelo braço para socorrer a sua mulher que àquela altura já estava ficando com a cara arroxeada.
Ele já conhecia a velha parteira, tinha conhecimento de seu trabalho, mas também não era ignorado o hábito dela de fazer-se acompanhar de uma garrafa de pinga nos seus trabalhos de parto. Contudo todo mundo acreditava na sua competência, daquele sítio até o sopé da montanha. Nos botecos espalhados pela vizinhança, quando alguém bebia além do limite, dizia-se que aquele tivera a porta do mundo aberta pela velha parteira. Por isso Isidoro se preveniu e comprou umas garrafas de cachaça para a ocasião.
— Essa porra é zinebra! — vociferou a parteira, cuspindo no chão.
— Bil, pega lá na cozinha aquela outra garrafa — pediu Isidoro ao seu filho, enquanto não tirava os olhos de sua mulher que se contorcia de pernas abertas.
Em minutos o pequeno Bil estava de volta com uma caneca meia de cachaça.
— Esta está bem melhor. — E olhando para Isidoro, enquanto segurava a sua caneca de pinga, a parteira filosofava: — “Dizem por aí que cachorro bom é aquele que morde; que pimenta que não arde, não presta; e cachaça só presta se queimar a goela”. Zinebra é para aniversário de criança! — Depois caía na risada.
Após tomar mais uma lapada de cachaça, a parteira preparou um cigarro de palha, deu algumas tragadas, cuspiu no canto da parede, apagou a bituca, colocando-a presa a orelha e voltou ao serviço de parto.
Lá por fora, ela tinha largado a égua solta, beliscando o capim em volta da casa. Mas não demorou e a burra já estava se encostando no curral, esfregando o traseiro na cerca, bem no focinho do jumento, que fungava o cheiro da fêmea e relinchava todo assanhado, quase se atirando por cima do cercado.
— “Aquela rapariga só pode estar no cio” — pensava consigo a parteira, parando o serviço de parto e saindo apressada para o terreiro.
Idalina ficou no quarto gemendo e suando frio, pois Isidoro estava na cozinha com o pequeno Bil esperando o desfecho daquele parto.
— Mulher, vamos continuar — disse-lhe a parteira que retornara do quintal agora mais calma. — Juntei os dois no cercado. Eles querem sacanagem, terão sacanagem... — Em seguida gritou: — Isidoro! Cadê a cachaça? Traz logo esse calmante, porra!
De um salto Isidoro levantou-se, pegou a garrafa de pinga, um caneco de alumínio e correu para o quarto.
Depois de alguns goles de cachaça, a parteira apagou de novo o seu cigarro de palha, colocando-o novamente preso a orelha e continuou o serviço de parto.
— Tão derrubando o cercado lá fora — avisou Isidoro.
— Não é nada não. É apenas o seu jumentinho tarado tentando pegar a minha égua safada. Daqui a pouco eles se acalmam. Também daqui a pouco você será pai novamente. A cabecinha da criança já está aparecendo.
— Eu vou ficar na cozinha. Bil está lá sozinho. Quando a criança nascer me avisa.
Foi só o que Isidoro conseguiu dizer, com a voz embargada e aparentando nervosismo.
— "Monte de macho mole tem nesse mundo... Na hora de fazer todo mundo é macho." — Pensou a parteira, enquanto franzia o sobrolho, olhando para o telhado e cismada com o silêncio que reinava no cercado.
Depois, pensando alto, falou:
— O danadinho do jegue está se empanturrando lá fora!
Nesse instante, ela compreendeu que Idalina entrava em trabalho de parto. O coração se apressou e, quase sem pensar, começou a rezar, puxando das lembranças antigas a ladainha que tantas vezes ouvira das parteiras mais velhas:
Senhor São Bartolomeu, se vestiu e se calçou, seu caminho bendiou.
— Por aonde vai, Senhor São Beto?
— Vou em busca de Vós, Senhor.
— Tu comigo não irás.
— Tu, na casa de fulano, ficarás.
E a reza seguia, firme, como se fosse escudo contra todo mal:
Na casa em que vós estiverdes não morrerá mulher de parto, nem menino de abafo, nem fogo levantais. Paz, dom, misericórdia.
Os olhos semicerrados, a boca a murmurar, a alma entregue. Entre a fé e a ciência do corpo, a oração se tornava um bálsamo. Cantava ainda, baixinho, para acalmar a paciente: uma canção de consolo, feita de estímulo e ternura.
Enquanto isso, o útero se abria em silêncio solene. A dilatação vinha com boa cadência; as contrações pulsavam num compasso quase exato. A dor, domada pela coragem e pelo sussurro da fé, parecia menos ferida e mais caminho.
Isidoro estava na cozinha, calado, olhando para o pequeno Bil que estava acocorado ao lado do fogão brincando com as formigas saúvas que entravam pela porta da cozinha, em fila indiana, e subiam pela parede de barro, em direção ao telhado. As formigas que subiam trôpegas com uma folha presa nas mandíbulas, Bil logo as derrubava com o dedinho indicador, ficando extasiado ao vê-las recomeçar todo o seu percurso. Por um instante ficavam atordoadas, mas em seguida se recuperavam e pegavam novamente a folhinha e entravam na fila para fazer novamente a subida.
De repente, quebrando o silêncio que dominava aquela casa, a criança deu seu primeiro vagido, no começo ciciado, mas foi aumentando depois de ouvir-se um estalo de um tapa e um grito vitorioso vindo lá de dentro do quarto. Era a velha parteira que gritava entusiasmada:
— É UMA MENINA! VIVA SÃO BARTOLOMEU!
De um salto Isidoro se levantou, sendo imitado pelo pequeno Bil, e os dois saíram em disparada para o quarto, pisoteando as formiguinhas que não tinham a menor ideia do que estava acontecendo naquela casa.
Antes de correr para o quarto, Isidoro tomou um gole de zinebra, disse um palavrão e seguiu o seu filho. No caminho cruzou com a parteira que vinha apressada no sentido da cozinha com um pano ensanguentado na mão. Era o cordão umbilical e a placenta que ela carregava para enterrá-los no quintal. Só que antes de materializar a sua tarefa, deu uma paradinha na cozinha para tomar mais uma dose caprichada de cachaça. Antes, ao cruzar com Isidoro, fez a seguinte observação:
— É muito bonita a sua filha. A danadinha é forte e sadia.
Isidoro nem deu atenção às palavras dela; apressou-se até o quarto, onde Idalina transbordava de felicidade. Era, sem dúvida, a maior alegria de sua vida. Ao olhar para a menina que repousava ao seu lado, sentiu um juramento silencioso brotar em seu peito: protegeria aquela criança de todo e qualquer infortúnio, custasse o que custasse.
Ele queria que fosse um menino, mas se era a vontade de Deus, que fosse uma menina. Sentou-se na cama, pegou meio sem jeito a criança no colo, ainda suja, e ficou a balançá-la. Idalina mesmo com o corpo debilitado pelo esforço empregado, ainda conseguiu pegar o pequeno Bil pelo braço e abraçando-o começou a sorrir pelo modo desajeitado como o seu marido segurava o bebê. Minutos depois a criança chorava dentro de uma bacia d’água sendo banhada pela parteira.