CAPÍTULO SETE
O
domingo amanheceu ensolarado.
Dia
de Idalina e Maria arrumarem a casa, limparem o terreiro e ficarem esperando
Isidoro e os meninos voltarem da caçada.
Quando
as duas terminavam de limpar tudo, praticamente o almoço também ficava pronto,
porque era só uma panela com feijão, com mais água do que grãos, borbulhando no
fogão de lenha. Para o almoço desse domingo, além do feijão e da farinha, era
só esperar as carnes trazidas nos bisacos dos três caçadores que estavam
embrenhados no mato desde cedo.
Quando
a segunda-feira chegou, trouxe consigo maus presságios para aquelas bandas. O céu
apresentava-se azul e límpido durante o dia e sem estrelas a noite, e as nuvens
sumiram. Com o passar dos dias a terra foi ficando dura e rachada, e quando
Isidoro metia a enxada no chão, o ferro tinia e a poeira levantava. O desespero
tomava conta daquele homem, a ponto de ele chegar a sentar-se no chão, chamar
os meninos para o seu lado e começar a chorar. Já havia passado por várias
estiagens, nem gostava de relembrar as secas que já enfrentara, foram tantas, e
tão cruéis, que até hoje não sabia como sobrevivera, mas estava ali, vivo e
inteiro, para enfrentá-la de novo.
Como
havia sempre temido a Deus e guardado seus mandamentos, não entendia porque a
cólera do Senhor se inflamava novamente contra os camponeses. Talvez o Senhor
Deus permitisse que isso acontecesse para castigar os ímpios, mas que poupasse
os homens justos.
Olhou
novamente para os seus filhos, depois para o céu e tentou transparecer que não
estava com medo, mas aquela estiagem começava a amedrontar. Voltavam para casa sem
muita esperança de dias melhores.
No
dia seguinte a mesma coisa, nada de chuva, nada de nuvens escuras no céu,
apenas um sol abrasador que nascia de um lado, atravessava o firmamento,
assando tudo que estivesse debaixo dele e ao entardecer se escondia do outro
lado.
Durante
a noite Isidoro se levantava várias vezes para verificar se o céu estava todo
escuro, sem estrelas; mas se decepcionava ao olhar para aquela imensidão negra cheia
de estrelas. Ele tinha bastante experiência para saber que enquanto houvesse estrela
brilhando no firmamento, era sinal de que não haveria chuva nem tão cedo.
Vários
dias se passaram sem nenhum sinal de chuva.
Certo
dia, sem mais nem menos o tempo foi esfriando, umas nuvens escuras foram
chegando acanhadas e aos poucos o céu foi ficando coberto delas carregadas, e
uns pingos esparsos foram caindo, até que tudo arriou de vez e um monte d'água
desabou do céu de uma só vez, estrondando na copa das árvores e caindo com
raiva ao chão. Chegou tão violenta que o tempo escureceu durante o dia. Parecia
até que o mundo estava se acabando. Era uma ventania tão braba apitando na mata
que mais parecia o latir de uma matilha de lobos, enquanto as árvores, até as
mais robustas se envergavam para baixo.
Nessa
hora Isidoro estava na roça com Severino e Nicodemos; cada um com uma enxada
levantando poeira, mas com essa chuva repentina, inicialmente eles ficaram
pulando no meio do roçado, mas depois correram para um umbuzeiro e embaixo dele
ficaram escorados nas suas enxadas esperando a chuva passar. O cheiro de terra
molhada subia do chão perfumando o ar e animando a bicharada que corria pelo
mato procurando um buraco para se esconderem. Até os passarinhos fugiam da
chuva para os seus ninhos.
Em
casa, Idalina e Maria corriam adoidadas tentando retirar as poucas coisas que
ainda estavam debaixo das goteiras. Puxavam a cama para um lado, tiravam as
redes dos ganchos, colocavam os penicos sob as pingueiras, os tamboretes sobre
a mesa, que também era arrastada para um canto, e aproveitavam para colocar os
potes e algumas latas embaixo da bica, que descia por fora no oitão da casa.
Os
bichos no curral estavam parados, cabisbaixos, empapados com água escorrendo
pelo corpo. O vira-lata Piaba a tremer, encostado na porta da frente, todo
molhado.
Horas depois, a trovoada deu
uma trégua e, aos poucos, o sol foi surgindo, animando Isidoro e o filho a
deixarem o umbuzeiro e voltarem ao trabalho na roça, onde a terra agora estava
macia. Os dois correram de volta para trabalhar a terra, enquanto Nicodemos se
embrenhava no mato à procura de calangos.
No
dia seguinte não choveu. O dia todo foi de sol quente, com os formigueiros de
saúvas agitados, como sempre acontecia depois de um dia de trovoada. Nesse dia
Isidoro não foi trabalhar na roça com os meninos, foram para a beira de um formigueiro
apanhar tanajura. Até Idalina e Maria também foram.
Elas
ficavam no formigueiro, dentro de uma bacia com água pela metade, para ficarem
a salvo das ferroadas das formigas e catavam as tanajuras que iam saindo do
buraco; depois eram colocadas numa lata que ficava entre elas.
Isidoro
e os meninos apanhavam as tanajuras de outra maneira: tiravam a camisa e
colocando-a na mão, saiam correndo e aos gritos de “cai, cai tanajura, tua
bunda é de gordura”. Derrubavam as que saiam voando pela caatinga. Eram
abatidas e colocadas no bisaco que cada um deles carregava a tiracolo.
Terminada
a batalha no formigueiro, depois de muitas tanajuras abatidas, agora era
chegada a hora de serem preparadas para a refeição. Primeiro, arrancava-se a
cabeça da formiga, as asas e as pernas. Depois eram colocadas na panela e
assadas no fogo de lenha. Em seguida misturava-se com farinha, e com uma caneca
de café estava feita a ceia daquele dia. Fritas, elas ficavam com a bunda
dilatada, amareladas e cheias de gordura.
Eram
tantas as tanajuras apanhadas, que naquela casa comia-se tanajura no café da
manhã, no almoço e na ceia. Elas não azedavam com o passar do tempo. Ficavam
mais duras e secas, saborosas e mais crocantes. Todos naquela casa apreciavam
um prato de tanajura mexido na farinha com uma caneca de café.
Em
muitas feiras por esse interior afora ainda se vê sacos de tanajuras fritas
sendo vendidas. Sempre depois de um dia de trovoada.
A
família de Isidoro vivia muito feliz naquele sítio, apesar das adversidades. A
renda deles provinha do que era vendido na feira, o único modo de ganhar o
dinheiro necessário para comprar os poucos gêneros básicos para mantê-los bem alimentados
e, sobretudo vestidos. Contavam com o que a terra lhes dava, além das caçadas
aos domingos.
Os
meninos, coitados, nunca tiveram um brinquedo de verdade.
Maria
ganhou uma boneca de pano quando ainda engatinhava, isso porque Idalina comprou
na feira de Águas Belas. Foi uma briga danada em casa, uma vez que Isidoro
achava aquilo um desperdício de dinheiro. Maria brincou tanto com essa boneca
que a coitada perdeu os cabelos, as linhas costuradas no corpo foram se
soltando e de tanto ser arrastada pelo chão ficou encardida.
Os
dois meninos nunca ganharam nada. Nem sequer chutaram uma bola de plástico.
Severino, para brincar com Nicodemos, fazia bolas com palha de milho. Quando
tinham tempo, jogavam no terreiro. Era até hilário vê-los chutando uma bola que
sempre se desmanchava no decorrer da brincadeira. Nicodemos às vezes também brincava
de cavalo de pau com um cabo de vassoura. Amarrava um cordão na ponta da vara, fazendo-o
de rédea e saía galopando atrás das galinhas.
Severino
era uma criatura que se recusava a crescer, conservando o seu espírito de
criança, nunca deixou de brincar com Nicodemos. Na verdade, ele sofria da
síndrome de Peter Pan, não queria amadurecer.
Agora
os três estavam estudando num grupo escolar de Águas Belas, apesar do ingresso
tardio de Severino e de Maria; mas Nicodemos estava na idade adequada.
Maria
e Severino estudavam numa sala, enquanto Nicodemos estudava em outra, junto às
crianças de sua idade.
Quando
voltavam da escola, jogavam o caderno e um toco de lápis num canto da sala e sentavam-se
a mesa, comiam às pressas um prato de feijão com farinha e carne assada, depois
corriam para ajudar Isidoro na roça.
Agora
só Severino ajudava Isidoro na capinação. Maria e Nicodemos trabalhavam jogando
sementes nas covas abertas, ou arrancando espigas de milho ou catando as bajes
de feijão. No final da tarde voltavam para casa, apressados, sentindo pelo
caminho o cheiro de feijão fervendo e alguma caça sendo assada nas brasas. A
fumaça fugia pelo telhado.
Aquela
mudança no horário de seus filhos irem para a roça foi engolida por Isidoro com
muito contragosto, pois ele não aceitava os meninos perdendo tempo numa sala de
aula; ele os queria ajudando-o na roça, mas Idalina triunfou sobre os seus
argumentos colocando os três filhos na escola.
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